Patrícia Santos

Dezembro 2023








RECURSOS MINERAIS

SÓCIA APG Nº O1139


Nasceu 'no campo': é natural das cristas do Anticlinal de Valongo, de Beloi, e tem um passado familiar ligado à mina de carvão de São Pedro da Cova. Não tinha muito por onde escapar! Tem-se bifurcado entre a academia e o meio empresarial, mas sempre fiel ao que mais a fascina: os recursos minerais.

"Falávamos dos graptólitos, das trilobites, das plantas do Carbonífero... E eu, que vi isto a minha vida toda e nunca soube os nomes, o que isto era, como viviam, nada, até pensava que eram peixes! (risos) Foi assim uma coisa meio revolucionária para mim, portanto, achei aquilo maravilhoso."

Foi no flanco sudoeste do Anticlinal de Valongo, sob o olhar atento, e petrificado, das trilobites com as quais cresceu, que tivemos o prazer de conversar com a Patrícia Santos. Conheceu a Geologia antes sequer de saber que essa palavra existia... é que crescer em São Pedro da Cova representa a única forma positiva de contaminação mineira: acabou dedicada à prospeção mineral. E adora essa "caça ao tesouro". Fã da Mary Anning, neta de britadeira de mina e vítima do entusiasmo de uma professora do secundário, foi matriarcalmente geoencarrilada. Da terra mineira para a academia, da academia para a indústria e da indústria para a academia sobre essa terra mineira, venham conhecer esta menina de e do ouro, que fecha o ano de 2023 com chave homónima. 


Entrevista 

Trilho Aldeia de Couce, Parque das Serras do Porto, Valongo (em cima da Formação Valongo), julho de 2022


1. Nome, data e local de nascimento?

Patrícia Alexandra Moreira dos Santos. Nasci a 11 de dezembro de 1982, no Porto.

2. Conte-nos, como se fosse para leigos, o que faz profissionalmente?

Neste momento, estou a trabalhar num projeto na Faculdade de Ciências [FCUP], a abreviatura é SHS, a estudar a contaminação dos solos nas áreas envolventes mineiras. Anteriormente, estive um período de tempo razoável na área da prospeção mineral, em contexto empresarial. Trabalhei essencialmente na prospeção de ouro, com a empresa canadiana Klondyke Gold [Corp.] e com a Medgold Resources Corp., também canadiana. Entretanto, a empresa saiu de Portugal e eu fiquei a trabalhar com outra empresa, que era gerida pelo mesmo presidente, chamada Plethora, um fundo europeu de investimento que procurava áreas de prospeção a nível europeu. Era uma vertente um bocadinho diferente da prospeção.

3. Portanto, faculdade-empresa, empresa-faculdade de novo. Sente-se uma "nova cientista", depois desta experiência empresarial?

Eu acho que sim, que foi importante. Foi uma experiência da qual gostei muito, não estava à espera de gostar tanto, confesso. (risos) Durante a licenciatura, se calhar não era uma área em que eu ambicionasse trabalhar, particularmente a prospeção mineira. Em parte, porque eu tinha fobia a espaços fechados! (risos) Espaços muito apertados, galerias mineiras, era uma coisa que a mim me fazia um bocado de espécie. Mas a partir do momento em que aprendi a ultrapassar esse medo, achei que era uma área deliciosa para se trabalhar. Porque conjuga muitas áreas diferentes da Geologia e era quase como uma caça ao tesouro! Em cada projeto criávamos uma espécie de modelo, depois iríamos planear metodologias para testar aquele modelo: validou ou não validou?, é ou não é? Portanto, gostei muito da experiência e repetia tudo outra vez!

4. E como investigadora, acha que algumas competências que adquiriu no mundo empresarial foram úteis e agora aplica-as?

Eu sinto que a experiência que tive na área da prospeção por vezes obriga-me a olhar com outros olhos para as questões. Por exemplo, eu saí da Geologia mineira e vim trabalhar para a área ambiental e um dos locais onde trabalhei foi na mina de carvão de São Pedro da Cova. Havia ali umas anomalias que poderíamos olhar e pensar "Ah, bem, se calhar estas anomalias estão relacionadas com contaminação mineira", apesar de algumas delas se localizarem a montante da mina. E depois aquilo começou-me a provocar um bocado de inquietação, a associação de elementos que estava naquelas anomalias. Tínhamos uma contaminação forte em arsénio, antimónio, e nós sabemos que o Anticlinal de Valongo é sobejamente conhecido pelas mineralizações de ouro e antimónio. Então pensei "Isto quase de certeza que tem aqui um dedinho de background geoquímico anómalo". Regional, até! Portanto, a experiência anterior obriga-me a pensar de outra maneira, a combinar várias áreas do conhecimento. Não quer dizer que não tivesse chegado lá de outra forma qualquer, mas se calhar abre-me horizontes, obriga-me a pensar noutras possibilidades que não são imediatas. Mas é difícil dizer se isso foi uma mais-valia direta. Não sei como é que seria se não tivesse passado por lá… (sorriso)

"A minha avó, Rosalina Celeste Alves da Silva, era britadeira na mina. Partiam o carvão e escolhiam os pedaços, no fundo separavam o carvão da ganga que não tinha interesse económico"

5. Qual foi o ano e onde entrou em Geologia?

Entrei no ano letivo de 2000/2001, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. No primeiro ano o ramo era comum e no segundo tínhamos que optar ou pelo ramo cientifico-tecnológico ou pela área de ensino.

6. E qual foi o primeiro contacto consciente com a Geologia?

Uhm, talvez antes até da escola primária. O primeiro contacto consciente deve ter sido logo assim que eu tenho memória e deve ter começado pelas minas de carvão de São Pedro da Cova, pelas histórias da mina. São Pedro da Cova, de onde sou, é uma terra mineira, caracterizada pelas antigas minas de carvão que encerraram em 1972. Eu nasci dez anos depois, em 1982, mas quase toda a gente tinha um avô ou uma avó que tinham lá estado. A minha avó, Rosalina Celeste Alves da Silva, era britadeira na mina. Partiam o carvão e escolhiam os pedaços, no fundo separavam o carvão da ganga que não tinha interesse económico. Chegou a trabalhar na mina uma tia dela também. Aliás, a mina de São Pedro da Cova foi uma grande impulsionadora do trabalho feminino a nível nacional. E os meus amigos também estavam na mesma situação. Então, como culturalmente era um grande pilar da terra, muitas vezes nas escolas as atividades que fazíamos envolviam a mina, os costumes da mina, a cultura da mina. Havia um grande contacto com os temas geológicos. Claro que nessa altura eu não achava que era Geologia, nem sabia, estava longe de saber o que era a Geologia. Mas tínhamos contacto, quer com os fósseis, quer com a parte geomorfológica e com a mina propriamente dita, e víamos amostras de antracite na escola, era uma coisa comum. Na escola primária, aqui em Beloi, fazíamos muitas vezes este caminho onde estamos, para irmos visitar os moinhos, para aproveitarmos um bocado o contacto com a natureza e recolher fosseis. Talvez um contacto inconsciente, na medida em que nós não sabíamos que aquilo era a Geologia. Mas tínhamos consciência que, por exemplo os fósseis representavam organismos que já não estavam vivos, que era uma coisa que não havia agora, mas que teriam vivido há muitos milhões de anos. As professoras explicavam, mais ou menos, o processo de fossilização. Embora nós todos achássemos que o que encontrávamos aqui, na zona do anticlinal, nos xistos, ardósias, eram peixes! Não estava tudo mal, era próximo! (risos)

7. E faziam a ligação de que, sendo peixes, isso podia dizer que aqui, estas rochas, se tinham formado no fundo do mar?

Sim, mas isso não era a consciência, era a curiosidade. Isso despertou-me imensa curiosidade para a paleontologia, sempre fui muito curiosa da paleontologia por causa disto. Pensava "Epá, como é que o mar chegou aqui?", na minha inocência. "Como é que isto pode ser? E como é que isto se formou?" E mais tarde veio a panca dos dinossauros, que todas as crianças tiveram! (risos) O Parque Jurássico, etc. Nós tínhamos noção que aquilo era do domínio das ciências da natureza, não tínhamos consciência que era a Geologia. Mas eu sabia que achava graça a muitas componentes que mais tarde se viriam a revelar da Geologia.

"(...) achei que era uma área deliciosa para se conseguir trabalhar. Porque conjuga muitas áreas diferentes da Geologia e era quase como uma caça ao tesouro!"

8. Foi logo um contacto muito forte. Mas nem todos acabamos a ser veterinários como queríamos quando éramos mais novos. Qual foi o momento em que decidiu ser geóloga?

Eu sempre gostei muito das ciências da natureza. Gostava muito da Geologia e da biologia também. Até ao 9º ano sempre achei que era tudo "ciências da natureza", era assim que nos era apresentado. Depois, se calhar a partir do 10º ano, comecei a ter noção do que eram as ciências da vida e o que eram as ciências da Terra, que havia ali uma diferença clara. Mas eu acho que o ponto decisivo foi quando escolhi Geologia no 12º ano. Pensei, "Eu gosto disto, isto é mesmo giro! Se calhar vejo-me a fazer uma coisa deste género". (risos) E na altura tinha uma professora que nos incentivou imenso. Do programa do 12º ano fazia parte uma componente forte de geomorfologia e geodinâmica, isto em 1999-2000. Havia uma parte que até era a História da Terra. Achava isto tudo muito giro, muito engraçado. E não tinha tido a oportunidade de explorar aquilo [Geologia] de forma tão aprofundadamente como no 12º ano. E os professores nestas coisas fazem muita diferença e eu adorava a minha professora do 12º ano. Tínhamos longas conversas à cerca de ir para Geologia, porque até então estava convencida que ia fazer psicologia! (risos) E dizia, "Então, mas professora, o que é que eu vou fazer com isto? Eu tenho de decidir, e só dá para professor de ciências, não é? O que é que eu vou fazer?". E ela então fez-me ver que não, que aquilo tinhas imensas aplicações. O programa também era um pouco generalista, não era um programa aplicado, não via uma aplicação direta. E ela começou a explicar-me que não, que havia imensos problema do quotidiano que eram resolvidos com intervenção da Geologia e deu-me uns exemplos práticos. E disse que se eu gostasse, para ir sem medo.Quando me candidatei à faculdade, também concorri a psicologia. Concorri para as duas coisas! Eu estava um pouco indecisa, só que era uma disparidade… Na altura, aqui no Porto, a nota de entrada para psicologia era próxima de 18 valores e eu pensei, "Se calhar não vou entrar. Olha, então vou deixar isto nas mãos de Deus. Ponho psicologia em primeiro e Geologia em segundo, e logo se vê no que dá". Se não fosse geóloga, muito provavelmente seria psicóloga, péssima, hoje tenho noção! (risos) Isto às vezes a sorte faz muito ao acaso. Eu achava que tinha um certo fascínio sobre como é que funciona a mente humana, e tenho ainda. Aquela coisa da curiosidade. Sei como é que eu penso, mas como é que pensam as outras pessoas? O que é que as impulsiona? E eu achava muita piada a isso no secundário, nessa fase de decidir, e pensei que se calhar era uma coisa que iria gostar. E acho que é uma curiosidade natural, mas eu vendo o que é a área de atuação de um psicólogo, acho que não tinha o mínimo perfil. Ainda bem que não entrei. Há males que vêm por bem, aquilo foi uma decisão assim um bocado ao acaso, entre as duas áreas que eu achava que gostava mais.

9. Essa professora do secundário, era geóloga?

Era sim! Foi colega do professor Noronha! (risos) Chama-se Luísa Madalena. E da minha turma do 12º ano, só para vocês verem, fomos mais duas pessoas para Geologia, tal foi a conversão!

10. Portanto, foi a envolvência da natureza e uma boa professora que acabaram por a inspirar e dar-lhe confiança.

Sim! Eu entrei com 17 anos na faculdade e acho que era um bocado imatura, ainda nem sabia bem o que é que ia ser a minha vida, o que é que eu queria fazer. Mas eu sabia que, e foi uma coisa que os meus pais sempre me incentivaram,  tinha que escolher algo de que eu gostasse. Podia, se calhar, nem vir a exercer, mas tinha que tentar fazer algo que gostasse. Quando optei por Geologia, a minha mãe foi sempre a minha fã número um! Disse sempre "Oh filha, vai se tu gostas!", mas depois nas entrelinhas o que eu acho era que eles gostavam mais que eu fizesse "saúde", porque era mais seguro. Naquela altura, em 2000, havia muita falta de enfermeiros. Muita. Falava-se imenso no noticiário e então tive muitos colegas que optaram pela área da saúde. Foram fazer enfermagem, fisioterapia, e era aposta segura, naquela altura. A minha mãe não queria ser ela o obstáculo, que eu mais tarde dissesse "Ah, mas eu não fiz e gostava muito de ter feito e tu foste responsável". Ela nunca quis isso e eles, os dois, os meus pais, deram-me sempre liberdade total para escolher, para traçar o meu caminho. Bom ou mau, era a minha responsabilidade, deram-me sempre essa liberdade. Mas eu sabia perfeitamente que naquelas entrelinhas havia um "Mas tu já consideraste enfermagem? Tem tanta empregabilidade!", "Ó filha, tu fazes o que quiseres, mas tu vê bem, será que vais conseguir arranjar trabalho, no final? Achas? E vais fazer o quê? Vais dar aulas?". Era assim! (risos) E depois lá fui eu, um bocadinho a medo, a pensar que se calhar dei um tiro no pé e depois vou ter que assumir que fiz asneira e afinal não gostava de nada disto. Porque o primeiro ano para mim foi um suplicio, confesso. Pensei em desistir do curso...

11. Tinha pouca Geologia?

Tinha pouca Geologia! Era só matemática, química, física, "Epá, isto é tão triste!" Eu pensava que vinha para um curso explorar aquilo que eu tanto gostava, mas aquele aprofundar do secundário, se continuasse assim não ia querer acabar.

12. Mas fez disciplinas de Geologia no primeiro ano, certo?

E foi o que me aguentou! No primeiro ano tínhamos Geologia geral, essa adorei, confesso. Era ao que me agarrava! (risos) Tínhamos Cristalografia e Mineralogia, na altura era com o professor Frederico Sodré Borges. Depois, no segundo semestre, se não estou em erro, tínhamos uma disciplina que era Complementos de Geologia, com a professora Manuela Marques. O resto era tudo matemáticas, químicas… E eu compreendo que seja preciso, mas para quem vem cheio de pica, "Agora é que vai ser!"… Não foi! (risos)

13. Das pessoas que entraram no seu ano, diga-nos dois ou três nomes de colegas que estejam a trabalhar em geociências.

O meu ano foi muito próspero em geocientistas, felizmente. Entrámos 69, éramos bastantes, e cerca de metade queria fazer ensino e a outra metade o ramo cientifico-tecnológico. E dessa malta toda, ainda hoje guardo muito bons amigos, uns da área de ensino, que se mantiveram no ensino, e outros da área de cientifico-tecnológico, dos quais uma grande percentagem de pessoas está no ativo. Do meu ano é, por exemplo, a Joana Ribeiro e o Nuno Durães e há pessoas ligadas ao petróleo, como o Rui Gomes. Havia pessoas ligadas à geotecnia e também várias a trabalhar em prospeção mineral, inclusive algumas que estão fora do país. Tenho vários amigos também a dar aulas no ensino secundário, embora a maior parte tenha optado pelo ensino privado, porque nos primeiros anos após terminarmos o curso, havia muita dificuldade de colocação de professores. Então houve algumas pessoas que acabaram por desistir de encontrar trabalhos noutras áreas e abdicar da componente de ensino, enquanto outras optaram por ficar mais próximas de casa, em colégios privados e noutras alternativas que, entretanto, apareceram.   

Então, mas que áreas gostavas de explorar?", eu respondi que se pudesse, gostava de explorar paleontologia. E ele disse "Esquece lá isso!"

14. Nos tempos em que foi estudante, considerava-se uma aluna média, boa ou muito boa?

Era boazinha! (risos)

15. Qual foi a tua disciplina preferida e quem a lecionava?

Eu gostava de muita coisa, tinha uns gostos um bocadinho diversificados. Gostava das petrografias, petrologias, também gostei da geomorfologia, mas eu tinha um guilty pleasure, pelas razões que já vos fui explicando há bocadinho: gostava muito de paleontologia e, então, era a minha disciplina favorita. Eu tenho de dizer a verdade. E não tem nada a ver com o que eu fiz, entretanto. Mas era a paleontologia. E quem lecionava era a professora Helena Couto.

16. E o gosto pela disciplina teve a ver com a professora ou com a matéria?

Com a professora Helena, mas também pela matéria e pelo ambiente, porque era uma curiosidade que eu tinha e que nunca foi abordada no secundário, em lado nenhum. Portanto, tinha muita curiosidade sobre como se formavam os fósseis, que implicações é que tinham, em conhecer as subáreas que a disciplina tinha, no fundo, sobre a História da Terra. Claro que o estudo das rochas nos dá muitos indicadores, mas o saber como é que era a Terra antes de estarmos cá, passa muito pela paleontologia. E quando percebi que aquilo tinha implicações nas datações relativas, nos ambientes, eu disse, "Epá, isto é fascinante!". Depois, eu tinha tido contacto com a paleontologia durante a minha vida toda e, por acaso, aqui no Porto era o que abordávamos mais. Falávamos dos graptólitos, das trilobites, das plantas do Carbonífero... E eu, que vi isto a minha vida toda e nunca soube os nomes, o que isto era, como viviam, nada, até pensava que eram peixes! (risos) Foi assim uma coisa meio revolucionária para mim, portanto, achei aquilo maravilhoso. Gostei muito. Ao ponto de uma vez um professor me ter perguntado, já nas fases finais da conclusão da licenciatura, "Patrícia, gostavas de fazer doutoramento?", e eu disse que nunca tinha pensado nisso, "Então, mas que áreas gostavas de explorar?", eu respondi que se pudesse, gostava de explorar paleontologia. E ele disse "Esquece lá isso!". (risos)

"Depois, logo a seguir, veio o ouro. E pronto, o ouro faz brilhar os meus olhos"

17. Então, quer dizer que podia ter sido psicóloga ou até paleontóloga…

Foi muito difícil traçar um caminho para mim. As coisas foram acontecendo muito naturalmente, porque eu gostava de áreas muito diversificadas, gostava de coisas muito diferentes. Quando uma pessoa tem um caminho claro diz "Eu gosto muito disto, é isto que eu quero fazer", mas eu não, acho que andava às vezes um bocado perdida porque gostava daquilo, mas também gostava da outra coisa e gostava de experimentar aquela outra.

18. Sente que foram também as oportunidades que se foram apresentando?

Foi! Foi um bocadinho por aí, acho que nunca tive um objetivo muito claro, dentro da Geologia, sobre uma área que gostava mais. Eu sei que há pessoas que sim, que desde sempre dizem que gostavam mesmo de trabalhar numa área, mas havia várias coisas de que eu gostava. E, portanto, acabou por ser um processo muito natural, as coisas foram acontecendo naturalmente, e por sorte gostei de tudo em que tive oportunidade de trabalhar.

19. Como profissional, lembra-se de qual foi o primeiro trabalho remunerado?

Eu fiz o meu estágio profissionalizante na comissão de coordenação de desenvolvimento regional [CCDR], portanto, já estão a ver… já fiz coisas muito diferentes. Era um trabalho que passava muito por coisas de gabinete, um trabalho às vezes assim um bocadinho burocrático, mas também tinha uma componente de Geologia. Não pura e dura, era mais administrativo, e passava muito por inspeções a pedreiras e avaliações dos planos de recuperação paisagísticos. Depois, o primeiro trabalho remunerado foi já na área de prospeção. Não era para ouro, era para estanho e tungsténio, na área da Bejanca. Depois, logo a seguir, veio o ouro. E pronto, o ouro faz brilhar os meus olhos. (risos) E aí já era mais trabalho de geóloga de prospeção, recolhíamos amostras, havia a componente de cartografia, processamento de dados e, mais tarde, o planeamento de sondagens, o modelo conceptual… dependia muito das fases de cada projeto, do estado de maturação de cada projeto.

"Ela foi perseverante até ao fim, manteve-se fiel ao que gostava e isso eu acho que é inspirador para as mulheres nas geociências"

20. Acompanhou todas as fases?

Sim, e tive a facilidade de começar como geóloga de prospeção e depois ter sido promovida para geóloga de projeto. Tinha uma equipa que colaborava comigo e tinha a responsabilidade por aquilo que era feito dentro da equipa, pelo programa de trabalhos, orçamentos, gestão da equipa, pelo trabalho, pelo rigor do trabalho, havia muita coisa e foi uma fase de maior responsabilidade.

21. E porquê largar isso e voltar para a academia?

É o costume, eu não consigo dizer eu gosto disto, não gosto daquilo. E isso dificulta muito a minha vida, às vezes. (risos) Mas nessa altura, estava a trabalhar na tal empresa, a Plethora, e tínhamos um trabalho mais frequente na área de Espanha, no sul, e começou a ser difícil compatibilizá-lo a nível familiar. Foi uma altura em que a minha mãe ficou doente e era ela que segurava as pontas com as crianças. Então pensei que, se calhar, estava na altura de procurar alguma coisa mais próxima da família. E foi uma feliz coincidência, porque o primeiro projeto em que eu trabalhei quando voltei para a faculdade foi o projeto Coal Mine, em torno da mina de São Pedro da Cova. Mais perto era impossível! Mas eu concorri naquela de "Isto não vai dar, há tanto tempo que não faço nada". Fiquei muito feliz, porque ficava próxima de casa, era uma área que me dizia muito. Portanto, foi mais o enquadramento familiar que me motivou a fazer essa mudança.

22. Durante o tempo em que foi aluna, era participativa, colocava muitas questões?

Os professores podem dizer melhor do que eu, mas acho que era um bocado fala-barato. (risos) É natural que no primeiro ano não fosse tão participativa, até porque era aquela coisa de provinciano, chegar ao Porto e é tudo muito grande e tudo novo. Mas os cursos de Geologia têm uma vantagem muito grande que é a descontração. Acho que os geólogos têm uma descontração natural, que é fácil falar com eles. Não havia aquela distância de tentar abordar um professor para fazer uma pergunta, isso era uma coisa que não existia, não tínhamos isso. Se tivéssemos alguma curiosidade era fácil perguntar "Então, mas ó professor, olhe, eu não percebi isto, porque é que isto é assim?". Era fácil e acho que isso também facilitava. À medida que uma pessoa vai evoluindo, deixa de ter tanta vergonha em perguntar o que lhe vai na alma, mesmo que pareça uma coisa ridícula. 

23. Existe algum geocientista pelo qual nutra uma admiração especial?

Há muitas pessoas que eu admiro dentro da Geologia e seria ridículo estar a dizer "Ai não, não". Tenho imensas influências na minha vida, mas desde miúda que tinha uma referência, que na altura não era bem uma referência, era admiração por uma personalidade. Nessas fases em que tinha a minha curiosidade mais virada para as áreas da paleontologia, cheguei a ter livros da história da Terra, que falavam de fósseis, e lembro-me perfeitamente de ter visto imagens de uma paleontóloga britânica, que vocês certamente conhecem, a Mary Anning. Lembro-me, já depois de ter entrado em Geologia, de ter pensado assim, "Bolas, no século XIX ser geocientista devia ser muito difícil". E comecei a perceber as dificuldades que ela teve, como não poder ser aceite na Geological Society of London, por ser mulher. Ela acabou, em muitos aspetos, por não ter a sua credibilidade científica reconhecida. Era conhecida em todo o mundo, mas depois no círculo dos homens das geociências britânicos não lhe davam o crédito. Ela foi perseverante até ao fim, manteve-se fiel ao que gostava e isso eu acho que é inspirador para as mulheres nas geociências. Depois, de entre as pessoas contemporâneas, tenho imensas referências na Geologia, inclusivamente colegas com quem trabalhei. Por exemplo, o John Morris Pereira, que trabalhou comigo na Medgold [Resources], o Romeu Vieira, que também trabalhou comigo. Já ao nível da investigação, aí a lista goes on and on. Claro que as referências históricas são muito importantes para percebermos o contexto das coisas e a sorte que temos, às vezes, por termos nascido no sítio em que nascemos e no contexto social em que vivemos. Mas acho que onde vamos beber mais conhecimento é, sem dúvida, aos nossos colegas, a quem trabalha connosco, aos nossos professores. O nosso caminho, no dia a dia, é feito com os nossos colegas.

24. De tudo o que já fez e faz, do que é que mais gosta?

Tudo o que for trabalho de campo. Tudo. Eu acho que nós somos uns verdadeiros privilegiados, na Geologia, precisamente por isso, temos um contacto muito próximo com a natureza. É bom para quem gostar, obviamente. Porque também sei que há pessoas que não gostam. (risos) Desde o reconhecimento, à recolha de amostras, à cartografia, eu gosto muito de estar no campo. Se calhar, se fizesse só isso, iria sentir falta da outra componente, mas eu acho que isto é uma mais-valia. Se calhar, noutras profissões, noutras áreas, e mesmo nas ciências, não nas ciências naturais, porque obviamente as pessoas das ciências naturais têm um contacto mais próximo com a natureza, faz falta. Acho que ser só "rato" de laboratório ou de gabinete não era para mim. (risos)

25. E do que é que não gosta absolutamente nada?

Detesto fazer tratamento estatístico de dados. Tem de ser, as informações são sempre muito uteis, é ótimo, mas é assim, é uma chatice fenomenal. Acho sempre que falta qualquer coisa, depois vou testar de outra maneira… Não é penoso, mas é o que eu gosto menos de fazer. 

"E para apreciar o trabalho, é a Folha 2 da série da 1:200 000 [Carta Geológica de Portugal, LNEG]. Acho que é arte, aquilo é arte, dá vontade de emoldurar!"

26. De entre as publicações que já passaram pelas suas mãos, carta, livro ou artigo, há algum que goste particularmente?

Gosto de duas, por motivos muito diferentes. Eu tenho uma ligação muito pessoal à carta geológica 9-D [Penafiel], na escala 1:50 000 [LNEG]. É uma relação muito afetiva. A primeira cartografia que fiz foi aqui, na disciplina de métodos cartográficos, trabalhei muito nesta área e conheço muito bem aquela carta. Às vezes bem demais. (risos) E para apreciar o trabalho, é a Folha 2 da série da 1:200 000 [Carta Geológica de Portugal, LNEG]. Acho que é arte, aquilo é arte, dá vontade de emoldurar!

27. Ainda é bastante nova, mas já tem algum momento assim marcante profissionalmente?

Há certos episódios que nos marcam, mas houve um que me deu assim um gozo particular e vou-vos contar o porquê. Logo nos primeiros anos de licenciatura, se não foi no primeiro mesmo, numa aula prática, um professor perguntou a várias pessoas se íamos fazer ensino ou cientifico-tecnológico, e eu disse que estava a pensar fazer o científico-tecnológico. E ele, não sei se por eu ser mulher, ou se achava que não tinha perfil, que era muito feminina para aquilo, não sei exatamente o que lhe passou pela cabeça, mas disse, "Ai Patrícia, não te estou a ver muito no campo". E o professor não era uma pessoa particularmente machista, noutros contextos. Mas aquilo marcou-me, e eu pensei, "Se calhar até há ali um ponto de razão, porque eu ainda estou a começar e não sei bem o que me espera". Depois, quando dei por mim numa das vertentes, se calhar, mais masculina das geociências, que é a prospeção mineira, que é muito um mundo de homens, não assumidamente, mas se calhar internamente pensei, "Será que eu vou conseguir fazer isto? Será que eu vou estar ao nível deles?". Claro que eu dava sempre o melhor naquilo que fazia, mas acho que essa dúvida esteve sempre latente. E, na altura, tínhamos um chefe geólogo que tinha muita experiência, tinha estado a trabalhar em África, tinha experiência no Canadá, e esteve a acompanhar os trabalhos de forma muito próxima. Nós reportávamos semanalmente e mensalmente e depois, a dada altura, ele chama-me e diz, "Olha, nós estamos muito satisfeitos com o teu trabalho e acho que te vamos propor para seres responsável pela equipa de trabalhos". Epá! Não contava com aquilo, não contava, e eu pensei que era a minha validação, a qual eu nem sequer sabia que precisava! (risos) Fiquei responsável por uma equipa e pensei que afinal sou capaz! Toma lá! (risos) E foi uma valorização profissional, foi uma validação. Para mim, foi um momento muito feliz, porque eu não esperava aquilo, de todo. E foi dito por um homem experiente, foi isso, o facto de ele conhecer o meu trabalho. Não foi alguém que apareceu do nada, foi alguém que acompanhou, viu o que eu fiz, e disse "Ela tem o seu valor, não anda a fazer tudo mal". (sorriso)

"Não contava com aquilo, não contava, e eu pensei que era a minha validação, a qual eu nem sequer sabia que precisava!"

28. E agora um embaraço ou um falhanço, há?

O que vocês quiserem! (risos) Há momentos embaraçosos, há falhanços, há tudo! Até hoje ainda me sinto um bocado envergonhada por contar isto, mas olhem, é verdade, e quem diz a verdade não merece castigo. No primeiro ano de estágio, que fiz na CCDR, numa das inspeções que tínhamos de fazer a pedreiras, recordo-me perfeitamente, estavam presentes pessoas ligadas à comissão de coordenação, pessoas da direção regional de economia, o diretor técnico da pedreira, etc. E a dada altura, eles dizem que vamos entrar no escritório e buscar os equipamentos de proteção individual [EPIs], para irmos visitar a pedreira. Entramos no escritório e havia pouquíssimos capacetes em cima da mesa e eu pensei logo "Isto não vai chegar para toda a gente!". E eu, não é, desesperada, para ficar bem na fotografia, estagiária, pensei que vou abdicar do meu "Eu não preciso! Eu não preciso, eu não preciso, isso até despenteia, não é preciso!". Bolas! Entretanto, ele [diretor técnico da pedreira] entra numa sala, traz uma porrada de capacetes e houve capacetes para todos, menos para mim, uma vez que eu disse que não queria, que não era preciso. (risos) Depois tive tanta vergonha de pedir… Portanto, se o Rui Fonseca está a ver isto, desculpe lá! (risos) Tive tanta vergonha e fiz a visita toda sem EPIs. Atenção, não façam isto, ninguém faça isto! Pateta, completamente pateta, fiquei a sentir-me uma parva! (risos) E até hoje tenho vergonha deste episódio. Primeiro, porque fiz asneira, e depois, porque tive vergonha de dizer, "Olhe, desculpe, se afinal tem mais capacetes eu também queria." Eu queria ficar bem na fotografia, não ia tirar o capacete ao meu "chefe". Portanto, fiquei mal na fotografia quando o que queria era o contrário. Mais tarde, quando tive de trabalhar e estar em cima das pessoas por causa das normas de segurança, pensei "Eu nunca devia ter feito aquilo". Era tão parva, tão imatura, muita imaturidade! Se fosse hoje jamais aconteceria. Falhanços também há alguns, às vezes a gente faz trabalho e tenta testar alguns modelos e as coisas não funcionam. Mas isso toda a gente tem.

29. Fora da Geologia, que é incontornável, tem outros hobbies ou outras atividades que goste de desenvolver paralelamente?

Sim, tenho muitos hobbies. Agora o meu hobby é ser motorista dos meus filhos, enfermeira dos meus filhos, cuidadora dos meus filhos… (risos) Um dos que gostava mais, no passado, era cinema. Mas agora é cuidadora a part-time, motorista que os leva a festas de anos.

30. Algum tipo de cinema em particular que prefira?

Gosto de coisas muito diversificadas, mas ultimamente não tenho conseguido ver quase nada. Valha-nos a Netflix! (risos) E a Netflix tem outra coisa… se calhar, lá está, é a minha costelinha de psicóloga, mas adoro aqueles documentários sobre assassinos em série. (risos) Adoro ver aquilo, porque penso o que raio se passa na cabeça daquelas pessoas. Também já pensei sobre o que os psicólogos têm a dizer sobre as pessoas que veem estas series, e isso não deve dizer muito bem sobre a minha pessoa. (risos) Aliás, se alguém for ao meu perfil da Netflix, vai pensar "Esta mulher não é muito normal". (risos) Mas estou um bocado viciada naquilo, palavra de honra. Não é cinema, mas pronto, é o que se vai arranjando.


Intraclasto

O Martelo da fita cor-de-rosa

Como geocoisa especial, a Patrícia escolheu, claro, o martelo! Provavelmente, damos o martelo tão por garantido, como se fosse o quinto membro de um geólogo, que ainda ninguém o tinha escolhido. Mas se há coisa na qual não somos diversos, é exatamente nesta ferramenta: picareta ou bico de pato, quase todos usamos os Estwing de punho azul. Quem nunca trocou martelos em campanhas com outros colegas, que martele a primeira pedra. Mas com a Patrícia, isso não acontece ;)


Geomanias

Rocha preferida? Granito

Mineral preferido? Água marinha [variedade de berilo]

Fóssil preferido? Ectillaenus, uma trilobite


Era, Período, Época ou Idade preferido? Paleozoico!

Martelo ou microscópio? Martelo

Trabalho de campo ou de gabinete? Campo

Pedra Mole ou pedra dura? Dura


Unidade litoestratigráfica preferida? Formação Santa Justa

Amostra de mão ou lâmina delgada? Mão

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Metálicos! Esta é fácil

Lusitânica ou Lusitaniana? Lusitaniana


Teaser da Entrevista