Maria do Céu Sobral

Setembro2022




COMUNICAÇÃO/ENSINO

SÓCIA APG Nº O1366


É natural de Sernancelhe e decidiu ser geóloga logo na primeira infância, por culpa de um documentário. É professora e trabalha em conservação do ambiente no Centro Interpretativo Aldeia da Faia. Adora granitos e ir para o campo 'ver afloramentos'. 

"(...) um professor que foi meu (...) eles continuam todos meus, não é? Os professores são para sempre!"

"Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu", no final de agosto, sob o sol intenso do meio-dia, atravessando muitos quilómetros sem ver uma única rocha sedimentar, cheguei à primeira aldeia portuguesa a ser submersa pela construção de uma barragem. No Centro Interpretativo da Aldeia da Faia, esperava-me a Maria do Céu. Após um café, cinco minutos de conversa e muitas referências a Aquilino Ribeiro, já me tinha arrebatado. Há pessoas assim. De bem com a vida, intensa e entusiasta, a Maria é a anfitriã perfeita da região onde cresceu, preocupada em dinamizar o chão que conhece tão bem, com a certeza de que é esse o caminho para preservar todos os chãos. Venham conhecer a miúda naturalista que, do alto dos seus cinco anos, já com toda a convicção que ainda hoje a caracteriza, decidiu que ia ser geóloga. E cumpriu! Ah, e se forem a caminho de Viseu, visitem Sernancelhe. Mas com a Maria. Metade da experiência é ela!


Entrevista 

Centro Interpretativo Aldeia da Faia, agosto de 2021


1. Nome, idade e local de nascimento.

Maria do Céu Sobral. Tenho 41 anos. Nasci em Viseu, mas sou natural da freguesia do Carregal, do concelho de Sernancelhe.

2. Se tivesse de resumir numa única frase o que faz profissionalmente, para leigos, o que diria?

Basicamente, aplico tudo o que aprendi na universidade para ensinar os meus alunos, crianças e adultos, e que passa sobretudo pelo conhecimento das geociências e a aplicação desse conhecimento na conservação do ambiente e no desenvolvimento sustentável.

3. Em que ano e onde ingressou no curso de Geologia?

Ingressei em 1999, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

4. O que a levou a seguir Geologia?

Bem, essa pergunta é um pouco mais difícil, porque não sei muito bem. Mas sei o momento em que o decidi. As primeiras memórias que tenho e que me recordo de quando era criança são aquilo que eu mais gostava de ver na televisão, programas da vida selvagem, programas da natureza. E, a dada altura, recordo-me perfeitamente que não teria mais do que cinco anos, havia um programa no canal 2 [RTP2] onde estava a Katia e o Maurice Krafft, dentro de uma espécie de bote de borracha, a caminho de uma erupção vulcânica e achei que aquilo era simplesmente fantástico. Então perguntei à minha mãe, lembro-me perfeitamente, o que é que aquelas pessoas estavam a fazer, que aquilo era espetacular, o que é que elas faziam, o que é que elas eram para fazerem aquele tipo de coisas. Na altura, a minha mãe respondeu-me que eram geólogos, talvez porque viu no próprio documentário. Ao responder que eram geólogos, eu tomei uma resolução de vida muito importante nesse dia, ser geóloga! (risos) E nunca mais quis ser outra coisa.

5. Então foi esse o primeiro contacto consciente que teve com a Geologia?

Foi. Consciente, foi. Porque os verdadeiros primeiros contatos com a Geologia foram sempre muito inconscientes. Eu morava numa aldeia onde tinha acesso a todo tipo de bicheza, a todo o tipo de planta e podia frequentar livremente a serra, desde as zonas mais baixas, os lameiros, as zonas alagadas e apercebia-me dessa variedade de formas, de texturas, de cores. E se os seres vivos me fascinam pela vida, as rochas sempre me fascinaram pela não-vida e, ainda assim, terem a capacidade de nos dizer o que aconteceu em vidas passadas. Então, nunca consegui separar a biologia da Geologia, mas sempre quis ser mais geóloga do que bióloga. Porquê? Porque acho que só compreendendo os processos de geodinâmica externa e interna, conseguimos perceber também como proteger, como conservar, como usar conscientemente os recursos que o nosso planeta tem.

Na altura, a minha mãe respondeu-me que eram geólogos, talvez porque viu no próprio documentário. Ao responder que eram geólogos, eu tomei uma resolução de vida muito importante nesse dia, ser geóloga!"

6. Tendo em conta que foi aos cinco anos de idade que decidiu que queria ser geóloga, nunca quis então ser outra coisa. Não há aí nenhum desejo oculto de ter sido outra coisa, pois não?!

Não, não. Geóloga estava lá sempre, não havia outra hipótese. Havia eventualmente um interesse em estudar animais, ou plantas ou em ter algum conhecimento mais específico. Depois, quando começou a surgir o movimento Greenpeace, e começou a figurar na década de 1980 a palavra "ecologia", essa palavra começou a fazer parte dos meus termos, porque desde miúda que uso termos muito científicos (sorriso irónico) que ia aprendendo e gostava de usar. Então, quando apareceram esses movimentos ecologistas, esses movimentos verdes e principalmente as atividades do Greenpeace mostradas no telejornal, queria fazer parte desse movimento. Queria fazer parte dessa geração, já preocupada, de alguma forma, com aquilo que estávamos a causar ao planeta e aos ecossistemas onde vivíamos. Mas nunca abdiquei do "geóloga primeiro"! Achei sempre que podia ser geóloga e depois usar isso em função de outros objetivos mais particulares que tivesse dentro da carreira.

7. Na família, quer em gerações anteriores ou posteriores, há mais alguém ligado à Geologia?

Não, nada. Ninguém se interessa absolutamente nada.

8. Foi uma aluna média, boa ou muito boa durante os tempos universitários? E fazia parte dos mais calados ou dos mais participativos?

Na universidade, eu era uma aluna bastante boa. Não o era tanto antes, porque vivi sempre uma vida muito descontraída. Primeiro, ao contrário dos meus colegas, eu sabia o que queria. E via o sufoco na cara deles, de chegarmos ao décimo segundo ano, em cima do exame, e ainda estavam a tentar perceber o que é que queriam fazer na vida. Para mim aquilo era hilariante. "Mas como é que é possível vocês não saberem o que querem ser?! Eu durante toda a minha vida soube o que queria ser!". Eu não conseguia compreender e até hoje ainda não consigo entender muito bem como é que as pessoas crescem, passam pela adolescência, pela escola, tudo, e não se conseguem definir relativamente à profissão, àquilo que gostariam de exercer. Eu via-me muito sempre pelo "faz aquilo que gostas, e nunca precisarás de trabalhar". Eu não considero que trabalho. Eu faço muita coisa de que gosto. durante muitas horas e durante muitos dias do ano (riso). Obviamente, como se vê, era das mais participativas, era sempre referida como "Por favor Maria do Céu, podemos continuar? Está bem, já percebemos o teu ponto de vista! Ok, muito bem, tu davas uma excelente sindicalista, mas agora isso para aqui não interessa". Sim, era das mais interventivas, participativas, porque estava a estudar o que queria estudar e o que gostava e as questões surgiam, e as dúvidas e o debate aceso, que acho que era aquilo que mais me interessava. Obter um bocadinho mais do professor, ir um bocadinho mais à sua opinião pessoal do que propriamente à profissional de "como se deve fazer".

9. Imagino que durante as aulas, sempre que se pudesse desviar a conversa para a Geologia aqui da região de Sernancelhe, fazia-o, verdade?

Sim, sim, tentar perceber alguns fenómenos, porque depois vinha no fim-de-semana a casa e podia levar alguma amostra para alguém tentar identificar. E foi o que se passou também quando fiz as lâminas delgadas dos granitos da freguesia onde moro e consegui fazer lâminas em retalhos do xisto-grauváquico [Grupo das Beiras], para ver se conseguia compreender o que tinha acontecido na região antes da intrusão dos granitos. Recorri à professora Manuela da Vinha, à professora [Ana] Neiva e foi completamente inconclusivo, para mim e para elas, portanto ficou ali um ramo de investigação terminado. (risos)

"(...) só compreendendo os processos de geodinâmica externa e interna, conseguimos perceber também como proteger, como conservar, como usar conscientemente os recursos que o nosso planeta tem"

10. No tempo em que foi estudante, seguramente muitos professores tiveram impacto em si. Se tivesse de escolher o professor que mais a influenciou nessa altura, quem escolheria?

Eu não consigo destacar ninguém em particular. No entanto, e relembrando que fui aluna no Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra, considero que na sua globalidade foram todos muito importantes e acabaram todos por me influenciar de alguma forma. Eu dava valor à personalidade de quem me estava a ensinar, mas também à de professor, de fazedor de cultura e de evolução científica na própria comunidade e no país. Eu queria sempre saber até que ponto o professor era profundo, ou não, na ciência que tentava desenvolver. E por isso tenho de destacar todos e trago uma lista porque tinha medo de me esquecer. O engenheiro [Alexandre] Tavares, um preferido de sempre devido ao seu sentido de humor e a forma, às vezes até um bocadinho patética, com que enfrentava o campo e nos ensinava o que é que queriam dizer as flores amarelas, ou as roxas, ou uma figueira. Pequenos pormenores de pessoas que calcorreiam o campo, que têm conhecimento das coisas para lá do gabinete. Depois, claro, o professor Regêncio [Macedo] e o professor Gama Pereira, o professor Luís Vítor [Duarte], o professor [Manuel Maria] Godinho, o professor [Nabais] Conde, o professor [José] Azevedo e o professor [Pedro] Proença e Cunha, porque também queria assinalar alguém da sedimentologia ou da estratigrafia (sorriso). E porquê este conjunto de homens? Primeiro, pela forma sempre muito apaixonada com que me apresentaram e partilharam o seu conhecimento, sem egoísmos. São pessoas que ensinam sem egoísmo e só não ensinam mais se não tiverem mais conhecimento para dar. Depois, as professoras, porque tenho de lhes reconhecer uma resiliência e tenacidade para trabalharem e vingarem num mundo que era e é essencialmente masculino. Tenho de lhes dar esse valor e fazer referência a duas, que já nos deixaram, infelizmente: a professora doutora [Ana] Neiva, uma referência de humildade, de perseverança, de abandono de uma vida pessoal para prosseguir uma vida científica no feminino, tantas vezes tão difícil na idade em que ela viveu. A professora Celeste Gomes, a professora Helena Henriques, a professora Manuela da Vinha, a professora Lídia Catarino e a professora Ana Isabel [Gomes] e penso que estou a referir todas, pois todas eram um exemplo de profunda tenacidade num mundo de homens. E  ainda porque todas definiram um patamar de profissionalismo e qualidade científica que são muito necessários na luta da igualdade de género. Temos que mostrar que as mulheres na Geologia também existem, também fazem trabalho e também são importantes, têm um lugar que deve ser ocupado.

11. Desempenharam o papel de modelos a seguir.

Exatamente. Eu já o tinha em casa, felizmente. Em casa sempre o tive: as mulheres da minha família ganham mais, mandam mais e têm melhores carreiras, sempre foi assim, quase genético. Mas na faculdade fui um bocadinho surpreendida pela discriminação de género. Não tanto como aluna, notava-o mais sim nas professoras. Nós, as alunas, já não notávamos essa distinção, num grupo de vinte ou trinta já não havia a distinção rapazes/raparigas. Mas acima, na geração acima, ainda se notava muito.

12. Tem algum geoídolo, um geólogo favorito, uma referência? Pode até ser alguém que não tenha conhecido.

Só há mesmo um, é um naturalista, geólogo/biólogo, que é Charles Darwin. Não consigo ter uma referência maior. A sua capacidade de entendimento do mundo natural, a sua observação, a sua paciência, sem esquecer, obviamente, a sua luta interna entre a sua religiosidade e a certeza de ter de fazer uso do método científico para produzir conclusões, é uma luta de vida humana que para mim é apaixonante e que desemboca numa coragem que é soberba, em termos científicos. A coragem de publicar sabendo que a sua convicção religiosa era posta em causa pela sua própria escrita. Depois, puxando um bocadinho para a minha vida profissional, a vida de Charles Darwin, toda a teoria da evolução da vida, a própria evolução da vida, para mim é o tipo de matéria, de conteúdo modular, que eu mais gosto de ensinar aos alunos, em Biologia. E porquê? Porque posso exatamente ir buscar aquilo que eu mais quero, mostrar-lhes que mesmo Charles Darwin usou todo o conhecimento que tinha das geociências, da estratigrafia, da sedimentologia, da paleontologia, até da arqueologia e da antropologia, tudo isso para formular, sem hipótese de segundas interpretações ou de interpretações dúbias, a teoria que nos acompanha até hoje e que mesmo com a sequenciação do ADN continua a ser válida.

"Charles Darwin. Não consigo ter uma referência maior. (...) A coragem de publicar sabendo que a sua convicção religiosa era posta em causa pela sua própria escrita."

13. No seguimento, qual é a sua publicação favorita na área das geociências? Pode ser um livro, um artigo, uma carta, qualquer coisa. Aquela publicação a que volta várias vezes.

The Origin of Species de [Charles] Darwin. É incontornável e, infelizmente, ainda não tenho uma edição original em inglês. Tenho as traduções em português, várias, e um original em inglês, mas de uma última edição que não é a primeira. É incontornável pelas razões que eu disse anteriormente, mas aquele livro que está sempre na secretária é este, (pegando-lhe e folheando), "Geologia: Objectos e Métodos" do Jean Dercourt e do Jacques Paquet, que teve a tradução de um professor que foi meu, o professor [Rui] Pena dos Reis [edição portuguesa da Livraria Almedina]. E porquê? Porque este livro foi comprado por mim com uns tostões amealhados a vender pacotes de leite ao meu pai, que eu detesto leite. Então, vendia os pacotes de leite da escola primária, às escondidas da minha mãe, ao meu pai, por 50 escudos cada pacote. Juntei dinheiro e quando fui com os meus pais numa das viagens em que visitámos alfarrabistas e livrarias, consegui comprar o meu primeiro livro de Geologia. Se não estou em erro, custou 225 escudos.

14. E que idade é que tinha na altura, lembra-se? Foi ainda antes da faculdade?

Foi! Foi na escola primária. (tom de obviedade) Na minha casa não havia muitos livros, toda a gente gostava muito de Aquilino Ribeiro, todos liam muito, mas coisas de ciências não havia. Só havia dicionários e enciclopédias de história e obras de literatura, como Alexandre Dumas, Tolstoi e coisas assim. Mas não havia mais nada, ciências propriamente ditas, livros de ciências como um atlas ou um ABC da vida natural: esse tipo de coisas, na minha casa, não existia. Ninguém era dedicado às ciências. Este foi o meu primeiro livro de Geologia, comprado com o meu dinheiro, e já na altura velhinho, como se vê, cheio de bolor.

15. Enquanto as outras crianças gastavam o dinheiro a comprar cromos para a caderneta do Dartacão...

Nem faço ideia do que é isso. Os meus dias eram assim, (mostrando páginas sublinhadas) lia o que me interessava, o que não sabia. E o que queria saber mais, apontava. Aqui já eram mais consultas para as aulas de ciências do segundo e terceiro ciclo e também para as aulas de técnicas laboratoriais de Geologia do 10º e 11º. E também o usei muito na universidade.

16. E depois quando entrou na faculdade e percebeu que tinha sido o professor Rui Pena dos Reis a traduzir o livro, contou-lhe esta história?

Não... posso ser sincera, e peço desculpa ao professor Pena dos Reis, mas só ontem quando peguei no livro é que reparei que tinha sido ele a traduzir. É que o meu segundo livro de eleição também é uma tradução de um professor que foi meu, que é o professor [Luís Carlos] Gama Pereira, que foi meu... (sorrindo) eles continuam todos meus, não é? Os professores são para sempre! E ainda há pouco tempo falei com o professor Gama Pereira, que passou lá em Sernancelhe e falámos um bocadinho. Esse outro livro é este, (mostrando-o) "As grandes estruturas geológicas" [de Georges Mascle e Jacques Debelmas]. E este eu sabia que tinha sido traduzido por ele, até porque estávamos todos em pulgas à espera desta tradução. Não sei se se recorda, mas foi o meu caso e o de alguns colegas. Foi editado quando eu já estava na universidade, mesmo a tempo de estudar para a cadeira do professor, que era tectónica, uma disciplina espetacular e que era quase uma dream class, porque dávamos todas estas coisas. Posso dar um exemplo de como é que eu consulto este livro. (mostrando muitas páginas sublinhadas a diferentes cores e com notas adesivas) Há um  tsunami, um terramoto ou sismo num dado sítio no planeta Terra e eu gosto sempre de vir ver aqui (segurando o livro) e tentar perceber o que é que aconteceu. Está aqui tudo! A estrutura geológica que deu origem àquele desastre natural, ou a algo climatérico, ou mesmo relacionado com a própria geodinâmica interna da Terra, este é um livro a que recorro muito! Venho sempre aqui e "Ah, deixa cá ver o que é que ali se passa, Onde?, Em que país foi?, É uma bacia?, Não é uma bacia?, É um rift?, É isto?, É aquilo?". Há coisas que a gente reconhece imediatamente, o anel de fogo do Pacífico ou algo desse género, mas para outros sítios mais específicos, este livro continua a acompanhar-me.

Até que a dado momento eu disse assim, "Não, eu sou professora de sciences (...) de geologie". E depois um dos lusodescendentes diz assim, "Oh! Geologia? Não, mas isso não é uma ciência!" E eu, "Desculpa? O quê? Mas quem é que disse isso?", e ele responde a rir, "O Sheldon Cooper."

17. Naquilo que é a sua carreira profissional, qual a atividade ou exercício que mais prazer lhe dá?

Sempre foi o campo. Foi assim que tudo começou em pequena, essa ligação inconsciente que tive à Geologia ou ao mundo natural. Em pequena eu era extremamente curiosa e tive um cão, um pastor alemão que me guardava, por isso eu era completamente livre de explorar, desde que àquela hora eu estivesse em casa ou por ali perto. Nunca nada me meteu nojo, mexi em todo o tipo de animais, posso dizer que consegui arrumar víboras no bolso das jardineiras para levar para casa. Levava ratos, levava toupeiras, levava lacraus, que basicamente são escorpiões. Mexia em tudo quanto era bicho, sem ter absolutamente medo nenhum. Eu não tenho uma memória que seja de alguma vez em criança ter sentido medo de um animal. Nunca. Respeito, sim! É diferente. Ou seja, eu tentar tocar, tentar interagir, observar e ele não querer, ok, tudo bem, está na vida dele, não é? E não mexia só nos organismos vivos, também tinha uma curiosidade um bocadinho mórbida de desmanchar os mortos.

18. Era já ali o gosto pela tafonomia...

Era! (sorriso) Tentar perceber como é que, por exemplo, "Ah, olha um coelho morto, xi, ainda está fresquinho, vou abrir, vou buscar uma faca", fazia esse tipo de coisas estranhas. E trazia calhaus e calhaus e calhaus para casa. Eu dava dores de cabeça imensas à minha mãe. Ainda hoje, e eu já não moro com os meus pais desde 2004-2005, continuo a ir a casa deles para trazer coisas: "Olha! Então isto ainda aqui está?". Já cheio de musgo, porque está no jardim (mimetizando a recolha dos coisas com as mãos) "Vou levar, vou levar!". É o caso destas. (segurando amostras de granitos) Eu recordo-me perfeitamente, não teria mais do que oito ou nove anos, quando descobri esta amostra solta, não foi retirada de lado nenhum. Foi sim observada, mas não sabia o nome. Depois vim a descobrir que era um geode e que, pela natureza das formações rochosas que existiam na minha zona, isto seria quartzo. O meu primeiro cristal ou mineral de eleição foi sempre o quartzo, que era aquele que estava perto e que eu podia observar. (pegando noutra das amostras) Com esta aqui também fiquei muito contente, foi a primeira vez que encontrei este tipo de cristais fumados. Estava num muro de um campo agrícola. (recolhendo outra amostra) E esta é a única amostra que eu conheço, até hoje [na região], de algo que poderia ser já considerado ametista, já mais do que quartzo rosa. Também é daqui da Serra da Lapa. Não conheço ninguém que tenha, mas penso que o roxo é mais evidente do que o rosa. Tenho este tipo de placas com cristais de quartzo assim grandes, (apontando para outras amostras) leitosos e fumados por causa da presença de volfrâmio. Tudo proveniente aqui da minha zona e colhido antes da universidade, antes mesmo do décimo ano, seguramente.

Numa sala inteira, várias salas, todos os meninos com cinco anos querem ser ou bailarinas ou bombeiros ou polícias ou veterinários ou jogadores da bola (...) sapateiros, sinaleiros (...) pronto, era tudo mais ou menos por aí. E depois aparece alguém e diz "geóloga".

19. Já marcou férias propositadamente para um lugar porque queria ir lá ver algum afloramento, mas ocultou da família o verdadeiro motivo da escolha do destino?

(muito séria) Quase sempre. Eu vou sempre ver afloramentos, então estão em todo o lado! Não podemos ir [e não ver], eles estão lá! Agora, não oculto nem vou ocultar.

20. Conhecendo-a, nem dá para ocultar, não é?

Não, nem me interessa ocultar! (gargalhada) Não! Ou querem ou não querem ir. Eu vou sozinha, não há problema nenhum. Eu quero é ir lá ver aquilo.

21. Qual a resposta mais hilariante que recebeu de familiares ou amigos quando à pergunta "O que fazes da vida?" respondeu "Sou geóloga"?

Tem piada, só tenho resposta a esta pergunta desde há cerca de 15 dias. Porque sinceramente, sempre que eu respondia a isso, recebia aquelas respostas banais, irritantes e nada criativas, "Ah, as pedras?! Então mexes nos calhaus e aí nas pedras??", nada digno de nota. Há 15 dias, estava em ambiente social com uns lusodescendentes que vivem na Suíça, os pais é que são de cá, e estava a tentar explicar o que é que eu fazia. Só que nós estávamos todos de máscara, eles a falar em francês aportuguesado e eu a falar português afrancesado, (sorriso) houve ali momentos em que a comunicação não funcionou. Até que a dado momento eu disse assim, "Não, eu sou professora de sciences, de ciências". E depois lembrei-me de repente, porque ainda não tinha usado o termo francês, e disse "De geologie". E depois um dos lusodescendentes diz assim, "Oh! Geologia? Não, mas isso não é uma ciência!" E eu, "Desculpa? O quê? Mas quem é que disse isso?", e ele responde a rir, "O Sheldon Cooper." [personagem fictícia da série estadunidense The Big Bang Theory] (gargalhada) Ri tanto, tanto, tanto. 

"(...) mas o que mais gosto de ver são ninhos e trilhos enormes de pegadas de dinossauros. Quanto maiores, como saurópodes gigantes, melhor! Mas há uma razão para isso: para a gente sentir pequenez. É muito importante nós sentirmos a nossa pequenez!"

22. E nunca aconteceu não saberem sequer o que é a Geologia? Quando contou inicialmente a história da sua mãe, que soube responder o que era a profissão das pessoas que estavam ali na televisão, ainda que tenha ouvido no documentário, ela já conhecia o termo "geólogo"?

Não, isso a mim nunca me aconteceu. E sim, a minha mãe conhecia. Relativamente ao termo "geólogos", o próprio documentário , que eu já voltei a ver, mencionava o termo. E o documentário é chocante, também na altura chocou a minha mãe. Mas já não era novidade eu perguntar esse tipo de coisas, porque por exemplo, quando via vulcões, aí a minha mãe respondia que eram as pessoas que estudavam os vulcões, não dizia "os geólogos". Mas hoje os meus pais sabem tudo sobre Geologia, mas porque foram obrigadíssimos! Também me recordo que nem tudo foi fácil. Quer dizer, para mim foi, mas para a minha mãe, para os meus pais, às vezes foi complicado. Por exemplo, no jardim infantil, antes da escola primária. A minha mãe já estudava na Universidade de Coimbra e então eu andava no jardim infantil da universidade, dos serviços sociais, e perguntaram-nos o que é que queríamos ser. (a sorrir) Pronto, está tudo estragado! Numa sala inteira, várias salas, todos os meninos com cinco anos querem ser ou bailarinas ou bombeiros ou polícias ou veterinários ou jogadores da bola - este na altura até nem era muito normal - sapateiros, sinaleiros - na altura ainda havia muitos sinaleiros - pronto, era tudo mais ou menos por aí. E depois aparece alguém e diz "geóloga". 

23. Chamaram logo os serviços sociais! (risos)

A minha mãe quando me foi buscar estava a psicóloga à espera dela. Já na altura [havia esse cuidado]. "O que é que é isto? Então, mas a criança tem cinco anos, ela devia querer ser uma coisa daquelas que ela observa, bailarina, cantora, costureira, professora, aquelas coisas que as meninas querem ser. E a minha mãe, "Olhe, pois é assim, a minha filha nunca quis ser nada disso. Ela tem esta ideia fixa, ela sabe o que é, porque foi ela que me perguntou. Ela perguntou-me especificamente - o que é que eu tenho que ser para fazer estas e estas coisas - e eu respondi-lhe. Ela há quase dois anos que me diz que quer ser isso, não sou eu que a vou demover". E aí a psicóloga entendeu que eu sabia o que era, que não era uma ausência de conhecimento e uma palavra que eu estava a usar vagamente. Não, não era e também não era algum problema de socialização.

"(...) basicamente o que ele tinha a ganhar era ter pessoas dos diferentes sexos ali a trabalhar conjuntamente. (...) Precisamos de todos! Só assim é que evoluímos como seres-humanos." 

24. Conte-nos um evento ou momento marcante da sua carreira, pode ser mais ou menos positivo. Aquele que marcou.

Escolhi dois, um negativo e um positivo. Quanto ao negativo, escolhi-o porque a entrevista também acabou por o permitir, o focar aqui um bocadinho nos problemas da diferença de género nas ciências e em muitas outras profissões e atividades quotidianas, nas quais as mulheres ainda não têm a representatividade necessária. Quando eu andava na faculdade, havia empresas nacionais e internacionais que iam recrutar os finalistas logo ali, porque no meu departamento nós tínhamos Geologia, engenharia geológica e engenharia de minas e as empresas conseguiam recrutar ali logo uma data de gente, fosse para autoestradas, para túneis ou para barragens, tinham logo ali um leque grande de escolha. E posso dizer que as empresas internacionais, que tinham mais a ver com captações de petróleo, offshore e onshore, etc. já eram mais abertas a mulheres a trabalhar com eles. Mas as empresas nacionais, e uma até muito conhecida, não interessa o nome, é uma construtora gigante portuguesa, nunca contratava mulheres. Nós estamos a falar de 2003-2004. Em 2004, essa empresa foi ao departamento e não recrutava mulheres. A primeira vez eu perguntei obviamente o porquê, porque então o que é que estava ali a fazer?! E a explicação foi o aumento de custos relativamente ao estaleiro: a casa de banho, os vestiários e o dormitório, tão simples quanto isso. Eu compreendo que sim, mas questionei o senhor e disse-lhe "E você sabe quais são as outras coisas que você está a perder por não ter mulheres no estaleiro?". É que se calhar ele não fez bem as contas, aquilo que ia gastar era menos do que aquilo que ia ganhar. Não adianta estar aqui a listar, mas referi uma série de coisas extra nas quais as mulheres poderiam contribuir. Mas sem ir mais longe, basicamente o que ele tinha a ganhar era ter pessoas dos diferentes sexos ali a trabalhar conjuntamente. Não é bom em lado nenhum ter pessoas só de um sexo a trabalhar. Toda a gente sabe, qualquer pessoa que trabalhe só com mulheres, não gosta, qualquer pessoa que trabalhe só com homens, não gosta, porquê? Porque nós somos seres sociais,  precisamos dos outros, precisamos de coisas diferentes, de nós! Precisamos do sexo oposto ou de todos os outros que haja. Precisamos de todos! Só assim é que evoluímos como seres-humanos.

25. E o momento importante positivo?

O positivo tem a ver diretamente com a minha carreira e com o facto de, na altura, o senhor vereador da cultura da Câmara Municipal de Sernancelhe, agora Presidente da Câmara, me ter convidado, como geóloga - aliás, o convite foi-me endereçado exatamente com "Tu que percebes dessas coisas", não especificando, "preciso de ti para fazer todos os conteúdos, desenvolver boletins de informação, vídeos, filmes, merchandise, tudo o que tenha a ver com o Centro Interpretativo Aldeia da Faia, para ser inaugurado. Precisas de ter tudo pronto até x dia e tens estes recursos à tua disposição, tens total liberdade criativa". E que depois conduziu a eu ainda estar aqui, porque não era suposto haver aqui um posto de trabalho. Existe outro centro interpretativo no concelho que não tem um posto de trabalho e que custou 10 vezes mais do que este, porque está conectado à rede Natura 2000 e à proteção da biodiversidade, o financiamento é maior, tem proteção específica e diária, com painéis informativos das espécies e está fechado. Só abre quando se liga para a câmara a marcar a visita. Mas aqui a dinâmica criada com o meu trabalho, a inauguração, os dias subsequentes das televisões virem visitar, fazerem reportagens, os jornais e as revistas aqui da zona, tudo isso levou a que houvesse uma necessidade de estar aberto, primeiro durante um mês, até estarmos abertos durante todo o ano. E como não podemos estar a trabalhar toda a vida a recibos, então apareceu o posto de trabalho. Houve a vontade e com ela apareceu a possibilidade e a concretização.

"Às vezes digo, a pessoas que têm um bocadinho de encaixe, quando nos estão a dizer, "Ai, o nosso país é tão lindo, tem tudo, a gente viaja do norte ao sul, é isto, é aquilo" e eu "É! É a consequência da Geologia do nosso país! Todas essas transições que vocês adoram ver (...)"


Geomanias

Rocha preferida? Granito

Mineral preferido? Quartzo ametista

Fóssil preferido? Ninhos e trilhos enormes de pegadas de dinossauros. Para sentirmos pequenez!

Unidade litostratigráfica preferida? Aquela que se está a formar agora, num vulcão ou num rift. É um objectivo de vida a concretizar, recolher uma amostra mais nova do que eu. 

Era, Período, Época ou Idade preferido?                            Paleozoico

Trabalho de campo ou de gabinete? Trabalho de campo

Martelo ou microscópio?        Martelo

Amostra de mão ou lâmina delgada?

Amostra de mão

Carta Geológica favorita? A de Portugal, continente e ilhas. Temos um território muito rico. 

Pedra mole ou pedra dura? Dura!

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? 

Não metálicos

Crosta ou crusta? 

Crosta


Teaser da Entrevista