Maria Luísa Borges

Junho 2022






GEOTECNIA

SÓCIA APG Nº O784

Nasceu no Porto e é a geóloga responsável na Câmara Municipal dessa cidade. Entrou em Geologia por mero acaso, ainda que, em pequena, se tenha imaginado paleontóloga! Foi a impulsionadora da Carta Geotécnica do Porto publicada em 1994.

"Houve confiança no trabalho do geólogo, neste caso, e o geólogo pôde demonstrar que é necessário e que é útil e que há coisas que vê que outras pessoas não veem"

Foi na baixa do Porto, numa tarde de julho, acompanhadas do ruído permanente dos carros, dos barcos e das obras que, junto ao talude mais recentemente protegido pela Câmara do Porto, conhecemos a Maria Luísa Borges. De voz doce e muito divertida, com um ar jovial - que nos faz desconfiar que salvar taludes possa ser uma estratégia inexplorada de antienvelhecimento - a Luísa demonstrou-nos como é essencial a existência de um geólogo nas autarquias. A prevenção, se bem feita, nunca chega a ser notícia. Talvez por isso se menospreze (ainda) esse cargo. Há um enorme trabalho de bastidores na tomada de decisões que, tantas vezes, revoltam as populações. Porém, a Luísa está certa que nestas e noutras questões, o importante é a comunicação, a qual tem de ser muito bem feita. Venham conhecer a impulsionadora da Carta Geotécnica do Porto e maior fã do "Granito do Porto", que caiu na Geologia por acaso, mas que não foi por acaso que já evitou outras quedas.


Entrevista 

Baixa da cidade do Porto, julho de 2021


1. Nome, idade e local de nascimento.

O meu nome é Maria Luísa Soares Borges, mas sou conhecida por Luísa Borges. Tenho 57 anos e nasci no Porto.

2. Se tivesse de resumir numa frase o que faz profissionalmente, para leigos, o que
diria?

Eu trabalho na área da Geologia urbana, que trata dos fenómenos geológicos que ocorrem numa zona urbanizada, neste caso na cidade do Porto.

3. Em que ano e onde ingressou em Geologia?

Foi em 1983, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto: no curso de Geologia, ramo científico-tecnológico.

4. O que a levou a seguir Geologia?

Essa é uma pergunta interessante, (risos) porque eu não sabia o que era Geologia quando me inscrevi na faculdade. Eu não tive Geologia no [ensino] secundário. Já tinha algum interesse pelo tema, mesmo sem saber, porque quando era criança eu gostava muito de ciências e costumava ver documentários. E lembro-me perfeitamente de ver documentários sobre fósseis e eu dizia que queria ser paleontóloga quando fosse crescida. (gargalhada) Mas essa ideia, depois, perdi-a completamente. E o curso que eu queria quando me inscrevi era psicologia. Eu era da área de ciências, mas quando me fui escrever, o que é que eu fiz? Na altura era muito difícil entrar para a faculdade e tinham-me dito "olha, tu inscreves-te em todos os cursos que der e depois lá dentro pedes transferência, porque o que interessa é entrar". Então, de entre os vários cursos que apareceram, estava lá a Geologia, a matemática, a física ... Olhei para Geologia e lembro-me perfeitamente do que pensei naquela altura "Ah, que giro! Isto deve ser o estudo da Terra". (gargalhada) Foi tal e qual. E entrei em Geologia e apaixonei-me pela Geologia depois.

5. Na família, havia alguém que tivesse estudado Geologia?

Não, ninguém.

6. E agora?

Também não. Eu tenho uma filha, mas ela seguiu uma área completamente diferente. Curiosamente, o meu falecido pai gostava muito de pedras, de rochedos, das montanhas. É engraçado, porque se calhar ele próprio me chamava a atenção para isso. Porque ele gostava muito dos granitos, dos grandes penedos, como ele lhes chamava. E se calhar chamava-me a atenção e, inconscientemente, isso terá ficado, não sei...

7. Ele apreciava a paisagem...

Sim! Eu lembro-me de nós irmos a passear de carro - nós passeávamos muito -, e ele dizia "Olha para aquela pedra, tu já viste bem?". Era assim. Achei muito interessante! E ele adorava paisagens, se calhar herdei isso dele também.

8. Se calhar, havia ali um "geologozinho" também...

É verdade, é verdade. (risos) Ah, e eu colecionava pedrinhas. Mas isso, muitas crianças fazem quando são pequeninas, na praia. Gostava de trazer pedrinhas da praia.

9. Sentiu que foi uma aluna média, boa ou muito boa na Universidade?

Tive fases um bocadinho complicadas, até por motivos pessoais. Era uma aluna média, mas nalgumas disciplinas até era uma aluna boa.

10. Que disciplinas?

As disciplinas mais práticas, como a hidrogeologia, a Geologia aplicada à construção... A essas disciplinas consegui tirar umas notas melhores.

11. Gosta mais dessa vertente da Geologia aplicada, de resolver problemas?

Exatamente, sem dúvida. Gosto de me sentir útil, gosto de sentir que faço algo e que depois se pode ver o resultado.

12. E assim nas aulas, talvez naquelas que gostava mais, era mais calada ou gostava de participar, colocar questões e intervir?

Sempre fui um bocado tímida, não intervinha muito. Mas talvez mais nas aulas práticas, dessas disciplinas em particular, intervinha um bocadinho mais, porque tinha mais curiosidade, queria saber mais coisas. Também eram aulas com menos gente... como era um bocado tímida, era mais fácil falar nessas circunstâncias.

13. Houve algum professor, nessa altura, que a tenha marcado particularmente?

Sim, porque foi com as aulas dele que eu decidi que gostaria de seguir mesmo a área da Geologia aplicada, que foi o doutor Alberto Costa Pereira da CêGê.

14. De que forma é que ele a marcou?

Ele era uma pessoa muito prática. Trazia para as aulas a experiência que tinha do terreno e os resultados. E isso a mim fascinava-me! Porque nós víamos como eram feitas as sondagens, depois havia os estudos geológico-geotécnicos, depois os engenheiros tinham que ver esses estudos, deveriam ver, (risos) para dimensionar fundações, etc. Portanto, toda essa componente me atraía bastante.

Olhei para Geologia e lembro-me perfeitamente do que pensei naquela altura "Ah, que giro! Isto deve ser o estudo da Terra". Foi tal e qual. E entrei em Geologia e apaixonei-me pela Geologia depois.

15. Ou seja, parece ter sido uma pessoa bastante inspiradora...

Sim, exatamente. E era uma pessoa super à vontade, era muito fácil falar com ele e tinha umas aulas de campo que eu adorava, porque ia ver essa componente prática e útil à sociedade.

16. Se pudesse colocar na porta do seu quarto um póster com a cara de um geólogo, quem é que estava lá? Ou de uma geóloga! Pode ser conhecido ou não conhecido...

(riso nervoso, a tentar decidir) Assim com a cara de um geólogo, um póster... o doutor António Gomes Coelho, que foi anterior Presidente da APG, já falecido, mas também foi uma pessoa que me marcou bastante. Ainda antes de eu o conhecer, que eu só o conheci já era licenciada há muitos anos. Comecei por conhecer os trabalhos dele na área da Geologia aplicada e da cartografia geotécnica. Isso também foi decisivo para o rumo que eu tomei na minha profissão.

17. E quando o conheceu, correspondeu ao que já tinha no seu imaginário?

Ah sim, de todo. Aliás, excedeu! Porque eu achava que ele era uma pessoa cheia de sabedoria, com imensa experiência, eu gostava imenso de o ouvir, imenso mesmo.

18. Mudando agora um bocadinho as questões, qual é a publicação na área das geociências que gosta mais? (pode ser livro, artigo, carta, qualquer coisa)

Aqui digamos que talvez hajam duas coisas. A que eu consulto mais, até por motivos profissionais, é a Carta Geotécnica do Porto. E gosto, sem dúvida, porque fui um bocadinho a mãe dessa carta. Mas, associada, há uma publicação que foi a que me deu a ideia para fazer a Carta Geotécnica do Porto, e essa publicação foi a Carta Geotécnica de Setúbal. Foi daí que surgiu a ideia. Portanto, gosto das duas. Foi a partir daí que eu sugeri dentro da Câmara do Porto que se fizesse uma carta geotécnica para o Porto e felizmente tive acolhimento dos decisores na altura e foi assim que ela nasceu.

19. Em que ano é que foi?

A primeira edição foi publicada em 1994. Já naquela altura era algo muito muito avançado. (risos) Na altura, além da de Setúbal, havia também a Carta Geotécnica de Sines, mas eram trabalhos académicos. Depois entretanto consultei outras coisas e em conjunto com a Faculdade de Ciências [do Porto] e com a empresa que trabalhou para a Câmara nesse projeto, aí é que definimos o que é que seria a Carta Geotécnica do Porto.

20. Curiosidade, quanto tempo demorou a fazer-se essa carta?

Ora deixem-me cá ver. Eu creio que foram uns três anos. Foi sim, exatamente. Entretanto tivemos já uma segunda edição, que foi uma revisão dessa e saiu nove anos depois, em 2003. E não há mais, porque, entretanto, estas questões são um bocado políticas e se não houver interesse político... estamos a tentar que isso seja retomado e seja feita a sua atualização, até porque é uma carta muito procurada, mesmo sendo de 2003. Foi utilizada inclusive agora para o PDM [Plano Diretor Municipal] do Porto.

21. Sendo uma geóloga que trabalha numa câmara municipal, a sua atividade deve ser muito diversificada. Qual é aquela que lhe dá mais prazer fazer?

Isso é um bocado difícil de responder. Pedem-me pareceres sobre coisas muito diversificadas, desde, por exemplo, autorizações para uso de explosivos, uma coisa que eu acho interessante, até por causa da responsabilidade que implica. Há também a questão de ver as zonas [de risco]. Eu estou a trabalhar na proteção civil e tive que fazer a caracterização dos riscos naturais da cidade do Porto. Foi um exercício muito interessante, até porque vi alguns riscos que nem sequer eram falados nos planos de emergência, como, por exemplo, a exposição à emissão do radão, queda de meteoritos... isto para além dos riscos normais, como o sísmico, os movimentos de terrenos, etc. Mas estes dois [primeiros] entraram e até que foram bem acolhidos. Aquilo em que mais trabalhei, sempre e constantemente, foi na estabilidade de taludes rochosos, aqui no Porto, o que acabou, depois, por dar origem a diversas obras de estabilização, ao fim de muitos e muitos anos e de muita insistência, muita tinta correu. (risos) Mas as coisas evoluíram. Também trabalhei na área das águas subterrâneas, inclusive estive envolvida num projeto comunitário, o qual pretendia estudar a possibilidade de utilização de águas subterrâneas aqui da zona do Porto que, a nível de qualidade, não são propriamente boas, mas para fins que não o consumo humano, como rega de espaços verdes. Esse foi um projeto muito interessante. Mas, aliás, também tive outros projetos financiados na área dos riscos, como fazer a cartografia geológica de risco do centro histórico do Porto e da zona histórica envolvente. Este projeto já foi em 2004, altura em que aqui em Portugal ainda nem se falava muito nos conceitos de risco. Óbvio, que em termos de risco geológico, até durante o curso se falava. Mas em termos da sociedade em geral, falava-se muito pouco. Eu aprendi muito com colegas de França e de Itália. Desses projetos, aquilo que eu retirei mais foi a cooperação Internacional e a perceção de que nós, portugueses, também sabemos trabalhar e temos coisas com muita utilidade e que são apreciadas.

22. Já aconteceu alguma situação em que se tenha apercebido de uma situação de risco e a mesma se tenha concretizado antes de se poder tomar alguma decisão?

Já consegui evitar que essa situação de risco acontecesse. Relacionado também com a questão dos taludes, que aqui, efetivamente, em termos geológicos, é o que acaba por acontecer com mais frequência. Foi na zona das chamadas "Escarpa das Fontainhas", que é entre a ponte Luiz I e a ponte D. Maria [Pia]. Toda aquela zona tem uma grande instabilidade de terrenos. Foi no célebre - célebre pelos piores motivos - inverno de 2000-2001, que foi quando caiu a ponte de Entre-os-Rios, em março 2001. Esse inverno foi extremamente chuvoso e ali na escarpa havia uma zona de socalcos, feitos no século XVIII, que já em tempos tinham sido ocupados por construções clandestinas. Esses socalcos foram feitos com aterros, mas não eram aterros compactados, era quase entulho. Em cima, há um muro de suporte, da Alameda das Fontainhas, que é em pedra, com uma base de largura de cerca de quatro metros. Aquilo era extremamente pesado e o que sucedeu foi que, na sequência daquelas chuvadas todas, o muro começou a mexer. Aliás, o muro já tinha uma deformação que, vim depois a descobrir, já na década de 1940 tinha tido movimentos. 

23. Como souberam que estava a haver movimentos no muro? Alguém reportou?

É que havia uma rua que tinha um coletor de águas pluviais e, a certa altura, o pavimento começou todo a partir. Quando se foi apurar o que se tinha passado, o próprio coletor estava todo partido, ou seja, havia ali uma subsidência forte e não sabia qual a origem. Curiosamente, por baixo passa o túnel da Alfândega, quase paralelamente à rua. Portanto, fez-se até inspeção ao túnel. Entretanto, os serviços da Câmara repuseram aquele pavimento e durante o fim de semana aquilo voltou a assentar meio metro. Foi uma rapidez incrível! Começou-se a pensar que o muro de suporte desse arruamento poderia estar também a ser afetado. Na altura, estava um empreiteiro a instalar-se junto à Muralha Fernandina para construir o Funicular dos Guindais e apareceu, por acaso, ali. Começámos a conversar, nós, os técnicos da Câmara, que eu fui com colegas, e falámos-lhe desse problema do muro e ele ofereceu-se logo para colocar umas marcas topográficas. Entretanto a Câmara contratou um engenheiro como consultor, que era o engenheiro Campos e Matos, de uma empresa que também emprega geólogos e, já na altura, ele era uma pessoa com bastante sensibilidade para a Geologia. Fizeram essas marcas topográficas e verificou-se que o muro estava em movimento. Cerca de um centímetro por dia na direção do rio Douro. Ia cair. E enquanto isto se passava, a precipitação era numa quantidade inimaginável. Na altura foram feitos registos e correspondiam a precipitações com período de retorno de 100 anos, algo assim, foi mesmo uma loucura. E pensou-se "Bem, este muro vai cair lá abaixo. Como é que se vai segurar o muro?". Cheguei a ter reuniões de madrugada, com o presidente da Câmara, que na altura era o engenheiro Nuno Cardoso, com o irmão dele, que era professor na Faculdade de Engenharia, o professor António Cardoso, e com o Engenheiro Campos e Matos. É que os movimentos começaram a ser um bocado repentinos e houve até casos em que nós tivemos que desalojar as pessoas, porque houve movimento e casas racharam. Como o arruamento estava sobre um aterro, decidimos retirar carga. Retirar, retirar o máximo possível para não cair lá abaixo. Portanto, desfez-se o arruamento todo, nunca mais foi construído, nunca mais! Começou-se a retirar o muro também, por causa do peso que ele exercia em cima das zonas de aterro, embora até estivesse assente em granito. Mas via-se que na base ele já estava deformado pelos tais movimentos que tinham ocorrido na década de 1940. Foi realmente muito importante e conseguimos evitar que o muro caísse.

24. Não é uma decisão fácil de tomar, corre-se sempre o risco de dizerem "Excesso de zelo!" enquanto o mal não acontece.

Nós de facto tivemos muitos problemas com a população, porque tivemos de cortar lá em baixo a passagem para o caso de aquilo cair. Mas era a única ligação que as pessoas tinham de Campanhã à Baixa do Porto, em cota baixa. As pessoas revoltaram-se imenso, estivemos seis meses com aquilo fechado porque a chuva continuava, depois teve de se fazer limpeza de toda aquela zona para se perceber o que se estava a passar, vieram sondagens a seguir, descobrimos que, para além dos aterros, tínhamos também os próprios muros de suporte, que eram muito antigos, estavam todos a cair. Os blocos de granito tinham-se conseguido mexer dentro dos aterros, nós tínhamos espaçamento entre fraturas de dois metros, cabiam três pessoas lá dentro. Era impressionante! Como havia aqueles aterros e muros a suportar, havia uma certa margem de manobra, chamemos-lhe assim, para os blocos se mexerem sem caírem lá abaixo. Portanto, continuou-se a desmontar o muro.

"Mas havia pessoas, da academia, que diziam que nós íamos ter um tsunami por causa dessa explosão, foram ditas coisas tão absurdas: que as placas iam abanar, as placas tectónicas iam abanar! "

25. A população estava contra, mas a verdade é que se vocês não fizessem nada e houvesse um desastre, aí sim mais contra estariam.

Eu acho que nestas questões, e isso também se vê agora com aquilo por que estamos a passar na pandemia, o importante é a comunicação. A comunicação tem de ser muito bem feita. Lembro-me que nessa altura recebi um telefonema de uma senhora que estava por trás da organização de uma manifestação que iam fazer, porque a via estava encerrada. Perguntou porque é que aquilo se estava a passar, estava muito zangada, e eu comecei a explicar-lhe o porquê. E no final, ela disse: "Olhe, eu estou muito satisfeita, porque finalmente percebi porque é que fizeram isto e acho que fizeram muito bem e vou desconvocar a manifestação". (risos) É importante a comunicação. Tivemos muitos problemas com a população. Na altura eram usadas umas grades amarelas para impedir a passagem e as primeiras que colocámos, as pessoas atiraram-nas ao rio. 21 grades tiveram que ser pescadas do rio. Há muitas notícias dessa altura, imensas mesmo, e o próprio presidente, o engenheiro Nuno Cardoso, chegou a dizer numa notícia que nunca acreditou que o muro não caía. Nós sempre esperámos que ele acabasse por cair. Mas não, não caiu e depois mais tarde fez-se uma obra de estabilização, com um projeto... bem, aqui nem sequer houve tempo para fazer um projeto, aquilo foi um bocado à medida e o consultor, o Engenheiro Campos e Matos. Só parámos de escavar e desmontar o muro quando os movimentos pararam. Tivemos o terreno coberto com plásticos por causa da chuva, aquilo foi uma aventura que durou seis meses até a situação normalizar e termos a certeza de que não havia mais perigo. E, entretanto, deu-se a queda da ponte [Entre-os-Rios] e foi muito complicado, até porque nós tínhamos o rio ali a passar, cientes do que tinha acontecido a montante. Isto para dar o exemplo de uma situação em que, efetivamente, se conseguiu evitar o acidente. Porque também houve uma conjuntura favorável, quer do lado da presidência, que tinha uma sensibilidade para essas coisas, quer da parte dos próprios dirigentes, o meu dirigente da altura. Houve confiança no trabalho do geólogo, neste caso, e o geólogo pôde demonstrar que é necessário e que é útil e que há coisas que vê que outras pessoas não veem.

Perguntou porque é que aquilo se estava a passar, estava muito zangada, e eu comecei a explicar-lhe o porquê. E no final, ela disse: "Olhe, eu estou muito satisfeita, porque finalmente percebi porque é que fizeram isto e acho que fizeram muito bem e vou desconvocar a manifestação".

26. Alguma vez foi de férias porque queria ver um geossítio, um maciço, mas não disse nada à família e depois eles já lá estavam?

Sempre partilhei com a minha família a minha paixão pela Geologia. Eu costumo dizer que tenho a sorte de trabalhar na área que gosto. Embora a Geologia que eu faço aqui [emprego] seja um bocadinho diferente, eu gosto da Geologia, é o meu passatempo! E sempre partilhei com a família o meu gosto, a minha paixão. O que acontecia é que sempre que eu ia a algum sítio, eu procurava os pontos de interesse geológico. Por exemplo, uma vez passei férias na costa alentejana e aquilo para mim foi o paraíso, andei a ver as praias todas, etc. E a família partilhava esse meu entusiasmo. Ver as dobras, fotografar aquelas dobras fantásticas. Aliás, muitas vezes íamos a passear e eu ia a olhar para as rochas e a dizer "Olha aquilo, olha aquilo!"

27. Quando finalmente se formou, tornou-se geóloga e, incontornavelmente, alguém a questionou sobre o que faz da vida e teve de dizer "Sou geóloga". Qual a resposta mais caricata que teve?

Eu acho que é uma resposta que é muito comum: "Que é isso? Pedras?". Toda a gente ouve isso. (risos) Acho que não houve assim nenhuma mais caricata do que essa. Embora atualmente as pessoas já percebam melhor o que é a Geologia.

Na altura foram feitos registos e correspondiam a precipitações com período de retorno de 100 anos, algo assim, foi mesmo uma loucura. E pensou-se "Bem, este muro vai cair lá abaixo. Como é que se vai segurar o muro?". Cheguei a ter reuniões de madrugada

28. Mas depois explica o que faz e as pessoas perguntam-lhe se é mais na área da engenharia?

Já foi um bocadinho mais, agora já não é tanto. Aliás, eu quando fui trabalhar para a Câmara, durante uns largos anos, e ainda hoje, de vez em quando, chamavam-me "engenheira". Mas eu sempre corrigi: chamem o que quiserem, mas é assim, eu sou de ciências. Portanto, às pessoas licenciadas em ciências chamam de doutor. Podiam chamar geóloga simplesmente, tal como se diz que uma pessoa formada em arquitetura é um arquiteto. Chamem-me o que quiserem, mas engenheira não! E sempre fiz questão de frisar isso. Eu sempre separei muito bem o que era a minha área, dentro da Câmara, ainda para mais sendo a única, até há uns dias, (risos) a única geóloga na Câmara, a única pessoa desta área, sempre tive dificuldade em me impor e em impor a Geologia. Mas as coisas, com o tempo, foram melhorando, felizmente!

29. Conte-nos um evento ou momento que foi para si marcante ao longo da sua vida profissional, pode ser mais ou menos positivo.

Eu tive uma experiência muito interessante, ainda nos princípios da minha carreira, que foi participar numa comissão de avaliação independente do governo. Penso que foi a primeira comissão que foi criada, depois houve outras, até por causa da coincineração, esta foi criada no âmbito da avaliação de uma experiência que queriam fazer ao largo da costa do Porto. Era o projeto COMBO, isto foi em noventa e tal. Essa experiência ia ser entre investigadores irlandeses, se bem me recordo. O professor António Ribeiro estava envolvido, também estava envolvido o instituto de geofísica Dom Luiz [atual IDL], e queriam fazer um estudo da propagação das ondas sísmicas. Iriam ter equipas na Nova Zelândia a registar. E o que é que ia haver? Uma explosão na coluna de água de 20 toneladas, a 50 quilómetros do Porto. E o que é que aconteceu? Houve um indivíduo de Lisboa que, na altura, já havia comunicação via internet, apanhou um e-mail ou uma troca de mensagens nas quais, as pessoas que estavam envolvidas nessa experiência, comentavam que iam provocar uma explosão como um sinal equivalente a um sismo de magnitude 4 na escala de Richter. Ou seja, eles não iam provocar um sismo, era um sinal que ia ser emitido e seria equivalente. Esse indivíduo veio para a comunicação social dizer que ia haver uma experiência científica que ia provocar um sismo ao largo do Porto. Vocês nem imaginam a quantidade de disparates que foram ditos naquela época. Mas enfim, o que é que o governo decidiu? Para [verbo parar], para a experiência, porque na altura o presidente aqui da Câmara, o Fernando Gomes, claro que teve de se manifestar, "Nem pensar, não vão fazer uma coisa dessas ao largo da costa da cidade, sem a Câmara saber o que é que se passa". E o governo decidiu criar uma comissão de avaliação independente, com representantes de várias entidades. E fui nomeada representante da junta metropolitana do Porto para estar nessa Comissão e eu tinha de apresentar relatórios confidenciais diretamente ao senhor presidente, os quais tinham que ser objetivos, tinham que ser escritos de forma a ele compreender e é um momento daqueles que uma pessoa não esquece. No meio de todo este processo, que foi extremamente interessante, tivemos entrevistas com aquelas pessoas todas. E eu aprendi muito. Eu ainda era jovem, creio que isto foi em 1993-1994, eu tinha 30 anos. Por acaso, o presidente da comissão foi uma pessoa com quem eu adorei trabalhar. Não sei se já alguma vez ouviram falar do professor Mário Ruivo, ele era da área da biologia, mas era presidente da Federação Portuguesa das Associações [e Sociedades] Científicas. Tinha também um especialista em engenharia sísmica, o professor Sousa Oliveira, tinha uma pessoa que era representante das organizações ambientais, já não me lembro muito bem quem eram os elementos. Mas eu ter a meu cargo a representação da junta metropolitana da cidade foi algo que me deixou um bocado estupefacta na altura. Mas acho que desempenhei bem o papel. Mas esse momento de que eu estava a falar, o momento alto, foi uma reunião com o presidente da Câmara, na qual eu tive que explicar, como se explica a um leigo, o que é que eles iam fazer e para quê. E o Fernando Gomes era um indivíduo que sabia colocar as questões. E lembro-me de mim a tremer como varas verdes. (risos) Consegui-lhe explicar porque é que queriam fazer a experiência aqui, o que é que se ia investigar, etc. E no final ele vira-se para mim e diz "Muito bem doutora, estou esclarecido". Infelizmente a experiência acabou por não ser dar, por questões meramente políticas. O Fernando Gomes tinha ficado de facto esclarecido e já não achava que ia haver problemas. Mas havia pessoas, da academia, que diziam que nós íamos ter um tsunami por causa dessa explosão, foram ditas coisas tão absurdas: que as placas iam abanar, as placas tectónicas iam abanar! (risos) É que foi feita a politização da questão: o governo era socialista, portanto quem era da oposição, aproveitava-se. E a experiência não se fez e nunca mais se fez nada semelhante. Mas foi mesmo um momento marcante.


Geomanias

Rocha preferida? Granito do Porto

Mineral preferido? Quartzo

Fóssil preferido? Trilobite

Unidade litostratigráfica preferida? Granito do Porto

Era, Período, Época ou Idade preferido? Paleozoico  

Trabalho de campo ou de gabinete? Ambos

Martelo ou microscópio? Martelo 

Amostra de mão ou lâmina delgada? Amostra de mão

Carta Geológica favorita? Carta Geotécnica do Porto


Pedra mole ou pedra dura? Pedra dura, que eu gosto de bater com o martelo e ouvir o som

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? 

Não metálicos

Crosta ou crusta? Eu uso crosta, as duas são válidas, mas eu uso crosta, soa-me melhor.


Teaser da Entrevista