Elisa Preto Gomes

Setembro 2024






PETROLOGIA E GEOQUÍMICA

SÓCIA APG Nº O494

Natural de Figueirinha, em Mogadouro, foi na FCUP que o trabalho de campo, a mineralogia e os recursos minerais a prenderam à Geologia. Docente na UTAD e apaixonada pela geoquímica e petrologia, teve "dores de parto" para trazer à vida a carta geológica de Vila Real. É a entusiástica coordenadora do Museu de Geologia Fernando Real.

"Eu acho que o nosso curso era particularmente engraçado porque era pequeno e não, não havia muitas festas. Havia a Queima das Fitas (...) Os nossos carros eram famosos! Ganhámos alguns anos o primeiro lugar do carro no cortejo da Universidade do Porto. (...) Depois tínhamos, a par disso, a imposição das insígnias (...) E preparávamos a sessão muito bem, com críticas aos professores, aquilo era mesmo serrote, muito acutilantes e organizadas."

Nascida em Mogadouro, 1961. Assim começou a história de Elisa Preto Gomes, que chorou "baba e ranho" quando entrou para Geologia. Perdeu-se uma agrónoma, sim, mas do lado dos geólogos ninguém o lamenta. Formada em Geologia pela Universidade do Porto, cristalizada a partir desse magma enriquecido que foi a professora Ana Neiva, é docente no Departamento de Geologia da UTAD, onde se dedica sobretudo ao ensino de petrologia e mineralogia, menos do que queria, atropelada pelas muitas atividades de gestão. Destas, a direção do Museu de Geologia Fernando Real é exceção, motivo de orgulho e alegrias, e foi lá que a ouvimos contar-nos as muitas histórias dos tempos de aluna, ilustradas com o Livro de Curso e álbum fotográfico, ou como é útil saber de Geologia até para se cometer um crime. Venham conhecer esta transmontana, que não era para ir para Geologia, não era para ir para o ramo científico, não era para ir para Vila Real, mas "virou, virou, virou" e ainda bem!


Entrevista 

Departamento de Geologia, UTAD, Vila Real, julho de 2023


1. Nome, data e local de nascimento?

Maria Elisa Preto Gomes. Data de nascimento é 29 de setembro de 1961, e nasci na Figueirinha, que é uma terra pequenina do concelho de Mogadouro, Terras de Miranda.

2. Conte-nos, como se fosse para leigos, o que faz profissionalmente?

Essencialmente sou docente aqui na UTAD [Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro] que é uma das nossas missões mais importantes. Quase sempre ensinei matérias relacionadas com minerais, rochas, como se formam, como se distinguem, porque há tantas… Isto, traduzido por miúdos, que nem sempre é fácil. (risos) Mas petrologia e mineralogia, depois também Geologia regional. Há também as outras áreas de gestão e que são várias, desde a direção do Museu [Fernando Real], do Departamento [de Geologia], a direção de cursos, agora de doutoramento [Geologia], tarefas de gestão que são necessárias, que vão passando e nos vão tocando.

3. Hoje em dia, diria que o seu tempo é distribuído percentualmente como?

Ai! Hoje em dia, diria que mais de 75% é gestão.

4. E qual a área que mais gosta dentro da Geologia? São estas da mineralogia e petrologia?

Sim, sim. Gosto particularmente da geoquímica. De perceber como os elementos se distribuem, o porquê e os efeitos que isso vai tendo. Na sua utilização, no nosso quotidiano, perceber também o porquê das estruturas cristalinas dos minerais, porque é que têm aquelas propriedades e não outras. Tem tudo a ver com a estrutura, o quimismo. Porque é que são bons para umas plantas e tão tóxicos para outras, coisas deste género.

5. Gosta mais aqui desta aplicação da geoquímica ao ambiente, é isso?

Sim, gosto de perceber a geoquímica, sim.

6. Em que ano e onde é que ingressou no curso de Geologia?

Eu entrei na Faculdade de Ciências do Porto [FCUP], em Geologia mesmo, em 1979.

7. E o que é que a levou a seguir Geologia?

(risos) É uma boa pergunta, porque é assim, eu nem tive Geologia no ensino secundário! Por isso, para mim, nem sequer punha a hipótese de seguir esta área. Mas, entretanto, eu tinha pensado ir para agronomia, porque tinha agricultura e ouvia falar muito bem do ISA [Instituto Superior de Agronomia], em Lisboa. Então, eu tinha uns primos lá em Lisboa e fui conhecer o ISA, visitá-lo numas férias, depois do propedêutico. Depois, quando entrei para Geologia, ah, claro, chorei baba e ranho. Nem sequer sabia o que aquilo era. O que é que eu vou estudar? Estudar pedras. No Porto! Então lá vou eu para o Porto, tive a sorte de realmente gostar do primeiro ano do curso. Tínhamos oito disciplinas, fiz cinco, portanto passei de ano. Ao passar de ano, se fosse para Lisboa, comprometia tudo. Entretanto também comecei a namorar e já tinha alguns amigos… enfim. Mas, depois, essa minha coisa da agronomia, aquele bichinho, eu ainda andava com aquela ideia! De maneira que quando acabei o curso, vim para Vila Real e disse "Olha que porreiro! É agora que vou fazer agronomia!". E matriculei-me cá, portanto, eu sou a aluna 2687 da UTAD. Só que à primeira aula que fui, que era de citologia, o meu colega de Biologia a falar lá da célula e eu a contar os segundos que faltavam para me pirar dali para ir ver minerais e rochas. Acabam por ser muito mais bonitos do que aqueles nomes das mitocôndrias. (risos)

"(...) quando entrei para Geologia, ah, claro, chorei baba e ranho"

8. Espere lá, foi o namorado que a agarrou no Porto e em Geologia? (risos)

Não foi! Acho que foi mais, se calhar, o ambiente da própria faculdade, alguns colegas! E pronto, ver que aquilo [a Geologia] também era interessante! Ouvi uma vez qualquer na rádio que o geólogo é a profissão mais feliz porque faz trabalho ao ar livre, no campo. É um bocadinho assim. E fui ficando. E, depois, também tinha a minha irmã a entrar na faculdade exatamente quando eu saísse. Ora, os meus pais sendo agricultores, não tinham grandes possibilidades de ter duas filhas na universidade ao mesmo tempo. E então, isso também pesou para mim. Convinha fazer o curso nos cinco anos que era para eu sair e a minha irmã entrar.

9. Portanto, tinha colocado agronomia como primeira opção. Porque é que concorreu a Geologia?

Sim, tinha, mas depois fui indo por ali abaixo na lista de opções. Não foi a última opção, mas foi quase das últimas. Também não indo para Lisboa, para o ISA, era preferível ficar mais acima [norte do país]. (risos)

10. Mas estaria lá já qualquer coisa? Porque de todas as opções que podia colocar, colocou Geologia!

Eu sei lá… mas, se calhar, na altura a gente nem estava bem informada. Porque, por exemplo, já existia o Instituto Politécnico de Vila Real. Se calhar havia algum estigma com os politécnicos, ou não estavam muito divulgados. Porque era óbvio, se eu queria agronomia, em Lisboa, a seguir seria a UTAD, não é? Mas não sei, nem pus sequer, no boletim de candidatura. Selecionei na verdade outros cursos de Ciências.

11. Será que na altura já queria um bocadinho de aventura?

Pois… sim, eu sempre gostei um bocadinho disso. (risos)

12. No tempo em que foi estudante, considerou-se uma aluna média, boa ou muito boa?

Não posso dar uma resposta só. Porque eu era aluna boa a algumas disciplinas, se calhar má a outras. Física, Deus me livre! Química, que a Professora só ditava... Era conforme as disciplinas, era boa, muito boa até, em algumas, dependia do gosto.

"(...) a imposição das insígnias, que era no Salão Nobre, onde agora é a atual Reitoria. E preparávamos a sessão aquilo muito bem, com críticas aos professores, aquilo era mesmo serrote, muito acutilantes e organizadas".

13. Quais eram as disciplinas em que era boa ou muito boa?

Eu sempre gostei da petrografia, das rochas, mas sobretudo dos jazigos minerais. Gostei imenso da parte da luz refletida. E quem dava essas matérias era o Dr. Orlando Gaspar E depois gostei particularmente do professor Eng. [Albertino Adélio] Rocha Gomes, por causa das aulas dele serem muito liberais, ele conversava muito com os alunos, e com casos práticos até, da experiência de vida dele. Ele dava prospeção geológica, geofísica e geoquímica, uma cadeira de dois semestres/anual. E houve outras que gostei. E, claro, outras que correram mal. 

"Os nossos carros eram famosos! Ganhámos alguns anos o primeiro lugar do carro da Universidade do Porto."

14. E que colegas é que são da sua geração?

Que estejam mesmo na universidade ainda, tenho, por exemplo, o Benedito Calejo que estava – deixou de estar – no Porto, como assistente. A São [Conceição] Freitas, que está em Lisboa, foi minha colega de primeiro ano no Porto. Tenho uma fotografia com ela. Mas creio que ela não fez um ano, voltou para o primeiro ano em Lisboa. Também o Jorge Neves, que está na EDP. Nós entrámos 35 e, depois, no 5º ano, saímos quatro: o Benedito, eu, o Jorge Neves e o nosso querido saudoso José Fernando Monteiro, que faleceu. Nós os quatro é que entrámos e saímos em cinco anos. De pessoal de outros anos, ou que demoraram mais tempo, há muita gente. Por exemplo, a Helena Cristina Brites, que agora está no Porto, era um ano antes de mim e saiu comigo, a Deolinda [Flores] já era mais velha, mas ainda era estudante quando eu lá andava [FCUP]. Era dois anos mais velha que eu. Mas fui colega de muita gente, sim. O Manuel João Abrunhosa acho que ainda me deu algumas aulas de hidrogeologia. A Ângela [Almeida] deu-me práticas de geoquímica. O Carlos Meireles e o Narciso [Ferreira] eram finalistas quando eu entrei e era caloira. O Narciso já está reformado, até, e o Carlos Meireles está quase, também. E a Ângela até podia já se ter reformado, ela é que não quer. A Ana Antão, que está no Politécnico da Guarda, também andava no 4º ano quando eu era caloira.

15. E festas, havia muitas ou nem por isso?

Eu acho que o nosso curso era particularmente engraçado porque era pequeno e não, não havia muitas festas. Havia a Queima das Fitas, e não parávamos, como aqui [UTAD]. Aqui pára uma semana, este ano foi mesmo uma semana! Mas conseguíamos conciliar, ir às aulas e tudo. Os nossos carros eram famosos! Ganhámos alguns anos o primeiro lugar do carro do cortejo da Universidade do Porto. Mas, de facto, festas, não fazíamos muitas. Nós tínhamos ali perto o Piolho [café/restaurante], portanto também estávamos bem, íamos ali ao Piolho beber uns copos. (risos)

"E ele disse 'Olha Elisa, não sei qual é o teu problema, se a professora Neiva, que era nossa professora, era espetacular em geoquímica e tu tens de fazer o mestrado em geoquímica, telefona-lhe'. Telefonei-lhe no dia seguinte e ela disse logo 'Venha cá'."

16. E como era o processo? Tem de nos contar!

Aquilo era assim: logo na primeira aula tivemos uma praxe. Fomos lá para uma sala, acho que era o Zé Mário Castelo Branco, e praxaram-nos. Fingiam que davam uma aula! Então, a bibliografia eram todos nomes estrangeiros, chegámos cá fora e havia uns autocarros alemães de uma empresa qualquer, e alguns dos nomes dos autores eram os nomes daquelas empresas. (risos) Já fomos! (risos) Banhos de água com farinha, eram assim coisas simples, na praxe, nada de grave. Para a queima, trabalhávamos para o cortejo, para o carro. Logo no primeiro ano, fizemos também um número no sarau em que nós os caloiros fazíamos parte, estávamos integrados com os outros. Era os "Flintstones na Assembleia da Républica", lembro-me que eu representava o PSD e estava com uma grande gravata. Íamos assim mais ou menos todos de branco e depois com uma gravata de cor. A minha era laranja, as outras eram vermelhas, a do CDS era azul, etc. Isto para dizer que, realmente, sendo um curso pequenino, era um curso que tinha bastante participação e dinâmica na Queima das Fitas e nos carros, principalmente. Reuníamo-nos com os mais velhos, depois com os mais novos. Depois tínhamos, a par disso, a imposição das insígnias, que era no Salão Nobre, onde agora é a atual Reitoria. E preparávamos a sessão muito bem, com críticas aos professores, aquilo era mesmo serrote, muito acutilantes e organizadas. Eu, às vezes, digo que hei de um dia publicar montes de coisas que tenho manuscritas, porque acho que é giro. Às vezes falo aos meus alunos mais velhos e digo "Vocês não sabem o que é a praxe, infelizmente, porque o que vocês têm não é uma praxe, é uma coisa tola ou que é abusadora e que não dignifica". Não é dignificante, ao contrário daquilo que eu acho que nós tínhamos, porque realmente aquela era a forma de nós nos integrarmos e participarmos e convivermos.

17. Acha que tinham mais sentido político, na altura?

Se calhar algumas das críticas mostravam isso, exatamente. Já havia alguma acutilância. Hoje, acho que os jovens são muito mais desligados da realidade política. Vão na onda, alguns não se interessam, acho que é um bocado isso, mas há de tudo.

18. A Elisa e os seus colegas eram participativos nas aulas?

Acho que nós tentávamos participar nas aulas, sim. E não faltávamos tanto como agora. Mas aconteceu-me, por exemplo, uma vez numa aula de mineralogia, ia um bocadinho atrasada, entro e estava sozinha. O professor Frederico Sodré Borges andava para a frente e para trás, no estrado. (risos) Eu abri a porta, ninguém na sala e eu lá me sentei na primeira fila. (risos) E deu a aula toda só comigo. 

19. E, sendo um grupo pequeno, organizavam saídas de campo?

Sim, também tive essa sorte, por acaso. Se calhar, porque sempre fui assim um bocadinho dinâmica e estava atenta, e quando fizemos o primeiro ano, felizmente, eu soube que havia a saída de campo do terceiro ano, que era para a zona de Leiria. Que foi a única vez que eu fui a uma gesseira a Soure, que fui à Nazaré. Era o professor Noronha e o professor Montenegro que orientavam, este último tinha uma casa nas Caldas da Rainha, salvo erro, e nós íamos lá ficar na casa do professor. E aquilo foi espetacular! Acho que fomos quatro ou cinco caloiros – há uma fotografia, que tenho afixada no gabinete, em que está o Manel Leite, que é professor no ensino secundário, está o Benedito, eu, o Jorge Neves e está Félix Mendes, que era assistente. Estávamos assim quatro ou cinco na Nazaré a olhar para os estratos. Mas, infelizmente, não fizemos muitas saídas de campo. Por isso é que eu digo que aquilo foi uma sorte enorme! Uma saída de dois dias, que eu nunca mais tive. Nós depois, no curso todo, nas disciplinas em que aquela saída foi integrada, que era a petrologia ígnea, recursos minerais e a Geologia de Portugal, nunca mais houve! Quem nos deu Geologia de Portugal foi a professora Manuela Marques, ela tinha imenso trabalho porque nunca tinha dado a disciplina, tinha que estudar imenso, portanto não houve tempo para as saídas. Depois, também tivemos a professora Ana Neiva que foi minha professora e orientadora, por quem tenho muita estima, Deus a tenha lá. Mas ela era de geoquímica e, depois, foi ela que nos deu Geologia de campo. Tinha-nos dado a geoquímica I toda completa, ela era muito organizada e dedicada aos alunos, mas foi-se embora, mudou para Coimbra quando eu estava a fazer geoquímica II com ela, no quarto ano. E então, ela tinha distribuído trabalhos, para apresentarmos depois em janeiro. O meu trabalho era sobre geoquímica de oceanos, ainda me lembro: o que aprendi de geoquímica de oceanos foi o que aprendi nessas férias de Natal a estudar. (risos) Mas foi transferida para Coimbra. Quando nós chegámos [das férias], fomos recebidos por outro professor, que fez o favor de nos dizer "Tudo o que aprenderam com essa senhora, todos os materiais que têm, peguem num fósforo. Porque eu não quero saber nada disso. Eu estou aqui para vos dar isto, e é isto que eu quero que vocês saibam até ao fim do ano".

Excursão geológica à Nazaré,  com o assistente Félix Mendes a indicar os estratos aos caloiros Manuel Leite, Benedito Calejo, Elisa Preto e Jorge Neves.

20. Mas, depois, acaba por ir fazer o doutoramento com a Ana Neiva, não é? Como surgiu essa possibilidade?

Pois, sim! Porquê? (risos) Por acaso é engraçado também. A [Ana] Neiva tinha sido minha professora de geoquímica I e de uma parte de geoquímica II e eu tinha gostado dela. No terceiro ano, tínhamos o bacharelato e não podíamos passar para o 4º ano com disciplinas atrasadas, então, eu hesitei ali um bocadinho: "Vou para o educacional, não vou?". A minha melhor amiga, que era a Ana Almeida, ia para o ramo educacional – e ainda lá está –, e não ia nenhuma outra rapariga do meu ano para o científico. Depois, o meu marido, na altura meu namorado, ajudou-me a decidir: "Vai para o científico, logo se vê como corre". Lá vou eu para o científico, sem emprego, não é? Dizia eu! De maneira que quando acabei, disse "Vou já concorrer para dar aulas". Concorri e apanhei logo horário completo em Paços de Ferreira. Foi a minha sorte! Porquê? Porque o horário era tão bom que eu tinha a sexta à tarde livre, e segunda entrava à uma da tarde. Então, fui para Paços de Ferreira e, logo nos primeiros dias, concluí que "Não posso, não posso ficar aqui a dar aulas", porque aquela coisa de estar a explicar algo e tocar a campainha, aquilo para mim foi a pior coisa que me podia acontecer, mexia mesmo comigo. Ou estar a conversar com alguém na sala de professores, tocar a campainha e ter que ir. Tive a sorte que tive um oitavo ano espetacular, o 8º B, só que depois tive sete sétimos anos péssimos, foi o oposto. (risos) Os primeiros miúdos eram uns doces, se apanhasse assim turmas sempre, eu até gostava muito, mas não, não queria correr o risco. Então decidi ir fazer outra coisa. Vi que havia o mestrado de geoquímica em Aveiro, que era pós-laboral – sexta à tarde e sábado –, matriculei-me e fui aceite. E conseguia conciliar, vir de Paços de Ferreira na hora de almoço. Mas aquilo era de loucos, foi um ano louco. Ia sempre de comboio! Depois vinha também de comboio, chegava a São Bento, por vezes ia apanhar à Rodonorte o autocarro para Bragança, porque o meu namorado estava colocado lá. Vinha segunda às seis da manhã no autocarro, chegava ao Porto e saía ali à beira do São João, apanhava o autocarro direto para Paços de Ferreira, almoçava ao meio-dia e à uma estava a dar aula. Tive um ano inteiro em Paços de Ferreira, que me permitiu fazer toda a parte curricular do mestrado e quando vim aqui para a UTAD já só tinha a tese para fazer. Nessa fase, comecei a fazer trabalhos aqui com os meus colegas mais velhos, ainda que nenhum fosse doutorado, nem o professor [António] Vilela [de Matos], nem o [Carlos] Coelho Pires. E então andava indecisa em relação ao trabalho do Mestrado e orientador. Entretanto, foi o Jorge Neves que me deu a ideia. Encontrámo-nos para tomar um café e estava a contar-lhe este meu problema, "Eu agora não sei o que hei de fazer. O professor Lopes Nunes vem cá dar aulas, mas também vem de Braga. Vem o professor Bernardo Sousa de Coimbra, mas não é geoquímica…". E ele disse "Olha Elisa, não sei qual é o teu problema, se a professora Neiva, que era nossa professora, era espetacular em geoquímica e tu tens de fazer o mestrado em geoquímica, telefona-lhe". Telefonei-lhe no dia seguinte e ela disse logo "Venha cá". Fui a Coimbra e ela "Sim senhora, faz o mestrado na zona de Vila Real, como os seus colegas querem, na carta 10-B, e não tem problema nenhum, eu oriento-a!". Ela já tinha sido minha professora, mas ficámos ainda mais próximas! Depois passou também para o doutoramento e acompanhou-me sempre.

"Hoje, acho que os jovens são muito mais desligados da realidade política. Vão na onda, não se interessam, acho que é um bocado isso, mas há de tudo"

21. Depois de acabar aquele primeiro ano da parte curricular do mestrado, veio para Vila Real logo já como professora na UTAD?

Sim. Aliás, eu voltei a concorrer ao secundário e concorri aqui para a UTAD, mas não entrei, entrou uma colega minha. Também concorri para o Minho e entrei, mais um colega brasileiro. Só que na altura tinha de haver visto do Tribunal de Contas. Sei que não tivemos visto e não entrámos. Entretanto, houve um segundo concurso para Vila Real e praticamente ao mesmo tempo outro para Aveiro. E eis que no dia 10 sou colocada em Vila Real e dia 11 em Aveiro. E já tinha aceitado [em Vila Real, UTAD] e não tive coragem de aceitar a posição em Aveiro, mas se não tivesse acontecido esta situação, eu teria ido para Aveiro. Uma vez estávamos [família] em Aveiro a passear, contou-se esta cena e o meu filho mais novo disse "Oh mãe, podíamos viver aqui ao pé do mar e vivemos lá em Vila Real!". (risos)

22. A Elisa tem uma grande paixão também pela parte do ensino, da pedagogia, não é?

Sim, mas não tenho formação. Talvez porque sinto que o feedback é bom e não há necessidade, não é? Eu vim para aqui e os primeiros alunos que tive eram do curso de ensino. Por acaso, as primeiras unidades curriculares que eu dei até foi a prática de Geologia para [engenharia] civil. Mas depois, as teóricas eram do terceiro ano no curso de professores de Ensino de Biologia e Geologia, que fez 40 anos este ano. Portanto, foi o primeiro curso de ensino que houve na UTAD, começou em 1983. Nessa altura, eles tiveram geodinâmica comigo e Geologia ambiental – uma disciplina que eu não tinha tido. Isto eram desafios atrás de desafios. Tive de ir ver a Aveiro, a Braga, o que eram os programas, o que não eram, adaptar exercícios, fazer, preparar... e depois acabámos por ter sempre maior proximidade com esses alunos do ensino, com esses professores, que nos procuram quando têm dúvidas. Acabámos por ficar sempre muito ligados à formação de professores, claro.

"Uma vez o professor Orlando Gaspar deu-me um rebuçado porque distingui magnetite de hematite ao microscópio" (risos)

23. Daquilo que é a sua vida profissional, qual é a atividade ou exercício que mais gosta?

Sempre gostei muito de campo. Levantava-me com toda a facilidade, ia sem problemas nenhuns, mesmo no verão, cedo, para o campo. E sempre gostei bastante do microscópio. Principalmente se forem metálicos! (risos) Agora não vejo, agora se calhar já nem conheço os minerais, distingo uma pirite de uma calcopirite e pouco mais. (risos) Gostava muito, tinha sensibilidade para aquelas propriedades, o relevo, para as intensidades, as cores, os amarelos, os cinzas. Uma vez o professor Orlando Gaspar deu-me um rebuçado porque distingui magnetite de hematite ao microscópio. (risos)

24. E qual é a atividade que menos gosta?

Há coisas chatas. Na gestão, por exemplo, ter de avaliar funcionários e colegas, aplicar cotas, ou agora nos concursos dos meus colegas, que eu conheço e gostava que todos pudessem ter o lugar que merecem. E, às vezes, há duas pessoas muito boas e tem de se escolher só uma… Essa parte mexe muito comigo.

25. Qual é a sua publicação favorita na área das geociências? Pode ser uma carta, um livro, artigo...

O trabalho da Lithos do meu doutoramento é assim algo que me deu muito labor e vejo que há ali um histórico, mas, a escolher, é a Carta Geológica de Vila Real [Folha 10-B]. Se calhar pelo envolvimento, porque eu entrei aqui e desde esse dia foi falado que aquilo tinha de ser concretizado. Era a única capital de distrito que não tinha carta geológica, "Tem de se fazer a carta 10-B", nós andámos aqui a massacrar-nos anos. Vão ver a carta e não está perfeita, de certeza absoluta, e não está completa, porque não tem a notícia explicativa, porque acabámos por fazer a carta sem financiamento.

26. Já agora, conte-nos um bocadinho como foi o processo da carta.

O processo foi tão, tão conturbado. Demorou tanto tempo. Nós entrámos para aqui em 1985 e já se falava da carta! Primeira ata, o registo da primeira reunião, está lá – a prioridade do departamento era publicar a carta de Vila Real. E nós fazermos investigação em temas da carta. Depois houve alturas de altos e baixos. Fizeram-se os cursos de formação de coletores de Geologia, por exemplo este técnico de Geologia da UTAD, o Álvaro Pereira fez esse curso, um dos técnicos do laboratório, o Tito Azevedo, também. Eram cursos do Fundo Social Europeu. E, portanto, a gente envolvia-se nesses cursos e depois a carta ia-se fazendo aos bocadinhos.

"Era a única capital de distrito que não tinha carta geológica, 'Tem de se fazer a carta 10-B', nós andámos aqui a massacrar-nos anos."

27. Quem é que estava envolvido na carta?

Envolvidos, direta ou indiretamente, estávamos todos aqui na UTAD, tínhamos de estar. Há vários temas para lá da cartografia geológica, desde a hidrogeologia, património, parte de arqueologia. E a carta foi publicada em 2015. O trabalho chegou a ter algum financiamento, mas lá está, o financiamento não chegava porque são muitos quilómetros quadrados, várias equipas e áreas, muito trabalho de campo, uniformizar… Depois só quando o Narciso veio é que eu, ele e o Rui Teixeira pegámos naquilo de forma um bocado mais sistemática com ajuda do Álvaro. E desde então, a prioridade é a notícia explicativa – ainda não conseguimos pegar na notícia a sério! Infelizmente é assim… E agora os colegas mais antigos já se aposentaram, neste caso o Coelho Pires ou o Vilela de Matos, que tinham mais experiência de campo. Não está fácil. O professor Machado Leite já disse que arranjava financiamento para fazer análises, que dinheiro há. O problema é a preparação das amostras, é o trabalho de laboratório, é o trabalho de campo.


"(...) já fiz uma coisa que nunca pensei que ser geóloga me podia levar a fazer. (...) 'Já algum dia imaginaram que estudar um granito pode servir para incriminar alguém?' "

28. Como é aqui ao nível do ensino de pós-graduados? Vocês conseguem implementar projetos mais voltados para a investigação? Têm alunos?

Não, é muito difícil. Porquê? Nas pós-graduações, que depois nós criámos, formámos mais de 100 mestres. Precisamente em quê? Ciências da Terra e da Vida para o ensino. Era uma atualização de conhecimentos de professores, com seminários, porque esses mestrados estavam a ser reconhecidos na progressão da carreira deles. E tivemos muita procura. Acho que foram sete cursos que fizemos, sempre com mais de 15 alunos. Depois, infelizmente, quando passámos a ter mais cursos de investigação e mais mestrados, acabámos sempre por ter poucos alunos. Até que, entretanto, chegaram a um número mínimo, que era 10. Entretanto, este nosso reitor passou para 15, e nós não conseguimos abrir. Tínhamos um mestrado muito interessante com um plano muito bem feito, que é o de "Geociências Aplicadas", e não conseguimos mantê-lo, caiu há três anos. É muito difícil. Olhando em retrospetiva, foi difícil. Não tinha equipa, mal acabo o doutoramento, toca a pegar no curso [licenciatura] e "Agora tens de pegar no departamento!". Acaba sempre por ser muita coisa de gestão. É um bocadinho isso.

29. Olhando para trás, para aquilo que tem sido a sua carreira, qual é o momento que acha que foi mais marcante?

Mais marcante… sei lá, não sei. (risos) Talvez as provas de agregação. Mas já fiz uma coisa que nunca pensei que ser geóloga me podia levar a fazer. Por exemplo, entrei numa sala de tribunal, numa sala de audiências de tribunal. Só entrei uma vez, como geóloga! O caso foi assim: eu era diretora de departamento e contactaram-me do tribunal para indicar um perito. Normalmente essas coisas são sempre colegas de águas. São sempre dois ou três colegas que estão muito rotinados a fazer isso. Mas eles disseram "Não, não, não é nada disso. É para caracterizar uma pedra!". "Pedra?" disse eu. "Sim, é uma pedra de um granito!". "Olhe, então vou ter de dar o meu nome". Quer dizer, ou dava o meu nome ou dava o do Rui Teixeira, não é? Se ao Rui Teixeira lhe falasse na judiciária… (risos) E eu disse, "Então olhe, vou dar o meu nome". A senhora lá combinou comigo, ir lá a minha casa levar-me um bocado da pedra e contar-me a história, e assim foi. A pedra era um bocado de granito que tinha sido posto preso ao corpo de uma senhora, que foi morta e afogada – ou melhor, não sei se morreu afogada ou se morreu antes de a deitarem para a barragem de Bagaúste com a pedra. Mas ela foi encontrada na barragem com aquele pedaço de granito atado à cinta. Macabro mesmo. E eles queriam saber de onde é que vinha o granito. Ainda por cima, quando ele disse "Ah, é que a senhora apareceu ali, desconfiamos que seja um granito que possa haver perto", e então tinha mesmo que ser eu porque essa é a minha área de doutoramento ou perto e, possivelmente, eu conhecia mesmo o granito. De facto, é um dos granitos de grão fino que na minha carta tem outro nome – é o de Bandeiras – mas que cá em baixo se chama "granito de Vale de Gouvinhas", que tem uma pedreira que o explora. Então depois lá fui com o senhor da judiciária, com a filha da senhora, ela foi-nos acompanhar, não sei se o seu marido também. E, entretanto, encontrámos uma vinha que tinha uns esteios de granito, aquele granito – o granito de Vale de Gouvinhas. Eu depois fiz uma lâmina ou duas do bocado, fiz a lâmina dos esteios e fiz do Vale de Gouvinhas. Fiz uma lâmina de cada uma – eles pagaram para aí 300 euros, muito pouquinho. Fui ao Porto fazer a microssonda para quantificar a composição das plagioclases e das biotites, o teor e a razão Fe-Mg. Pronto, não há certeza, não é? O juiz insistia comigo: "Mas como é que a senhora pode dizer que o granito era dali?". "Olhe, na Ciência não há 100% certezas, agora, eu estou-lhe a mostrar que realmente há uma série de características do granito que está no esteio, a forma do bocado parece ser um bocado do esteio, o granito lá da pedreira tem estas características – sobrepõem-se – e, portanto, muito provavelmente é mesmo esse". Mas depois o juiz assumiu que sim, e foi o meu depoimento que foi um dos que levou à condenação a 19 anos de prisão. Foi o genro e a filha que mataram a senhora, porque queriam a herança. É muito macabro, mesmo. Eu costumo dizer na petrologia, às vezes, "Já algum dia imaginaram que estudar um granito pode servir para incriminar alguém?". (risos) Eu estava nervosa, nunca tinha ido para dentro de um tribunal!.

"Peguei no jipe e entrámos para a pedreira e ele 'Vire, vire tudo, vire tudo!'. (risos) E eu toca a virar, e virou para o talude! Virou mesmo! (risos) Eu quando vi aquilo tudo amassado, 'Ai Jesus!' "

30. E qual é assim o momento na sua carreira que considera assim mais complicado, um falhanço ou embaraço?

Algo estúpido, porque eu tinha a carta de condução há muitos anos e não conduzia. Uma vez andava lá na serra, no Alvão, e disse ao senhor Nélson [motorista]: "No fim do dia há de me deixar pegar no jipe, vou conduzir "a Princesinha!". E assim foi. Peguei no jipe e entrámos para a pedreira e ele "Vire, vire tudo, vire tudo!". (risos) E eu toca a virar e virou para o talude! Virou mesmo! (risos) Eu quando vi aquilo tudo amassado, "Ai Jesus!", fim de tarde, que aflição! Depois não havia telefones, como agora, não é? Isto foi para aí em 1987, foi complicado. Ainda demorou a ficar resolvido. Por acaso na pedreira ainda estavam lá homens a trabalhar, que trouxeram o jipe para baixo, depois foi lá o reboque. Não nos magoámos nada, eu ia muito devagar, só que foi o vire, vire, vire, e virei de mais! (risos)

31. Tem algum hobby extra Geologia ou um talento menos conhecido?

Não, não sou uma mulher muito talentosa. Admiro todos os talentos porque acho que há gente que tem talentos para muita coisa, mas eu não. Quando era miúda, miúda mesmo, fazia muito tricot, crochet, arraiolos, tudo. Não conseguia estar parada. Agora é o contrário. Mas gosto de caminhar! Normalmente vou sozinha, que eu gosto de andar depressa e a maior parte das pessoas não acompanha o meu ritmo.


Intraclasto

O livro de curso

Como intraclasto, a Elisa trouxe-nos o seu magnífico Livro de Curso. Entre as muitas páginas que captam as idiossincrasias de cada aluno individualmente, são dezenas as fotografias dos tempos de estudante que um dia, esperamos, irão ilustrar as muitas histórias manuscritas que a Elisa guarda. Num mundo cheio de tecnologia, softwares, aplicações e até textos que se escrevem sozinhos, perdeu-se esta deliciosa tradição de registo.


Geomanias

Rocha preferida? Serpentinito

Mineral preferido? Tem de ser só um? Então esmeralda

Fóssil preferido? Uma amonite

Era, Período, Época ou Idade preferido? Se calhar o Câmbrico, por causa daquele despertar da vida. 

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Metálicos!  

Trabalho de campo ou de gabinete? Se pudesse fazer campo fazia muito mais campo 

Pedra mole ou pedra dura? Dura

Ortóclase ou Ortoclase? Ortóclase



Martelo ou microscópio? Se tiver de escolher, se calhar escolho o microscópio. E eu, à conta do martelo, dei cabo aqui do meu ombro direito, de fazer força. Tive umas calcificações, oxy—hidroxy-apatite. O médico disse que nunca tinha visto uma pedra tão grande, até chamou lá a estagiária, e eu disse, "Sabe o que é que é? É que eu sou mineralogista". (risos) Tinha dois centímetros!


Teaser da Entrevista