António Chambel

Janeiro 2024






HIDROGEOLOGIA

SÓCIO APG Nº O665

Nascido no Sardoal, Abrantes, é hidrogeólogo e professor na Universidade de Évora. Adora campanhas de sondagem e, apesar da sua vasta experiência, ainda fica nervoso na "hora H" de saber se um furo vai dar a água que se espera. Tem-se destacado particularmente no panorama internacional, nomeadamente nos programas de água das Nações Unidas.

"Tenho pena que não falem mais com os hidrogeólogos para perceber o que podem fazer para melhorar a gestão [da água]. Acho que falta muito isso, a nossa intervenção junto do estado e das pessoas, para se perceber um pouco melhor esta relação entre as águas superficiais e subterrâneas"

Foi sob a benção do Espírito Santo - o Colégio em Évora - que ouvimos as hidrohistórias do António Chambel, um já sinónimo de água subterrânea na comunidade geológica. Nascido no Sardoal, mas criado entre Angola, Leiria e Montijo, descobriu a Geologia com um entusiasta professor no liceu. Enquanto aluno na Universidade de Coimbra, era calado, mas atento e entusiasta, dinamizando excursões geológicas de alunos pelo país. Ainda com o coração na paleontologia, foi em Évora que se decidiu a redescobrir a hidrogeologia, com vontade de trabalhar em algo prático, que resolvesse problemas das pessoas. Hoje, resolve-os, mas volvidos todos estes anos e experiência, ainda fica ansioso a cada furo, pois nem sempre se encontra água mesmo onde já a houve. Lá fora, é conhecido (e bastante!) pelo 'chato' que está sempre a querer meter água subterrânea em tudo o que são programas hidrológicos. Por cá, liderou um dos maiores projetos de água subterrânea no Alentejo. Neste início de ano, despache os 12 frutos secos e venha conhecer os 11 furos secos e a história deste hidrogeólogo que não se deixa vergar sem água nem virar nas mãos dos vedores.


Entrevista 

Colégio Espírito Santo, Évora, junho de 2023


1. Nome, idade, local de nascimento?

António Chambel, oito de janeiro de 1961, Sardoal. 

2. Conte-nos, como se fosse para leigos, o que faz profissionalmente.

O que eu faço é principalmente prospeção de águas subterrâneas. Tentar encontrar locais onde podemos fazer furos para captar água para abastecimento público, para agricultura ou indústria. Depois faço outras coisas ligadas à hidrogeologia: estudos hidrogeológicos, hidroquímicos, qualidade da água, quantidade, infiltração, etc. Proteção dos aquíferos e das captações. 

3. E a nível de legislação?

A nível de legislação, estive envolvido principalmente no que diz respeito à legislação internacional dos aquíferos transfronteiriços, através do programa internacional de água da UNESCO. Tive alguma influência na discussão para essa legislação internacional. Atualmente, essa legislação está disponível e há vários países que já assinaram acordos na questão da gestão dos aquíferos.

" Ele [professor João Vau] era um entusiasta tremendo da Geologia, a mostrar aquelas coisas todas interessantes. Foi isso que me fez ganhar o gosto por isto"

4. Em que ano e onde entrou no curso de Geologia?

Entrei em 1979 no curso de Geologia na Universidade de Coimbra. 

5. O que o levou a seguir estas áreas?

Um professor de Geologia muito bom, que eu tive no antigo 7º ano [equivalente ao atual 11º ano do ensino secundário], que nos levou a vários sítios para ver coisas interessantes do ponto de vista geológico e que tinha um entusiasmo extraordinário pela Geologia. 

6. Lembra-se do nome desse professor?

Era o professor João Vau, da escola do Montijo. 

7. Montijo? Então já se tinha mudado?

Eu mudei-me muitas vezes quando era jovem. Com nove meses, fui para Angola. Voltei com cerca de quatro anos e até aos seis estive em Leiria. Regressei a Angola até aos meus 14 anos e, quando voltei a Portugal, fui para o Montijo. Do Montijo é que fui para a Universidade de Coimbra e só depois é que vim para aqui [Évora]. 

8. Uhm... e porque é que, estando no Montijo, foi para a Universidade de Coimbra e não para Lisboa?

Porque não entrei em Lisboa. Por uma décima ou algo assim. A minha primeira opção nem sequer foi Geologia, porque entretanto tinha aberto um curso de engenharia do ambiente, e isso entusiasmou-me. Concorri a engenharia do ambiente para Lisboa, Geologia para Lisboa, engenharia do ambiente para Aveiro e Geologia para Coimbra. Entrei na quarta opção. 

9. E voltando ao professor João Vau, lembra-se de algum sítio onde ele vos tenha levado que o tenha marcado particularmente?

Levou-nos à Serra da Estrela e fizemos também uma visita a Coimbra; fomos ver Conímbriga e algumas coisas na zona de Coimbra, provavelmente o Triássico.

10. Ele só vos mostrava a Geologia ou fazia um bocadinho da Biologia-Geologia?

Mexia um bocadinho com o resto, mas era fundamentalmente Geologia. Ele era um entusiasta tremendo da Geologia, a mostrar aquelas coisas todas interessantes. Foi isso que me fez ganhar o gosto por isto.

11. E mais algum colega da sua turma se deixou cativar pela Geologia?

Não. Mais ninguém. O professor só conseguiu cativar um.

12. E que mesmo assim ainda esteve indeciso entre a Geologia e a engenharia do ambiente…

É... porque a Engenharia do Ambiente era muito interessante. Abriu naquela altura e o que é curioso é que passados poucos anos, eu estava a trabalhar com o ambiente. Porque a água e o ambiente têm tudo a ver e acabei por não me arrepender nada.

13. Não se arrependeu então de ter seguido pela Geologia? (tom desconfiado)

Não, absolutamente. 

"Aprendemos logo que aquilo que vemos mais é que temos de trazer, não é o que é 'especial'"

14. Nos tempos universitários, foi um aluno médio, bom ou muito bom?

Era um aluno bom. Tanto que tive mais de 14 e consegui chegar a professor universitário. Só com média de 14 ou acima é que se conseguia lá chegar. Não era um aluno muito bom, mas era bom.

15. Lembra-se se era um aluno mais calado ou se gostava de colocar questões, de participar?

Era mais do tipo calado, mas quando precisava de saber coisas, perguntava. Não era daqueles que estava sempre a falar, mas não ficava com dúvidas.

16. Acha que, à medida que foi avançando no curso, se tornou mais participativo?

Sim, na parte final do curso, bastante participativo, até.

17. Envolveu-se em alguma atividade extra-curricular, extra-académica?

Joguei ténis de mesa na [Associação] Académica de Coimbra. Enveredei também por ser árbitro de futebol. Fui árbitro durante três ou quatro anos enquanto estive em Coimbra.

18. E no núcleo de estudantes ou associação de estudantes, participou?

Não, nunca me meti nisso. Tinha os fins-de-semana ocupados pelo futebol. Mas fizemos, por iniciativa própria enquanto alunos, entre os quais eu estive sempre na linha da frente, várias excursões geológicas ao país. 

19. Conte lá algumas dessas!

Uma delas foram cerca de 15 dias das nossas férias. Arrancámos direito ao Sardoal para ver o contacto com o Paleozoico, depois fomos para a zona de Mação, de seguida Alcains, Castelo Branco e levávamos recados de alguns professores para ir recolhendo amostras de rochas pelo caminho, para eles depois analisarem.

20. Uhm, os professores a aproveitarem o trabalho voluntário dos alunos... (risos)

Aproveitaram… eles prepararam-nos bem! Diziam ''Se vão para aqui, vão ver isto e isto e isto!" e nós lá íamos com as tendas às costas. Lembro-me perfeitamente que trouxemos uma amostra que um professor tinha pedido, do granito de Mação, e quando chegámos lá ele disse ''Mas isto era o que havia lá?'', e nós, ''Não, isto era uma rocha muito especial que nós encontrámos por lá'', e ele ''Pois é, mas isto não é o granito de Mação!''. Na altura, estávamos no 2º ano e pensámos que aquilo é que era a rocha especial, mas era um aplito. Granito havia por todo o lado e não trouxemos uma amostra sequer. Aprendemos logo que aquilo que vemos mais é que temos de trazer, não é o que é "especial".

Da esquerda para a direita: Regina Almeida, António Chambel, Isabel Pinheiro e Teresa Drago. 

"(...) e levávamos recados de alguns professores para ir recolhendo amostras de rochas pelo caminho, para eles depois analisarem" 

21. Quem eram os colegas que alinhavam consigo nisso?

Um deles é o Alcides Pereira, que era do meu ano. Outro era o Luís Neves, que esteve à frente da faculdade [atual vice-reitor na Universidade de Coimbra]. Depois, havia um aventureiro algarvio, do qual já não me lembro do nome. Ele ia connosco para todo o lado e, de repente, desistiu do curso. Nunca mais soubemos dele. Éramos nós os quatro e depois levávamos mais meia dúzia de pessoas. Éramos sempre uns 10 ou 12, mas nós os quatro é que organizávamos tudo. 

Em cima: Jorge Silva, Cristina Bernardes, Manuela, Anabela, Paula Lacerda; em baixo: Rui Coutinho, António Chambel.

" Eu gostava de fósseis, adorava aquilo, ainda hoje adoro, tenho uma coleção de fósseis e gostava muito da descrição, de perceber como é que eles surgiram (...)"

22. Qual foi a disciplina que mais gostou durante o curso?

Se calhar é incrível eu dizer isto, mas foi a paleontologia. Entusiasmei-me pela paleontologia.

23. Quem é que dava essa disciplina?

Era o professor [António Ferreira] Soares. Mas não foi ele que me entusiasmou, foram mesmo os fósseis. Eu gostava de fósseis, adorava aquilo, ainda hoje adoro, tenho uma coleção de fósseis e gostava muito da descrição, de perceber como é que eles surgiram, de como evoluíram daquela maneira e de encontrá-los no campo. Quando fui para o estágio de final de curso, acabei por optar pela petrologia. Tinha um professor de que gostei bastante, que me pôs a trabalhar em petrologia e então fiz o seminário e estágio final nessa área. Era o professor [António Fernando Ferreira] Pinto.

24. Gostou da didática dele?

Sim, ajudou-me bastante. Depois abriu um concurso aqui na Universidade de Évora precisamente para petrologia e para paleontologia. Era feito à minha cara. Vim eu e um colega de Coimbra, o [José] Carrilho, que era do ano a seguir ao meu, e como ele tinha notas melhores que eu, teve o direito de escolher. Ele escolheu petrologia e eu fiquei com a hipótese da paleontologia, mas, nessa altura, já não estava tão entusiasmado, porque já tinham passado uma série de anos sobre a paleontologia, foi só uma disciplina que eu tive, já estava um bocado esquecido daquilo. E pensei também que era uma disciplina meramente académica e eu gostava de ter uma coisa mais prática. Então perguntei ao professor Francisco Gonçalves, que foi quem me aceitou aqui [Universidade de Évora], se não tinha mais nenhuma disciplina que eu pudesse dar, e ele respondeu-me: ''Hidrogeologia! Coisa mesmo aplicada''. Então eu vou para hidrogeologia. 

" Eu sabia que a paleontologia era uma coisa que eu ia estudar para mim próprio (...) e com a hidrogeologia eu podia trabalhar com o público (...)" 

25. Tinha tido hidrogeologia no curso?

Tinha tido, sim.

26. Mas na altura não o tinha cativado…

Não, porque nem sequer foi dada por um hidrogeólogo. Eles não tinham hidrogeólogos na Universidade de Coimbra na altura. O professor Portugal Ferreira, que era da petrologia ígnea, é que dava a hidrogeologia. Portanto, não foi assim uma disciplina que eu considerasse muito apelativa na altura. Era mais a teoria e as coisas assim não resultam. A pessoa não fica com uma boa ideia da disciplina.

27. Então, explique-nos lá uma coisa: chegou aqui, puseram-no a dar hidrogeologia, mas tinha quase tanta experiência nessa disciplina como na paleontologia… como se deu o salto?

Eu queria uma coisa aplicada. Algo que fosse aplicado e que servisse para a população também. Eu sabia que a paleontologia era uma coisa que eu ia estudar para mim próprio e para os outros cientistas, e com a hidrogeologia eu podia trabalhar com o público, podia trabalhar para fora, podia meter-me nas áreas ambientais que eu gostava. Na paleontologia não ia ser assim.

28. Uma vez que não tinha muita experiência em hidrogeologia, quem é que o foi orientando?

Na altura, estava cá um hidrogeólogo muito bom, o professor José Martins Carvalho. Portanto, eu juntei-me a ele, mas na altura ele não era doutorado. Tive então de procurar em Lisboa um orientador doutorado, o professor Costa Almeida. E assim comecei a trabalhar em hidrogeologia.

29. Como é que foram os primeiros tempos?

O Martins Carvalho ajudou-me imenso! Como ele tinha a empresa em Lisboa, levou-me inclusivamente para lá e para trabalhar em Trás-os-Montes, com um projeto que eles lá tinham. Tive acesso aos ficheiros dele, tudo o que eles tinham, relatórios, etc. E fui estudando as coisas. Depois, entrei no mestrado e a partir daí entrei na hidrogeologia a sério.

30. Estudou com uma referência da hidrogeologia, mas hoje é o próprio António uma referência na área. Vê-se como tal?

Vejo-me mais a nível internacional do que nacional, curiosamente.

31. Sente que tem mais reconhecimento lá fora?

Sim, claramente. Como pertenci ao Concelho Mundial da Água, à UNWater, estive presente nas reuniões da UNWater, trabalhei mais de 20 anos com a UNESCO, no programa internacional hidrológico da UNESCO, e com a INBO [International Network of Basin Organizations]. Portanto, conheço toda a gente, conheço os dirigentes de todos estes grupos e eles conhecem-me.

32. E cá?

Cá, acho que continuo a ser um bocadinho desconhecido desse ponto de vista. Foi lá [no estrangeiro] que eu chamei a atenção para os principais problemas de água no mundo. 

" Acho que são mal geridas por desconhecimento, falta de governança, falta de conhecimento do que é a água subterrânea, de quais são as consequências da exploração de água subterrânea por exemplo (...) para as águas superficiais. "

33. Mas nós também temos problemas de água em Portugal. Teve de ir lá fora para serem as entidades internacionais a forçar Portugal a ter melhores práticas?

Eu sinto mais isso, sim. Fui mais influenciador a nível das perspetivas internacionais da água do que alguma vez fui aqui em Portugal. Também é verdade que dediquei 16 anos da minha vida à IAH [International Association of Hydrogeologists] e a estas reuniões internacionais, e não estive tão presente aqui. Tenho a noção de que internacionalmente quase toda a gente me conhece, inclusivamente os embaixadores dos países da UNWater, que já diziam ''Aí vem o chato da água subterrânea, que aparece e tenta meter água subterrânea por todo o lado''. Houve instituições dessas às quais eu cheguei e até então nem uma palavra sobre água subterrânea existia nos documentos deles. E mal eu entrei, a água subterrânea passou a ser também assunto de debate. Até que, a determinada altura, eles já me consideravam o indivíduo que quando aparecia incomodava um bocadinho, porque estava sempre de mão no ar, ''Então, mas não falta aí qualquer coisa?''. (risos)

34. As políticas de gestão de recursos hídricos e águas subterrâneas, que lhe parecem?

Acho que são mal geridas por desconhecimento, falta de governança, falta de conhecimento do que é a água subterrânea, de quais são as consequências da exploração de água subterrânea, por exemplo, para as águas superficiais. Basta dizer que 97% da água doce são águas subterrâneas e só 3% é que são águas superficiais. E que, se formos a ver, se calhar há 97% de profissionais de águas superficiais e só 3% de profissionais das águas subterrâneas. Serve para percebermos como isto está tão pouco explorado e que, mesmo os estudos que existem, não são do conhecimento geral, do estado e de pessoas que trabalham com águas superficiais, e isso leva a que sejam muito desconsideradas quando, por exemplo, se proíbe a exploração de água subterrânea no maior aquífero da Península Ibérica, que é o aquífero ''T3'' do Tejo [Bacia Tejo-Sado, margem esquerda], com razões que eu não entendo. Porque há sobre-exploração local, mas não há sobre-exploração geral, está-se a desperdiçar água naquele aquífero! Não sei porque é que as pessoas fazem isto. Talvez por desconhecimento total do que se está a passar. Tenho pena que não falem mais com os hidrogeólogos, para perceber o que podem fazer para melhorar a gestão. Acho que falta muito isso, a nossa intervenção junto do estado e das pessoas, para se perceber um pouco melhor esta relação entre as águas superficiais e subterrâneas.

"A nível internacional eu vi como era e isto não muda tão facilmente. A nível do Estado Português, vai acontecer exatamente o mesmo. Não há capacidade de influência"  

35. Não poderá a APG, por exemplo, ter esse papel na sensibilização das entidades competentes?

Perfeitamente! Todas as entidades que o fizerem, são bem-vindas.

36. E isso já está a ser feito?

Na APG, não sei. Mas poderia estar a ser feito, sim.

37. A IAH tem um capítulo português, mas não se coordena com a APG?

Sim, há um capítulo português da IAH e, ultimamente, já temos um acordo com a APG e têm-se coordenado de modo a fazer as divulgações em ambos os sentidos.

38. Na sua opinião, podemos ter esperança ou acha que ainda vai demorar muito para se mudar um bocadinho esta apatia?

Vai demorar muito. A nível internacional, vi como era e isto não muda tão facilmente. A nível do Estado Português, vai acontecer exatamente o mesmo. Não há capacidade de influência. Houve um período muito bom para a hidrogeologia mundial, que foi quando tivemos um hidrogeólogo como presidente do Senegal. Penso que foi a primeira vez que existiu um hidrogeólogo como presidente e aí sentimos que, de facto, houve um salto qualitativo, quando alguém importante era hidrogeólogo. E levou para lá o "Fórum Mundial da Água" [Senegal, 2022]. Foi por causa dele. Agora, se formos olhar para o nosso governo, quem é que lá está de águas subterrâneas? Não está ninguém, nem nunca esteve, creio eu. 

"A água é, seguramente, um dos grandes desafios desta década"

39. Não acha que a água é um dos grandes desafios desta década?

A água é, seguramente, um dos grandes desafios desta década. O Algarve está a começar a sofrer intrusão salina, temos aí alguns problemas que não tínhamos há alguns anos. As alterações climáticas estão a levar a que cada vez haja menos água, principalmente a superficial. Se não conjugarmos isto tudo com as águas subterrâneas, vamos estar em aflições. Depois, começa-se a falar, talvez em demasia, na dessalinização da água. Não sei se será a melhor opção, quando ainda há reservas subterrâneas e, se calhar, poderíamos falar um pouco melhor sobre o modo como utilizamos as águas superficiais e as subterrâneas e sobre a utilização verdadeiramente conjunta destas duas águas.

40. Lembra-se como é que foi o seu primeiro trabalho contratado remunerado?

Lembro-me perfeitamente. Foi um trabalho para as águas termais de Ourives, que são umas águas que existem aqui perto da Amareleja, no Alentejo.

41. O que fez?

Fiz um inventário de campo, os mapas hidrogeológicos, e foi basicamente isso. Foi precisamente o professor Martins Carvalho que encomendou esse trabalho. E, na altura, foi a A. Cavaco que pagou.

42. Há algum colega, sendo ou não contemporâneo seu, que veja como referência?

Eu diria talvez o Alcides Pereira [Departamento de Ciências da Terra, Universidade de Coimbra]. Pelo laboratório espetacular que ele lá tem em Coimbra e pela maneira como sempre se moveu. Talvez seja o colega a quem, neste momento, dê mais crédito. Mas há outros.

43. Gostava de ter feito um percurso como o dele?

Não o invejo, ele esteve sempre na área da petrologia. Agora, o salto que ele deu para conseguir chegar às pessoas é que foi muito bom! Houve uma altura em que falámos sobre o facto de eu trabalhar muito para fora [da academia], e ele também ter esse interesse, mas no caso dele ser mais complicado, uma vez que trabalhava na área da petrologia. Mais tarde, apareceu-me com a ideia de montar um laboratório de radão e isso seria uma boa oportunidade para chegar à sociedade. Foi um salto muito bom que ele deu.

44. Naquilo que é a sua vida profissional, qual é a actividade ou exercício que mais prazer lhe dá?

Acompanhar sondagens.

45. Explique-nos porquê?

Porque eu marco as sondagens com base em vários métodos e depois é sempre uma curiosidade enorme saber se vai dar água ou não. E eu estou ali ao lado nervosíssimo. Quando chego aos 70 metros e ainda não há água e a pessoa está a pagar… eu começo logo a pensar ''Ai ai, se isto não dá água, a pessoa vai olhar para mim e dizer: mas afinal, que profissional é que está aqui?". Ainda há pouco tempo me aconteceu isso. Estávamos com 65 metros absolutamente secos e eu tinha feito três furos ótimos para um vizinho. A pessoa [proprietário do terreno] já estava a olhar para mim com um ar desconfiado e de repente apareceu uma quantidade enorme de água: 20 mil litros por hora, ou coisa assim, e aquilo foi uma festa enorme!

"(...) 97% da água doce são águas subterrâneas e só 3% é que são águas superficiais. E que, se formos a ver, se calhar há 97% de profissionais de águas superficiais e só 3% de profissionais das águas subterrâneas"

46. Explique-nos quais são os métodos que geralmente emprega.

Já utilizei geofísica, geoelétrica, VFL [Very Low Frequency], que é o método eletromagnético, e resultaram bastante no início da minha carreira. Até que fui aprendendo a olhar mais para as rochas... Ah, também utilizei muito a interpretação de fotografia aérea, tridimensional, imagem de satélite, para determinação de fraturas, porque eu trabalho fundamentalmente com rochas fraturadas. Hoje em dia, acredito naquilo que vejo, muito na fotografia aérea, mas também nas imagens do Google, para ver onde há fraturas e os seus cruzamentos, para encontrar as melhores localizações. Ainda recentemente fiz furos com base nisso e tiveram um grande sucesso.

47. Como é que define a profundidade a que está a água?

Eu dirigi aqui o maior projeto de águas subterrâneas alguma vez feito em Portugal. O projeto de inventariação hidrogeológica de todo o Alentejo. Dessa altura, tenho 13 mil dados sobre o Alentejo todo: profundidade, caudais, diâmetros, etc… Portanto, essa base de dados, quem tem sido incrementada à medida que vamos avançando, serve-me ainda de base para quase tudo isso. Sei as médias das captações em todos os aquíferos do Alentejo, as médias de produção, etc. Se uma pessoa me diz que tem um terreno em tal sítio, eu sei imediatamente que deve fazer um furo, por exemplo, até aos 80 metros, que não deve ter esperança de ter mais de um litro por segundo, ou dois litros por segundo, ou 10 litros por segundo. Tenho mais ou menos uma ideia disso. Claro que como isto é um bocadinho aleatório, há falhas no meio disto tudo, tanto no caso de 1L/s, como no dos 10L/s. Mas aproxima-se bastante da realidade, porque tenho uma boa base a nível estatístico do que se passa.

48. Então e se, de repente, fosse para o Gerês?

É a mesma coisa. Pelo conhecimento das rochas que tenho, comparando com as rochas que tenho no Alentejo, se forem as mesmas, tenho exatamente os mesmos resultados. Às vezes, há pequenas diferenças, mas que, no terreno, também consigo perceber se está mais ou menos fraturado, se posso ter mais ou menos sucesso. Neste momento, estou com um grande projeto no sul de Angola, junto à Namíbia, e são rochas fissuradas. Eu fiquei todo contente. Toda a gente se assusta com as rochas fissuradas, mas aquilo eu conheço. Estou a trabalhar com gabros, gabro-dioritos, dioritos, rochas ultramáficas, que existem no Alentejo e existem lá. Vou este ano [2023] para lá fazer furos e espero que os resultados sejam idênticos aos resultados daqui.

"Eu dirigi aqui o maior projeto de águas subterrâneas alguma vez feito em Portugal. O projeto de inventariação hidrogeológica de todo o Alentejo. Dessa altura, tenho 13 mil dados sobre o Alentejo todo (...)"

49. A furação em basaltos, na ilha da Madeira, por exemplo, não deve ser muito fácil, pois não?

A Madeira deve ser diferente. Nunca fiz furos na ilha da Madeira, mas rochas vulcânicas têm as suas particularidades. Têm muitas zonas que se desmoronam, como as areias, e têm outras zonas bastante rijas, como as escoadas lávicas, de modo que deve ser complicado. Cada vez que se apanha uma zona em que está a cair, intercalada com zonas muito rijas, pode criar aqui algumas situações complexas de gerir.

50. Gosta de um desafio?

Gosto!

51. Está preparado para sair do fraturado, que é a sua zona de conforto?

Estou, pois!

52. O que é que menos gosta de fazer?

Em temos profissionais? Acho que não há nada que eu não goste de fazer. Há coisas que não sei fazer e, como tal, não gostaria de as fazer para não as fazer mal. Uma delas é a modelação, que está na moda. Não é que não gostasse de fazer, eu adorava fazer modelação, mas não quero fazer porque não sei fazer aquilo e neste momento também não vou aprender.

53. Não tem muita carga burocrática/administrativa por causa das reuniões todas a que vai? Ou isso ainda lhe dá prazer?

A nível internacional, isso deu-me prazer durante muito tempo, porque estava nos órgãos de decisão da água a nível mundial. Já de reuniões burocráticas de outro tipo, não gosto tanto, aquelas obrigatórias a que temos de ir custam. Às vezes, coisas que se despachariam em meia hora, demoram três horas, porque as pessoas não se calam. Nas reuniões internacionais, se estão marcadas para uma hora, é uma hora que demora e nada mais. Não vão para três ou quatro horas, como aqui. E as pessoas são objetivas. O português fala muito, demais. Muita conversa. (risos)

54. Qual é a sua publicação favorita na área das geociências?

Talvez a publicação que eu gosto mais é uma que fiz para o Instituto Geológico e Mineiro de Espanha [IGME], que é uma compilação da hidrogeologia de Portugal, em 2006.

55. Se tivesse de escolher um momento ou um evento na sua carreira que o marcou, qual seria?

A organização do Congresso Mundial de Hidrogeologia que organizei em Lisboa, congresso da Associação Internacional de Hidrogeólogos [35th IAH Congress, 2007].

56. Porque é que é o momento mais marcante?

Porque fui eu que propus, fui eu que organizei, fui o chefe da organização, comandei tudo e tive umas 800 pessoas, quatro excursões, enfim… uma coisa absolutamente complexa. Depois, já estive em mais organizações destas, noutros países, mas nunca como organizador principal. Sei o trabalho que isso dá e acho que correu muito bem. Resultou numa publicação também muito boa e estou muito satisfeito com isso.

57. Foi marcante porque teve aquelas pessoas no seu território, mas também pelo que surgiu depois desse evento?

Foi isso e foi o que projetou a seguir. Foi isso que me levou depois à presidência da IAH.

58. Qual foi um dos momentos mais complicados ou que pode considerar um falhanço na sua carreira?

Os momentos mais embaraçosos geralmente estão ligados a falhanços na área da hidrogeologia. Lembro-me que, uma vez, a fazer furos no aquífero cársico de Elvas, fiz 11 furos sem água. Onze! (ar apreensivo) E ao lado havia gente com imensa água. Isso levou a que eu pensasse duas vezes em relação a encontrar água em meios cársicos. Não é mesmo nada fácil.

59. Considera esse o seu maior falhanço?

Então não é? Onze furos sem água? É um desastre completo. Mas acontece, pode acontecer. Mas é muito raro.

60. Como é que se recupera de onze furos secos?

Recupera-se não voltando a furar em rochas calcárias. (risos) Nunca mais fiz nada! (risos) Não, por acaso não é verdade. Já fiz alguns com bastante sucesso noutros sítios, mas em que havia mais certeza de ter água. Quando se faz um furo ao lado de dois ou três que têm água, é mais fácil ter sucesso. Foi isso que aconteceu noutras circunstâncias. Nas zonas cársicas pode-se acertar ou não.

61. Tem algum hobby?

Além de colecionar selos, não me lembro de mais nenhum hobby. Principalmente portugueses, mas tenho alguns estrangeiros também. Dos portugueses tenho a coleção praticamente toda.

62. Quando é que surgiram os selos na sua vida?

Ainda estava em Luanda. Tinha uns 10 ou 11 anos quando me deram uma coleçãozinha de selos e eu comecei.

63. Quantos selos é que tem?

Uns milhares, mas não sei quantos ao certo.

64. Ainda guarda os que vêm nas cartas que recebe?

Sim, ainda guardo. Agora compro directamente aos CTT todos as que saem. Deixei-me de andar à procura das cartas.

65. Já saiu alguma série de selos dedicada à hidrogeologia ou à água?

Ainda não. 


Intraclasto

Radiestesia: a história de um vedor

Como intraclasto, o António contou-nos a história de um vedor... porque de hidrogeólogo e louco, todos temos um pouco

"Tenho uma história para partilhar sobre vedores, aqueles senhores que andam aí com uma varinha. Uma vez encontrei um aqui perto de Évora, que estava a furar no seu próprio quintal e, por curiosidade, fui lá. Falei com ele, o furo estava com 70 metros, não tinha água ainda, e o senhor, com a varinha lá ao lado, a dizer que a varinha se virava e que tinha de ter água. E eu disse-lhe ''Mas 70 metros numa rocha destas já é demais''. Então o senhor perguntou-me o que eu achava que ele devia fazer e eu disse-lhe que o melhor era mudar de sítio e experimentar fazer furos mais curtos, de maneira a tentar arranjar água mais depressa. Ele disse-me que ia começar outro furo. 

No dia seguinte, voltei lá. O furo estava com 130 metros de profundidade, no mesmo sítio, e eu, novamente, falei com ele e disse-lhe ''O senhor continua a não ter água, é só pó, porque é que o senhor não mudou de sítio?'' e ele respondeu-me ''Ah, não, porque eu continuo aqui com a varinha e isto continua a dar. Mas amanhã mudo de sítio. Qual é a sua opinião?'' e eu voltei a dizer a mesma coisa.

Chego lá no dia seguinte, 230 metros, e ele no mesmo sítio e o furo seco. Voltou a perguntar-me o que devia fazer e eu ''Estou farto de lhe dizer, mude isso de sítio!'' e ele continuou a dizer que aquilo continuava a dar-lhe lá na varinha, mas prometeu mudar.

No dia seguinte, mesmo com a promessa de mudar, já ia com 270 metros. Voltei a dizer-lhe o mesmo e, finalmente, lá mudou de sítio no dia seguinte. Apanhou água num furo, depois fez outro e apanhou água noutro furo, logo aos 40 metros. Mesmo assim, ele punha-se ao lado daquele buraco e dizia-me ''Mas isto tem água! Tem de ter água!'' e eu ''Mas tem água onde? Se já vai nos 270 metros e continua seco, daqui a nada você vai chegar ao outro lado do mundo''. Fui-me embora e passados uns dois anos passei lá. Por curiosidade, fui cumprimentar o senhor. Aproximei-me e ele olha assim para mim (olhar desconfiado) e diz ''Ah, é você!? Nem venha aqui para falar comigo! Você é que é o culpado de eu ter feito ali 270 metros e não ter aprofundado um bocadinho mais. Mais 10 metros e eu tinha tido água naquele furo, ouviu?''. 

O homem gastou um dinheirão naquilo. Duzentos e setenta metros e eu sempre a dar-lhe bons conselhos. Acabou por arranjar água por causa dos meus conselhos e ainda ficou zangado comigo. Aos 70 metros dizia-me que ''aqui mais 10 metros e tem'', e isto para os 130 metros, 230 metros e 270 metros. E iria continuar"


Geomanias

Rocha preferida? Obsidiana

Mineral preferido? Mica, a biotite

Fóssil preferido? Tyrannosaurus rex

Unidade litostratigráfica preferida? Complexo xisto-grauváquico, nasci em cima dele.

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Metálicos... gosto dos brilhos

Era, Período, Época ou Idade preferido? Pliocénico, é aquele que me dá mais água. Aí eu sei que acerto sempre.

Trabalho de campo ou de gabinete? Campo



Martelo ou microscópio? Martelo

Amostra de mão ou lâmina delgada? Amostra de mão

Pedra mole ou pedra dura? Pedra dura

Ortóclase ou Ortoclase? Ortóclase


Teaser da Entrevista