Fernando Noronha

Agosto 2022






RECURSOS MINERAIS

SÓCIO APG Nº O74

É natural de Espinho e autor do primeiro doutoramento em Portugal em Geologia Económica. Em criança, fazia coleções de "pedrinhas". Em adulto, era o "doutor das pedras". Deu aulas na FCUP. Adora ensinar e detesta que lhe chamem cientista. 

"... foi um marco fundamental até porque me fizeram sofrer bastante para que eu fizesse as provas, pois tive algumas incompatibilidades com o meu orientador... "

Naquela manhã de julho, desconfiamos que já o Fernando teria gastado todo o plafond de conversa para o ano de 2021, pois quem conhece este homem metalogénico, sabe bem que costuma ter conversa (e humor) até o magma solidificar. Primeiro doutor em Geologia económica em Portugal, é um dos grandes culpados, dentro e fora do departamento de Geologia do Porto, pelo sucesso de muitos geólogos portugueses que se foram especializando em recursos minerais e já nem o conseguimos dissociar dos granitos. Como os recursos que estuda, também este geólogo se formou em circunstâncias muito especiais, ultrapassando vários obstáculos no seu percurso académico para que os muitos alunos que o seguiram (já dissemos que são muitos?) tivessem um caminho mais desimpedido. Geólogo, mas acima de tudo professor, venham conhecer o "doutor das pedras" da mina da Borralha.


Entrevista 

Praia de Lavadores/Miradouro do Estuário do Douro, Vila Nova de Gaia, julho de 2021


1. Nome, idade e local de nascimento.

Fernando Noronha, 75 anos, natural de Espinho, distrito de Aveiro.

2. Se tivesse de resumir numa única frase o que fez profissionalmente, para leigos, o que diria?

Bem, eu agora estou jubilado, mas antes era professor universitário e era geólogo. Portanto, tentava incutir aos estudantes o gosto pela Geologia.

3. Qual é que era a sua área de especialização?

Geologia Económica. Aliás, foi o primeiro doutoramento em Portugal em Geologia Económica.

4. Em que ano e onde ingressou no curso de Geologia?

Em 1964, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

5. O que o levou a seguir Geologia?

Isso é uma resposta difícil de dar. Contudo, ainda tive o privilégio de ser estudante numa altura em que nós íamos para o curso que queríamos. A minha falecida mãe dizia que eu já desde novo me interessava por fazer coleção de pedrinhas. Talvez tenha sido por isso.

6. Era mesmo geólogo que queria ser ou existe aí um desejo anterior oculto que não concretizou?

Não, não. Como lhe disse, sou de uma altura em que nós íamos para a universidade para o curso que queríamos. E eu queria mesmo!

7. Nunca considerou outra profissão?

Não, que eu me lembre, não.

O professor Ávila Martins (...) influenciou-me porque era um homem de carácter, democrata (...) e geólogo! (...) além de ensinar era também responsável de prospecção mineira, (...) um homem prático!"  

8. Na sua família, havia alguém ligado à Geologia?

Não. Quer o meu pai, quer a minha mãe, só tinham a escolaridade obrigatória, que na altura era a quarta classe.

9. Ou seja, nem ninguém tinha prosseguido estudos...

Não, na família não.

10. E hoje em dia, há alguém na sua família  ligado à Geologia ou a uma área afim?

Sim, há o meu filho que é engenheiro de minas [João Noronha, Almina].

11. Como foi o Fernando enquanto aluno: médio, bom ou muito bom?

Bom. [as colegas Maria dos Anjos Ribeiro e Manuela Marques troçaram desta resposta]

12. E era dos mais calados ou dos mais participativos?

Participativo.

13. E os professores conseguiam calá-lo?

Conseguiam!

14. No tempo em que foi estudante, seguramente muitos professores, de uma forma ou outra, tiveram algum impacto em si. Se pudesse escolher um dos professores que mais o influenciou na altura, quem seria?

O professor [José] Ávila Martins. Foi meu professor de Geologia Geral, que na altura era uma disciplina do terceiro ano da licenciatura. Eu fiz a licenciatura de cinco anos, que começou precisamente em 1964 e que foi chamada "a nova reforma". Antes, os cursos eram de quatro anos, como o de Ciências Geológicas, e essa reforma, que foi feita pelo ministro Galvão Teles - dizem que é a reforma Veiga Simão mas não, é Galvão Teles - estabeleceu os cursos com cinco anos e, a primeira vez, com uma grande qualidade. Conferiam o título de geólogo a quem se licenciasse. Isso não durou muito tempo. Portanto, estava mesmo especificado no decreto-lei que criou esses cursos, que os que se formassem em biologia, eram biólogos, os que se formassem em Geologia eram geólogos, os de química eram químicos, etc. Mas isso foi sol de pouca dura...

"(...) sou de uma altura em que nós íamos para a universidade para o curso que queríamos. E eu queria mesmo!" 

15. E de que forma é que ele o influenciou?

Influenciou-me porque era um homem de carácter, democrata - já mesmo antes do 25 de abril - e... geólogo! O doutor Ávila Martins, já nessa altura, além de ensinar, era também responsável de prospeção mineira. Era um interlocutor com companhias mineiras internacionais que vinham trabalhar para Portugal. Portanto, era um homem prático!

16. Tem algum geoídolo? Assim um geólogo favorito, uma referência. Pode até não o ter conhecido...

(pensativo) Eu tive o privilégio de lidar com muitos geólogos conhecidos. O mais conhecido em Portugal e por quem sempre tive muito respeito é o António Ribeiro. Entre os geólogos estrangeiros, pois tive também a possibilidade de conhecer alguns que foram depois meus amigos e que me acompanharam nos primeiros trabalhos que publiquei, posso destacar o doutor Bernard Charoy. Devo dizer aqui que, depois de me licenciar, tive o privilégio de poder ir três anos para França, onde frequentei a Escola Nacional de Geologia de Nancy. E porquê? Porque sempre quis especializar-me em Geologia económica e a escola de Nancy era uma referência. Tive ainda o privilégio de conhecer um homem que também me marcou muito como professor, André Bernard, que além de filósofo era também um magnífico professor de Geologia económica.

 17. Sentiu que tinha que sair para ir buscar conhecimentos e completar a sua formação em Geologia económica?

Sim. Foi importante a minha saída, como acho que deve ser para todas as pessoas. Todos devem tentar ter outras experiências. Essa primeira saída abriu depois uma porta a muitas outras saídas que eu fiz e também todos os meus alunos fizeram. Porque tentei então desenvolver sempre teses em cotutela, e fui no Porto o primeiro a desenvolver este tipo de teses, algo que era uma novidade na altura. Como sempre me considerei um francófono, as minhas universidades parceiras eram universidades francesas: Nancy, Toulouse e também Grenoble. 

"(...) sempre considerei que, antes de tudo, era professor! Nunca me considerei cientista. Ainda hoje detesto que me chamem cientista (...)"

"(...) há um trabalho que acho que todos deveriam ler, porque na altura foi um trabalho pioneiro e muito sério e que eu continuo a recomendar, que é a tese do António Ribeiro"

18. Conte-nos agora qual é a sua publicação favorita na área das Geociências. Pode ser um livro, um artigo, uma carta. Qual é assim aquela publicação à qual muitas vezes ainda volta?

(hesitação) Como em Geologia eu sempre trabalhei principalmente nas áreas de Trás-os-Montes e norte de Portugal, há um trabalho que acho que todos deveriam ler, porque na altura foi um trabalho pioneiro e muito sério e que eu continuo a recomendar, que é a tese do António Ribeiro [Contribution à l'étude tectonique de Trás-os-Montes oriental]. Efetivamente, as teses antes eram praticamente o trabalho de uma vida, não eram como as teses de hoje. Consequentemente, todas as informações que na altura ele deu e que continuam a servir para mim de referência, apesar de todos os modernismos, fazem da tese dele a minha sugestão.

19. Naquilo que foi a sua vida profissional, qual é que foi a atividade ou exercício que mais prazer lhe dava?

Para começar, sempre considerei que antes de tudo era professor! Nunca me considerei cientista. Ainda hoje detesto que me chamem cientista, porque sempre procurei efetivamente tentar ensinar aquilo que ia aprendendo. A experiência profissional que mais me marcou foi precisamente ter tido o privilégio de ter feito o meu primeiro estágio, e depois a minha tese, numa mina. Só fiz a tese porque, na realidade, fui apoiado por essa mina, concretamente pela mina da Borralha, que me pagava não só as deslocações, mas também tudo o que era necessário para fazer a tese. Depois, também um privilégio, porque considero sempre essas questões privilégios, o facto de ter sido colaborador dos Serviços Geológicos de Portugal. Permitiu-me fazer uma coisa que eu adorava, que era trabalho de campo e cartografia. Permitiu-me ainda que todos os meus alunos tirassem proveito dessa minha experiência, não só do meu trabalho na Borralha - posso referir por exemplo uma pessoa que conhece e que também trabalhou na Borralha, que foi o António Mateus - mas também do trabalho de campo. Todos os meus alunos aproveitaram precisamente as áreas das cartas geológicas onde fiz cartografia (Montalegre, Cabeceiras de Basto e Vila Pouca de Aguiar). Foram feitas numerosas teses de doutoramento, estudando assuntos que eu tentei esmiuçar na altura em que fiz a cartografia.

20. Ou seja, no exercício da sua atividade de investigação, aquilo que lhe dava mais prazer era partilhar o que ia aprendendo com os seus alunos e eles próprios desenvolverem essa especialidade?

(anuindo com a cabeça) Evidentemente!


"(...) a melhor amostra que eu tenho de molibdenite foi encontrada por ela, na nossa viagem de núpcias (...)"

21. Já marcou férias de propósito porque queria ir ver um afloramento e levou a sua família, mas não lhes disse nada?

(sorriso) Não, não. A minha mulher sempre partilhou comigo as minhas viagens de férias. A minha mulher é botânica! Ela já sabia que eu gostava de ir à procura de pedrinhas. E, às vezes, as pedras mais bonitas que eu tenho foi ela que as encontrou...

22. Então ela ajudava?

(risos) Ela ajudava! E até posso dizer que a melhor amostra que eu tenho de molibdenite, foi encontrada por ela na nossa viagem de núpcias, na região de Mangualde.

23. Foi isso que ficou na memória das núpcias... (tom trocista)

Passámos por Mangualde, eu quis mostrar-lhe as pedreiras, as minas que na altura havia lá nos pegmatitos, e por sorte encontrámos uma amostra de molibdenite, que é rara! A molibdenite é um mineral que é pouco vulgar, mas que naqueles pegmatitos às vezes aparecia, e eu tive a sorte de ter essa amostra, que ainda guardo.

24. Uma bela viagem de núpcias...

Foi, mas infelizmente (pesaroso) não foi muito bela, porque o meu pai faleceu no meu terceiro dia de viagem. Tivemos que interromper bruscamente. São as tais coisas que fazem parte da vida. A vida é feita de momentos bons, de momentos menos bons e de momentos maus.


25. E que nos vão caracterizando e moldando...

Claro...

26. Na altura, quando se tornou geólogo, possivelmente não era uma profissão que todos os seus amigos e familiares conhecessem. Qual foi a resposta mais hilariante, caricata ou estranha que recebeu quando perguntavam "então Fernando, o que fazes da vida" e respondia "sou geólogo"?

Toda a gente dizia "pois, pá, só te dedicas ao estudo de calhaus". Mas, por exemplo, na Borralha, como sabiam que eu era licenciado e que andava à procura de pedras, chamavam-me o doutor das pedras, para me distinguir dos doutores das pessoas, que eram os médicos. Então, naquela região, era conhecido pelo doutor das pedras.

27. Mas já sabiam que Geologia eram pedras...

Já, já.

28. Portanto nunca houve o comentário "ah e tal, então já descobriste um vaso?", aquela confusão que por vezes existe com a arqueologia?

Na altura em que eu comecei a trabalhar, ainda não existiam tantos arqueólogos como hoje. Aliás, a arqueologia que era feita, era feita por geólogos: os geólogos do Quaternário. Como curso e especialidade, a arqueologia só se impôs muito depois.

29. Conte-nos um momento marcante na sua carreira, pode ser um momento mais ou menos positivo.

(pensativo) A história que mais me marcou foi o doutoramento. Foi um marco fundamental, até porque me fizeram sofrer bastante para que eu fizesse as provas, pois tive algumas incompatibilidades com o meu orientador.

30. Que era...

Oficialmente era o professor [Miguel] Montenegro de Andrade, mas depois no momento da entrega da minha tese o meu orientador legal foi o professor Antonio Arribas [Moreno] de Salamanca, que me foi indicado pelo professor André Bernard quando eu lancei um SOS a dizer que tinha problemas com o meu orientador do Porto. Então, oficialmente, foi o professor Arribas.

31. Considera ser esse o momento mais marcante, essa sua primeira dificuldade...

Foi um momento marcante sob vários aspetos, nomeadamente do ponto de vista de saúde, que também me marcou, mas felizmente depois tive vários outros momentos marcantes. Tive a minha agregação, em que tive o privilégio de ser avaliado pelo professor [João Manuel] Cotelo Neiva [Universidade de Coimbra] e pelo Professor Décio Thadeu [Instituto Superior Técnico]. E quanto às minhas provas de doutoramento, estava a esquecer-me desse pormenor, foram de facto bastante marcantes, porque antigamente havia uma prova complementar com pontos que eram sorteados alguns dias antes e eu tive a sorte de me sair um ponto do professor [Alberto de] Morais Cerveira [FEUP] sobre a classificação de jazigos, de reservas e de recursos, e um outro ponto, do professor Décio Thadeu [Instituto Superior Técnico], sobre bauxitos (e não bauxites), em que tive de desenvolver algo sobre os chamados jazigos de concentração residual. 

32. Agora vamos passar às perguntas de resposta curta e é para dizer a primeira coisa que lhe vier à cabeça.

É tiro e queda!


Geomanias

Rocha preferida? Granito

Mineral preferido? Volframite

Fóssil preferido? Talvez a trilobite

Unidade litostratigráfica preferida? Quartzito Armoricano

Era, Período, Época ou Idade preferido? Paleozoico

Trabalho de campo ou de gabinete? Trabalho de campo

Martelo ou microscópio? 

Martelo e microscópio!

Amostra de mão ou lâmina delgada? As duas coisas

Carta Geológica favorita? A minha primeira carta, Montalegre [1:50.000, 6-A]

Pedra mole ou pedra dura? Dura!

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Metálicos

Crosta ou crusta? Crosta


Teaser da Entrevista