Rui Dias

Janeiro 2025








GEOLOGIA ESTRUTURAL/COMUNICAÇÃO DE CIÊNCIA

SÓCIO APG Nº O412

Nascido em Lisboa, é professor catedrático na Universidade de Évora, divulgador de ciências várias no Centro Ciência Viva de Estremoz e, como alguém o apelidou, um "Moisés" da Geologia portuguesa. Acha que "Portugal esteve sempre lá" nos geomomentos cruciais e anda há 20 anos a tentar entender a nossa Geologia. Ainda não conseguiu, mas já ajudou muitos a entendê-la.

"E eu costumo comparar a análise dos mapas àquelas bonecas matrioskas, que encaixam umas nas outras. Olhamos para o mapa geológico e dizemos, "Ai, eu percebi qualquer coisinha", e quando a gente tira aquilo está outra coisa por baixo, que a gente não percebe. E costumo imaginar que estou a abrir matrioskas há vinte anos, e está sempre outra matrioska lá por trás, de coisas que eu não percebo minimamente. E eu diria que isto é quase uma obsessão, desde há 15-20 anos: eu um dia hei de perceber a Geologia de Portugal."

Quem conhece o Rui, sabe como é: às 9:15h na rodoviária. E é bom que se lá esteja, não há cá telemóveis e já nem há cabines telefónicas a aflorar pela cidade. Passada a primeira provação, foi já com ele no carro que decidimos para onde ir. O importante era incluir um qualquer afloramento e almoço. Na dúvida, pré-Mezosoico, sempre! Deixámos o Grés de Silves para trás (ou para cima) e lá fomos acompanhando o Cristalofílico, depois o Xisto-Grauváquico, até montar estaminé frente ao Ordovícico. O Rui gosta de contar histórias e nós temos um enorme prazer em contar esta. A dele. O gosto pela Geologia começou por culpa de um professor que, ironicamente, sabia pouco sobre o assunto. Forçou-o a procurar um livro de Geologia. Hoje, é ele quem os escreve. Longe vão os tempos em que desesperava frente aos afloramentos de Trás-os-Montes, castigando-os com melodias de flauta durante os seus almoços solitários (como se aquelas rochas não tivessem já sofrido que chegue...)Há muito que colocou o seu eu-científico em segundo plano, prioritizando a formação dos outros. Hoje é o nosso tradutor oficial da Geologia de Portugal e o maior embaixador deste substrato VIP da Tectónica de Placas. De Lisboa para Évora, de Évora para Estremoz e de Estremoz para todos, venham conhecer o Rui que temos hoje. E que sorte a nossa de o ter. Que 2025 lhe abra novas matrioskas!


Entrevista 

Parque Municipal das Medas (São Miguel de Poiares), outubro de 2024


1. Nome, data e local de nascimento?

Rui Dias, cinco de janeiro de 1959, Lisboa. 

2. Conte-nos, de forma simples, como sabe muito bem, o que é que faz profissionalmente.

Eu diria que, profissionalmente, faço três coisas, ou pelo menos tento fazer três coisas, o que nem sempre é simples. O tempo é limitado. E, como se costuma dizer, adoro fazer as três e, portanto, é-me muito difícil separar as três. Eu adoro fazer investigação, gosto imenso de andar aí no campo a subir e a descer montes e a reconstruir aquilo que eu digo que são os puzzles: vejo aqui um afloramentozinho, depois vejo outro afloramento ali e tento fazer modelos, que é aquilo que a gente faz no campo. Isto dá-me muito prazer e continua a ser a base daquilo que eu faço. Adoro dar aulas e ensinar e isto levou-me a enveredar por duas situações. Até ir para Évora, dividia-me entre dar aulas, que é aquilo que eu adoro fazer, ensinar, e fazer investigação. Mas a ida para Évora abriu uma terceira frente, que se chama [Centro Ciência Viva de] Estremoz. Em Estremoz, a gente tinha um convento enorme, muito bonito, para dinamizar. Não era possível dinamizá-lo nem com investigação nem com dar aulas, e então entrei na terceira vertente, que é vender histórias de Geologia ao grande público. Portanto, divido-me entre fazer investigação, dar aulas e divulgar. No início era Geologia e neste momento fui enveredando por outras coisas. Aliás, para compreender a Terra é impossível ficarmos ligados só à Geologia.

"(...) gosto imenso de andar aí no campo a subir e a descer montes e a reconstruir aquilo que eu digo que são os puzzles: vejo aqui um afloramentozinho, depois vejo outro afloramento ali e tento fazer modelos, que é aquilo que a gente faz no campo".

Grupo de alunos da FCUL no Penedo do Lexim, em 1981. Da esquerda para a direita: Cuca (Maria do Rosário Azevedo), Gorete Correia, João Mata, Isabel Figueira, Rui Dias e José Madeira. Foto: Teresa Palácios.

3. E como é que começou a sua história na Geologia? Ou seja, em que ano e onde é que entrou no curso?

Começou com um mau professor que tive no secundário, que não sabia nada de Geologia, estamos a falar antes do 25 de Abril, para aí 1974 ou 1973. Não sabia nada de Geologia e, portanto, dava-nos muita pouca matéria. Eu, até aí, queria muito seguir arqueologia e os meus pais diziam-me sempre que os arqueólogos não tinham dinheiro e não conseguiam arranjar emprego. E quando descobri o livro de Geologia do secundário, que penso que era da Natércia Guimarães [e Augusto Medina, Licões de Geologia, Porto Editora], apaixonei-me pela Geologia, não pelo professor, porque realmente não dava muito, mas apaixonei-me pela Geologia e achei que a Geologia acabava por ter um misto entre aquilo que eu gostava, que era a parte da arqueologia, e aquilo que era perceber as rochas. E foi então que enveredei pela Geologia, entrei para a Faculdade de Ciências [da Universidade de Lisboa] em 77/78 e eu acho que é muito fácil a pessoa entrando para Geologia já não sair de lá. Acho que a Geologia tem uma vantagem e uma desvantagem sobre tudo o resto. Quando estou a fazer divulgação, e eu faço divulgação não só na área da Geologia, às vezes também estou a fazer divulgação na área da evolução [da vida], ou da física, ou da química, costumo dizer que é mais difícil surpreender com bicharada ou com as plantas do que surpreender com uma pedra. Porque quando a gente agarra num bichinho qualquer, aquilo pode ser muito fofinho, mas as pessoas sabem mais ou menos como é que aquilo funciona. Quando a gente agarra numa pedra, e começa a contar a história de uma pedra, começamos a mostrar as paisagens que estão por trás de uma pedra. A última vez que fiz isso foi para um grupo muito grande, nos quartzitos de Castelo de Vide, e comecei com o grupo a olhar para os quartzitos e a mostrar-lhes praias, nas latitudes da Nova Zelândia, que depois tinham vindo pelo mundo fora, e aquilo é um mundo novo. E desde que a pessoa saiba vender as histórias, chamemos-lhe assim, eu acho que a Geologia tem grandes vantagens, porque aquilo realmente é uma surpresa enorme para as pessoas. Eu posso agarrar ali num bicho e contar uma história qualquer, mas as pessoas sabem como é que os bichos aparecem, como é que se reproduzem, a Geologia não. Uma pedra é uma pedra, e a maior parte das pessoas nem sequer pensa que a pedra tem uma história. A pedra esteve lá sempre, e, portanto, não tem história. Começamos a juntar e a contar a história de uma pedra, e depois saltamos de um afloramento para o afloramento seguinte e mostramos que quando eu ligo um ao outro aquilo tem um tempo e, portanto, aquilo ganha a dimensão de uma história. Eu acho que é isto o que a Geologia tem de fascinante.

"(...) e eu acho que é muito fácil a pessoa entrando para Geologia já não sair de lá"

4. Foi isso que o jovem Rui Dias foi descobrir na universidade, quando entrou no curso de Geologia?

Epá, demorou muito tempo. (risos) Demorou muito tempo, até porque todos andamos pelas universidades e sabemos que há aqueles professores que nos vão marcando, por várias coisas, às vezes até menores. Há uns professores que nos marcam pelo conhecimento científico, há outros professores que nos marcam por contar histórias, há outros professores que nos marcam por nos mostrar o poder de uma imagem. E nós vamos andando na universidade, andamos ali naquela primeira fase, que, no meu caso, foi a minha estadia por Lisboa. Eu fui lá professor entre dezembro de 1982 e 1996, e, portanto, esses 13 anos que eu passei em Lisboa foram muito a ganhar as bases, a aprender a tentar ser cientista, a tentar ver o que é que se faz e a tentar aprender a dar aulas.

5. E ainda antes disso, quando era estudante, quais as áreas que lhe interessaram mais?

Quando era um estudante, era um estudante normal. Havia uma área que me interessava muito, muito, muito, que ainda hoje tem um cantinho do meu coração, que é a Paleontologia Evolutiva. E, aliás, Estremoz tem uma 'Coleção de Evolução' grande e se eu tivesse capacidade, e quando eu digo capacidade tem a ver muito com financiamento e coisas do género, o que eu gostaria de fazer era destruir o Centro Ciência Viva de Estremoz e refazê-lo de novo, misturando a exposição base que nós temos, que é uma exposição de dinâmica e evolução da Terra, e depois teríamos uma exposição de evolução [da vida] ao lado. E agora o que gostaria muito de focar também é uma área que começa a dar os primeiros passos, a área da Biogeodinâmica, em que a pessoa olha para a evolução da vida, mas foca as coincidências. As trilobites extinguiram-se quando a cadeira varisca se fez, e aquilo não deve ser por acaso. Quando abrimos o Centro, éramos, chamemos-lhe assim, maçaricos. Não em termos de investigação, mas em termos de comunicação. Portanto, o Centro abre, a exposição é feita em 1998-99, depois houve problemas de instalação, e o Centro [re]abre em 2005. Mas de lá para cá há contactos com dezenas de milhares de alunos, centenas de professores, centenas de atividades, e vamos evoluindo. E a ciência evoluiu muito também, aquilo que se pensava sobre o interior da Terra já não é, conseguimos este ano deitar fora um módulo que tínhamos, um módulo importante do Centro, que era olhar para o interior da Terra, com a exposição de evolução da vida que, neste momento, está num espaço ao lado. E agora substituímo-lo e este ano o nosso módulo já tem penachos quentes, penachos frios, pois o manto é heterogéneo. E nós vamos mudando, o que é bom, e a maneira como nós vemos as coisas também vai mudando. E eu fui crescendo muito em termos de divulgação, a mudança para Évora foi muito importante, pode ter implicado uma perdazinha, chamemos-lhe assim, na minha disponibilidade para a investigação, já não consigo fazer investigação a 80% ou coisas do género, faço a 30 ou a 40%. Portanto, perdi isso, mas ganhei uma visão muito mais geral da Terra, de ligação entre os processos, e acho que o balanço é francamente positivo. 

"As trilobites extinguiram-se quando a cadeira varisca se fez, e aquilo não deve ser por acaso"

6. E isso permite-lhe, já que ensinar é uma coisa que valoriza tanto, chegar a muito mais pessoas, porque agora não ensina só alunos do ensino superior que queiram fazer Geologia, ou ciências, ensina toda a gente, dos mais pequeninos aos mais graúdos, nas diferentes fases da vida, se calhar mais que uma vez.

E há uma coisa que para mim se tornou quase uma necessidade. Havia, na forma como a Geologia era dada, uma série de coisas que, às vezes, eram mal explicadas, algumas que nem eu percebia! E, portanto, quando nós tiramos cursos, vamos estudando e eu lembro-me muito da sensação da descoberta. Lia um artigo, ou um livro e depois olhava para aquilo e dizia, "Como é que é possível que nunca me tenham ensinado isto?", e eu fui bom aluno, fui dos melhores alunos do meu ano. Lembro-me muito bem quando percebi pela primeira vez a importância dos komatiitos, e eu dizia, "Como é que é possível eu ter andado a decorar 500 nomes de rochas, e os riólitos, komatiitos e não sei quê, que nem sabia bem o que é que eram, e não é possível terem-me dito qual é que era a diferença". E foi isso que eu tentei fazer em Estremoz, porque fomos criando, fomos crescendo como equipa, e foi passando por lá muita gente, foi mudando, foi ganhando dimensão. É sempre difícil fazermos balanços, mas, às vezes, tão ou mais importante do que eu publicar um artigo científico, podia ser eu escrever um livro para os professores de liceu poderem dar aulas de Geologia de uma maneira diferente. Eu vivo numa luta permanente, que é, embora eu perceba perfeitamente a importância do que eu faço, ou quando faço ações de formação ou quando escrevo livros para os professores, tenho lá no fundo uma amargurazinha: "Oh pá, eu podia ter escrito mais dois artiguinhos". E, para mim, a ciência continua a ser, e muito bem, fundamental, e se eu não conseguir manter-me minimamente atualizado, eu também não consigo fazer divulgação com qualidade. Portanto, ando ali num limite que não é fácil de manter. Às vezes fico contente com umas coisas que faço, outras vezes tenho uma certa amargurazita, gostava de fazer outras, mas isso calculo que é assim com toda a gente. 

"Eu posso agarrar ali num bicho e contar uma história qualquer, mas as pessoas sabem como é que os bichos aparecem, como é que se reproduzem, a Geologia não. Uma pedra é uma pedra, e a maior parte das pessoas nem sequer pensa que a pedra tem uma história"

7. Para além de ter sido bom aluno, era participativo durante as aulas? E quantos eram no seu ano?

Eu entrei em 1977/78 e foi esse o primeiro ano em que houve numerus clausus [limite máximo estabelecido de estudantes admitidos] para todos os cursos. Portanto, anteriormente só tinha havido numerus clausus em 1976/77 para medicina, mas em 77/78 houve numerus clausus para todos os cursos. Entrámos 45 em Lisboa, desistiram 20-25 no primeiro ano. Na altura, naqueles primeiros anos, a pessoa entrava e depois facilmente conseguia mudar de curso. Portanto, se as pessoas queriam ir para Biologia ou para Medicina, entravam para Geologia e mudavam, e a mobilidade era fácil naquela altura. E depois ficámos reduzidos para aí a 20, fomos chumbando e ficaram 12-15 pessoas, qualquer coisa assim do género. Como é evidente, havia boas e más aulas. (risos) Éramos um grupo pequeno e havia professores que conseguiam ter uma melhor dinâmica connosco, e outros nem tanto.

8. Que colegas do seu ano é que conhecemos?

Colegas a finalizar o curso comigo, muitos deles andam por aí! Ou andavam por aí, porque, entretanto, foram-se reformando. Alguns são o João Mata e o "Zé" Madeira, em Lisboa, e depois a Maria do Rosário – a "Cuca" –, o "Zé" Francisco e a "Lena" Acciaioli [Homem de Mendes] de Aveiro. Penso que eram estes os cinco que acabaram por continuar ligados à universidade, e éramos do mesmo ano. Depois houve uns que foram para a área das minas, houve uns que foram para professores [do secundário]. Todos encontravam trabalho na área, havia vários que queriam ser professores, havia dois ou três que quiseram ir para a área das minas. O curso de [Geologia] Aplicada era à parte, portanto, quem quis ir para o ramo de Aplicada não era meu colega, estavam num curso "ao lado", que era o curso de Geologia Económica e Aplicada. Basicamente, naquela altura, tínhamos a tarefa muito mais facilitada do que os jovens que vieram a seguir, porque, rapidamente, foi na altura em que as universidades estavam a crescer muito, a ter muitos alunos, estavam a ter muitos professores, e, então, foi muito fácil integrarmo-nos. 

9. E tinham uma dinâmica fora das aulas? Fazer atividades, como a feira dos minerais e saídas de campo? Como era o espírito académico?

Eu diria que não muito, fazíamos saídas de campo ligadas às cadeiras, as que os professores organizavam. Pelo menos, no meu ano, não houve muito essa dinâmica. Muito daquilo que era o espírito académico tinha terminado como oposição ao Estado Novo, e a seguir ao rescaldo do 25 de Abril, todas aquelas praxes académicas voltam a renascer só mais à frente. Portanto, eu diria que somos uma geração charneira entre várias coisas. Ainda há bocado [ao almoço] estivemos a falar da geração charneira entre aquela forma de fazer investigação, que era uma forma, chamemos-lhe, mais pacata, uma pessoa fazia o seu doutoramento e depois poderia ir fazendo um bocadito de investigação ou concentrando-se mais nas aulas, ou na forma que veio a imperar mais, que é aquela necessidade de fazer investigação, publicar a investigação. Nós estamos ali no meio, nem somos carne, nem peixe, estamos a meio caminho entre dois mundos. Talvez estivéssemos num equilíbrio, embora os equilíbrios sejam sempre complicados de perceber... o que é que são os equilíbrios?! Muitas vezes há tendência para exagerarmos num lado, mas depois também há tendência para exagerar no outro lado e, portanto, o equilíbrio entre a pessoa publicar por publicar, chamemos-lhe quase a metro, ou a pessoa publicar menos e haver uma maior maturação do que se publica, é um equilíbrio que não é fácil, as regras não são fáceis. Na minha geração, sentimos uma necessidade de publicar que as gerações anteriores não teriam sentido tanto, mas, por outro lado, não estamos, chamemos-lhe assim, acossados pela necessidade de "publicas ou morres". Porque, como eu disse, a minha geração teve a vantagem de as pessoas arranjarem logo emprego a seguir ao curso, não andámos anos a penar. As universidades e escolas estavam a expandir, as minas também estavam a funcionar, e, portanto, não sentimos esta necessidade que se põe em cima dos jovens agora, que é andas de bolsa em bolsa até à vitória final, ou não. Vivemos um bocado, chamemos-lhe, protegidos disso. Fomos ali uma geração charneira, mas vale o que vale, não é nem melhor, nem pior.

10. Mas isso quer dizer que terminou o curso e começou logo como assistente a dar aulas a colegas seus, certo?

Assistente Estagiário, está bem? (risos) Na altura, nem mestrado havia! Eras obrigado a fazer umas provas, que se chamavam Provas de Aptidão Científica e Capacidade Pedagógica, equivalentes a mestrado. E sim, eu, com estes cabelos todos brancos que estão aqui, fui professor de quase todos os professores que estão agora em Lisboa, estás a ver? (risos) O que acontece é que os poucos que eram da minha geração foram-se reformando agora recentemente, e, portanto, neste momento, quem lá anda foram quase todos meus alunos, uns em Lisboa, outros no mestrado em Évora. Nós entrávamos, tínhamos as tais provas, depois fazíamos o doutoramento, aquilo arrastava-se durante um tempo muito longo, porque, entretanto, as bolsas de doutoramento não existiam, e, na prática, a gente fazia um mestrado de dois a quatro anos, dávamos aulas, e depois tínhamos um doutoramento de seis a oito anos, podendo ir a dez, e íamos fazendo a investigação e o doutoramento enquanto dávamos aulas. Era uma filosofia diferente. 

'Na minha geração, sentimos uma necessidade de publicar que as gerações anteriores não teriam sentido tanto, mas por outro lado não estamos, chamemos-lhe assim, acossados pela necessidade de "publicas ou morres" '

11. Há bocadinho disse que gostou sempre muito de Paleontologia. Mas foi essa a disciplina que mais gostou no curso ou qual foi, afinal, a área disciplinar que mais o prendeu?

Isso não é fácil de responder. Por um lado, há aquelas coisas que tu até gostas, independentemente de terem sido muito bem dadas ou mal dadas. Há uma coisa que sempre me fascinou muito que foi a parte da evolução [da vida]. Não, não tanto a parte da sistemática, mas a parte da evolução, sempre me fascinou muito. Quando eu cheguei à parte do final do curso, portanto, estamos a falar de quarto e quinto anos, gostei muito de Estrutural e Tectónica. Quem dava a Estrutural teórica era o António Ribeiro, e a prática de Estrutural Elementar era a Isabel Moitinho, que era da área de Económica e Aplicada, porque o António Ribeiro ainda não tinha assistentes. O António Ribeiro era geólogo nos Serviços [Geológicos], ia lá dar a disciplina e ainda não tinha assistentes. A Carla [Kullberg], o "Zé" Brandão e o João Cabral entraram para a faculdade como assistentes, estava eu no quinto ano. Portanto, ainda apanhei a Carla e o "Zé" Brandão na Estrutural Complementar, na Estrutural Elementar não. Mas foi realmente uma cadeira que gostei muito, e depois acabei por conseguir, eu e o José Madeira, fazermos um estágio em Sintra, que era ali uma perninha entre a Cartografia com um cheirinho de Estratigrafia, e um cheirinho de Estrutural e Tectónica. E foi então que vi que era por aí que teria condições para eu ser feliz naquilo que eu queria fazer. E eu gosto de dizer que eu tenho a sorte de pertencer àquela leva de pessoas que tem a sorte de lhe pagarem um ordenado para fazer aquilo que também faria se não tivesse ordenado, desde que tivesse meios de subsistência. Eu acho que a pessoa pode ser feliz em várias coisas. Tenho a certeza que seria felicíssimo a estudar evolução e biogeodinâmica, desde que tivesse ido por ali.

Rui Dias e Carlos Coke, num "iglo" no Marão, na década de 1980.

"E eu gosto de dizer que eu tenho a sorte de pertencer àquela leva de pessoas que tem a sorte de lhe pagarem um ordenado para fazer aquilo que também faria se não tivesse ordenado, desde que tivesse meios de subsistência."

12. Mudando de tópico: quando é que começou a perceber alguma coisa da nossa Geologia?

Há uma coisa que sempre me fascinou. O mapa geológico de Portugal… desde há muitos anos que eu digo, "Um dia vou ser capaz de olhar para ele e conseguir vender a história deste mapa". Portugal é um país maravilhoso, fantástico, do ponto de vista da Geologia, como é evidente. Eu não conheço nenhum país com a dimensão de Portugal que tenha estado no sítio certo em tantos momentos. E, portanto, nos últimos 600 milhões de anos, Portugal esteve sempre lá. Nós conseguimos, andando umas horas de carro, falar do Cadomiano, ali do final do pré-Câmbrico, abrir e fechar oceanos no Paleozoico, e depois tivemos a sorte de quando abriu o Atlântico, nós estávamos lá, e o Atlântico abriu aqui ao lado. E não levou tudo! Depois tivemos a sorte de não estar ali encostados ao Tétis, e, portanto, temos um cheirinho de Alpes, mas não muito, temos uma serrita da Arrábida, o que permite não estragar muito do que está por baixo. E, aqui, o que sempre me fascinou, desde há muitos anos, era eu ser capaz de explicar a qualquer pessoa a Geologia de Portugal, e ser capaz de transformar aquele mapa Geológico de Portugal em algo que fosse percetível para toda a gente. Eu acho que desde que a gente perceba muito bem uma coisa, consegue fazer isso. Tenho-me dedicado ativamente a tentar perceber a Geologia de Portugal há muitos anos, tenho feito muitos progressos, tenho muitos progressos por fazer. A Cartografia Geológica e a Geologia de uma região andam de mão dada, eu não consigo perceber uma sem a outra. Portanto, a Cartografia Geológica é a base daquilo que eu consigo perceber, e é evidente que há depois toda uma panóplia de metodologias que estão por trás, desde a Estrutural, a Petrologia, a Paleontologia, mas a base é a Cartografia Geológica. E eu costumo comparar a análise dos mapas àquelas bonecas matrioskas, que encaixam umas nas outras. Olhamos para o mapa geológico e dizemos, "Ai, eu percebi qualquer coisinha", e quando a gente tira aquilo está outra coisa por baixo, que a gente não percebe. E costumo imaginar que estou a abrir matrioskas há vinte anos, e está sempre outra matrioska lá por trás, de coisas que eu não percebo minimamente. E eu diria que isto é quase uma obsessão, desde há 15-20 anos: eu um dia hei de perceber a Geologia de Portugal. É evidente que já vou percebendo muita coisa, mas as coisas que eu não percebo são mais do que aquelas que eu percebo e hei de continuar, gosto de pensar que hei de continuar nos próximos anos a abrir matrioskas. Não diria até à matrioska final, que isso nenhum de nós vai ser capaz de fazer, mas hei de conseguir sempre alcançar mais um bocadinho. Estive hoje aqui com vocês, no campo, vocês andaram-me a mostrar algumas coisas que eu não conhecia, e, portanto, aprendi mais qualquer coisinha, e é isso que me motiva. Estás a ver? O que me motiva é eu poder chegar, e faço isso muitas vezes, e levar professores do liceu ao campo, alguns da área da biologia, mas conseguir-lhes mostrar uma zona.

"Olhamos para o mapa geológico e dizemos, "Ai, eu percebi qualquer coisinha", e quando a gente tira aquilo está outra coisa por baixo, que a gente não percebe."

13. E quando é que começou a falar antónio-ribeirês? (risos) Que é como quem diz, quando é que começou a perceber alguma coisa do que ele dizia? E pergunto isto recordando-me de um GeoMod, do qual eu e a Sofia às vezes nos lembramos, e que se calhar já não se lembra, que já lhe passou muita gente pelas mãos, foi em 2010.

Em Lisboa?

14. Sim, foi em Lisboa, e depois fomos fazer a saída de campo em Almograve.

Lembro-me, lembro-me muito bem.

15. Os outros professores que estavam a guiar a saída, estavam muito preocupados com os nomes grandes que lá estavam. E o Rui estava lá também, e estava eu e a Sofia e mais alguma malta nova, não muitos, acho que éramos as mais novinhas, tínhamos acabado de nos licenciar, e lembro-me, claro, pois nem tínhamos ido nenhuma vez a Almograve, que não percebíamos nada do que estávamos ali a ver. E, de repente, o Rui foi ficando para trás, e íamos ouvindo o que eles diziam, e deve ter reparado na nossa cara de "Não estamos a perceber nada", porque o [Fernando] Ornelas falava numa língua que, para nós, era mais ou menos chinês. Mas o Rui foi ficando para trás e conversando connosco, traduzindo. Ou seja, às vezes os professores falam numa língua muito ininteligível, mas o Rui é uma pessoa que pratica outra forma de estar e ensinar

Eu lembro-me muito dos meus primeiros tempos em Trás-os-Montes, e nos meus primeiros tempos em Trás-os-Montes nem sequer água tinha para tomar banho, porque faltava água, havia hora e meia de água em Moncorvo, que era quando eu estava no campo. E, portanto, lembro-me de estar 15 dias em Trás-os-Montes e tomar três banhos. Um no Sabor, que desci ao rio, outro porque vi um tanque de rega, e outro porque fiquei em casa num domingo para tomar banho, já não podia comigo! (risos) Epá, e eu lembro-me de olhar para os afloramentos e de não perceber nada. Portanto, é mais ou menos fácil a pessoa olhar para o Mesozoico ou para o Cenozoico, e quanto mais não seja, sabe onde é que está a estratificação, pode não perceber muito mais do que isso, mas ao menos tem ali uma noçãozinha de onde é que está a estratificação. Mas quando a pessoa vai para o Paleozoico de Portugal, a pessoa olha para os afloramentos e aquilo é chinês. Eu lembro-me dos meus primeiros tempos de Trás-os-Montes, levava uma flauta para tocar enquanto almoçava, e toco horrivelmente mal, mas estava sozinho, ninguém me ouvia, porque aquilo era um desespero. Estava dias no campo, olhava e não percebia as estruturas, não percebia a história daquilo, e andei ali muito tempo até ganhar alguma sensibilidade para as coisas. O António Ribeiro o que me mostrou era: eu andava dois anos a ver lá Trás-os-Montes, levava-o a um afloramento que eu achava interessante e o António Ribeiro chegava lá e abria e fechava oceanos. Portanto, eu chegava à minha rochinha, à minha dobrinha, todo muito contente e muito orgulhoso de mim próprio, e o António Ribeiro mostrava-me que havia uma história por trás daquilo. Tal como eu disse há bocado, é um bocado o sonho de eu olhar para um mapa geológico de Portugal e mostrar às pessoas que aquilo é um filme e não é uma fotografia.

16. E se for Paleozoico então a fotografia é a preto e branco e está toda ratada…

Eu sei, claramente sabido, como se costuma dizer, que olhar para um afloramento paleozoico e tentar ver o que lá está não é fácil, nem sequer é fácil para mim, ao fim de 41 ou 42 anos de campo, e não é fácil para quem tem pouca experiência. E, por isso, uma das partes muito importantes do Centro Ciência Viva de Estremoz tem sido a formação dos professores. Porque quando os professores são obrigados a levar os alunos para o campo, os desgraçados dos professores que têm escolas no Paleozoico, coitados, vão olhar para o afloramento, não vão perceber se não estão a perceber nada porque a culpa é deles ou do afloramento. 80% ou 90% das vezes é do afloramento, que não tem nada para mostrar, mas a capacidade de olhar para lá ou não, não é fácil. E é por isso que eu tenho focado muito esse ensino, e tenho ganhado muito com isso, porque nós aprendemos imenso quando ensinamos. Se calhar aprendemos tanto quando ensinamos como quando estamos a estudar sozinhos, e quando estamos a ensinar a gente tem de se esforçar um bocadinho para que do outro lado esteja uma cara que não seja de desespero, mas uma que nos está a perceber. Às vezes fazem-nos aquelas perguntas que a gente julgava que sabia e que, afinal, não sabíamos, e uma pessoa evolui imenso assim. Portanto, eu diria que apesar da minha mudança para Évora e para Estremoz ter tido aquela coisinha de que tenho menos tempo livre para a investigação, o tal projeto que eu tenho, a que chamei "Portugal de Antes da História", se calhar não teria nascido se eu não tivesse ido para lá. Se calhar iria saber muito mais de Geologia de uma zona muito pequenina ou de uma parte temporal muito pequena, e iria saber menos da pintura geral. A vida tem momentos mais ou menos felizes, em que nos podemos ir adaptando, nós que temos a sorte de nascer onde nascemos. Eu costumo dizer que nós que temos a sorte de nascer a norte da Falha Açores-Gibraltar, temos a sorte de poder ter uma vida que, na generalidade dos casos, nos pode conduzir a coisas boas, se a gente souber aproveitar. Portanto, Estremoz foi claramente bom, e aquele convento ganhou assim uma aura, que já tinha, mas a gente foi a transformando e conseguimos fazer coisas diferentes. 

"(...) aquilo que me deu mais trabalho na conferência toda foi desenhar cinco emoticons. Aquilo era a abertura da conferência, eu podia ter tirado os emoticons da internet, mas aqueles foram todos desenhados por mim, perdi dias naquilo!"

17. Já sabemos quais as três coisas que mais gosta de fazer. E quais gosta menos?

Às vezes, até mesmo na parte de dar aulas, que é aquilo que eu adoro fazer, há coisas que não gosto. Eu adoro contar histórias e, quando eu dou aulas – que para mim é contar histórias –, a forma como a coisa corre também depende de quem está do lado de lá. Há alturas em que tenho grupos de alunos que são mais motivantes, há outros que são menos motivantes, há uns que são menos motivantes e tu consegues motivar, e há uns que são menos motivantes e faças os pinos que fizeres, dificilmente os consegues motivar. Ou mesmo quando faço dezenas de saídas de campo com escolas, há escolas que às vezes me dão um prazer enorme andar no campo, a mostrar Almograve ou Sintra, ou Sines, ou coisa do género, outras não. E, portanto, há alturas em que me sinto mais reconfortado a dar aulas, mas depende sempre de para quem é que tu estás a falar, e muitas vezes isso depende das escolas, dos professores que estão nas escolas, às vezes depende dos anos que os professores apanham. Eu penso que há um balanço final, que é eu levantar-me de manhã, olhar lá para o espelho e até gostar do que estou a ver. Há momentos em que me dá um prazer enorme sentar-me no chão com crianças pequeninas a montar insetos e aranhas e coisas do género e a falar sobre evolução, outros nem tanto. Todas as coisas que fazemos têm momentos positivos e momentos negativos. O Ciência Viva é um projeto, em si, que eu acho que é notável. Por exemplo, tu chegas a Estremoz, que tem 10 ou 11 mil habitantes, e tens um convento que tem várias exposições lá dentro, e passam por lá 20 mil visitantes por ano. Isso não seria possível se não houvesse o projeto Ciência Viva. Como é evidente, em todos os lados há partes menos boas. Como nos conselhos de departamento, nas universidades. Mas lido com esse outro lado como uma inevitabilidade. E eu tento seguir os ensinamentos do Epicteto, que era um [filósofo] estoico grego de há mais de 2000 anos, cujos pensamentos nos indicaram algo como "Que eu tenha a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, o valor para mudar as que posso e a sabedoria para distinguir entre as duas". Tudo o que a gente faz na vida é um somatório, e, portanto, se nós estivéssemos à espera de só ter coisas boas, provavelmente ou iríamos ficar chateados, ou aquilo não ia correr bem. É evidente que em tudo o que fazemos há coisas boas e coisas más. Estar a ver 30 testes de Geologia Geral, alguns deles cheios de baboseiras, não é propriamente aquilo que mais me entusiasma fazer ao serão. (risos) Mas é uma inevitabilidade, porque por outro lado eu gosto muito de dar aulas, depois quando chego aos testes sou confrontado com o facto de que muitas das pessoas que estavam lá até não seguiram muito aquilo. Epá, é um somatório de coisas, são inevitabilidades. Às vezes, as reuniões são muito giras, ou porque se conhece pessoas ou porque se ouve qualquer coisa, mas muitas vezes são uma estopada enorme. Cabe-nos a nós sobrevivermos a isso e irmos navegando. Há conselhos de departamento que são uma seca, há outros que nem tanto, é assim, é uma inevitabilidade. 

"Se a divulgação não tem um forte conhecimento científico vai sair coxa, porque uma pessoa anda ali a divulgar umas coisas, mas não sabe simplificar bem porque também não percebeu o processo. Se a divulgação não tem uma história, sai coxa, e essa história tem de ser percebida pelas pessoas."
"Depois, por motivos vários, o ter-me acantonado em Estremoz é, claramente, um evento que faz de mim o Rui Dias que sou hoje."

18. Há assim alguém, um geólogo, pode ou não ser seu contemporâneo, que admire muito?

Se agarrarem no primeiro livro que eu escrevi [Da Dinâmica Global aos Processos Geológicos], da tal trilogia sobre o tal "Portugal de Antes da História", há três pessoas que eu destaco, para além dos agradecimentos a pessoas que leram o livro e ajudaram a corrigir. Há três professores que eu destaquei no livro, professores que me mostraram a importância de várias coisas. Como é evidente, uma delas é o António Ribeiro, já expliquei porquê. O Galopim [de Carvalho] mostrou-me a importância de contar histórias. O Galopim dava-nos aulas, não dava muita matéria, mas contava-nos histórias, e eu apercebi-me do quão importante é contar histórias. E, portanto, se com o António Ribeiro, as histórias dele, dos afloramentos, não são vendíveis, a não ser para os especialistas da área dele, o Galopim permitiu-me fazer a tal ponte. Há os oceanos e há as montanhas por trás das dobras, mas eu tenho de conseguir transformar aquilo em linguagem que as pessoas que não são tectonistas e estruturalistas percebam. Depois também destaquei nesse livro o Fernando Barriga. O Fernando Barriga foi meu professor e aquilo que ele me mostrou foi o poder da imagem. O Fernando destacava-se numa altura em que não tínhamos um power point com imagens lindas, o que neste momento é banal. Se eu quiser ter fotografias lindas, chego ali ao Google e tenho fotografias lindas do que quiser. Na altura, isso não era banal. Na altura, aquilo vivia-se muito de uns slides manhosos que os professores nos iam passando, muito pouco interessantes, e os slides do Fernando e as imagens do Fernando eram outra dimensão. E, por isso, essas três pessoas, de algum modo, são três pessoas que se refletem naquilo que eu faço. Eu costumo dizer que não se divulga o que não se sabe, e, portanto, eu faço um esforço muito grande para tentar perceber as tais dobras, para depois passar para os oceanos e para as montanhas. Não se divulga o que não se sabe, mas, por outro lado, tem de ser feito numa linguagem que quem está do lado de lá perceba. Se eu quero fazer isso, preciso de conseguir captar as pessoas e as pessoas têm de visualizar as coisas. Depois, destaquei ainda o [António] Serralheiro, de quem fui muito próximo, porque eu quando acabei o curso fiz a campanha de cartografia com ele. Não só estive em Sintra, com ele a orientar, mas fiz a campanha da carta geológica de Santa Maria com ele, ali a marcar limites. Mas aquelas três pessoas, ligam-se muito facilmente. Se a divulgação não tem um forte conhecimento científico, vai sair coxa, porque uma pessoa anda ali a divulgar umas coisas, mas não sabe simplificar bem porque também não percebeu o processo. Se a divulgação não tem uma história, sai coxa, e essa história tem de ser percebida pelas pessoas. Algumas histórias do António Ribeiro, como nós sabemos, tinham grandes dificuldades em ser seguidas, não só quando éramos alunos, mas mesmo agora. E depois há o poder da imagem, e isto foi claramente o Fernando Barriga, as aulas dele e as suas conferências exímias. E o que eu tento fazer é juntar esses três mundos. Perco imenso tempo a fazer desenhinhos. Por exemplo, uma das últimas conferências, que foi em Castelo de Vide [XVI Encontro de Professores de Geociências do Alentejo e Algarve, 2023], aquilo que me deu mais trabalho na conferência toda foi desenhar cinco emoticons. Aquilo era a abertura da conferência, eu podia ter tirado os emoticons da internet, mas aqueles foram todos desenhados por mim, perdi dias naquilo! E perdi dias porque achei que eu metia aqueles cinco emoticons e aquilo captava as pessoas. Se eu metesse aquilo as pessoas ficavam acordadas, se eu não metesse aquilo, as pessoas não ficavam acordadas. É o choque, a pessoa chega e se a pessoa chocar a assistência com qualquer coisa que não está à espera, a assistência acorda. São três casos de pessoas que, independentemente das aulas que davam ou não davam, marcaram aquilo que eu fiz, não só em termos da investigação, mas também em termos daquilo que o Centro Ciência Viva [de Estremoz] faz, e que vou fazendo por aí.

19. E mudando agora das pessoas para as obras, qual é a sua publicação favorita na área da Geologia?

Para mim é a carta 1:1 000 000 de Portugal, de 2010 [LNEG]. Quando comecei a escrever o segundo volume ["Dos Mapas Estáticos a uma Geologia de Portugal Dinâmica"], tinha decidido que aquilo ia ser sobre mapas e tinha pensado, "Bem, vou chegar ali ao 1:1 000 000 e faço uma introduçãozinha, e depois a seguir vou escolher 13 mapas de 13 zonas, com a carta geológica, a pessoa olha e interpreta". Portanto, o segundo volume não tem nada de bibliografia. O segundo volume é assim: eu agarro numa carta, simplifico a carta, o que está na carta está, o que não está na carta, não, estará no terceiro volume. Eu pedi, depois, às pessoas que eram especialistas nas áreas, para me reverem aquilo, porque eu tenho sempre cuidado que as pessoas revejam. Alguns, claro, não perceberam aquilo, e queriam meter mais informação ou tirar. E eu disse, "Isto não cabe aqui, vai estar no terceiro volume". Ou está na carta ou não está! A surpresa que foi para mim, não foram as cartas 50 000 que eu estava a usar, foi a carta 1:1 000 000. E quando eu comecei a agarrar na carta e a fazer os tais desenhinhos e a esmiuçar a carta, eu vi que aquilo era uma matrioska enorme. A ossatura daquilo que eu sei da Geologia de Portugal está na 1:1 000 000. Os petrólogos adoram meter tramas em rochas magmáticas, e dezenas de tramas que têm de lá estar, é óbvio, pois as cartas geológicas não têm que ser didáticas. Não. Tem que estar lá o máximo de informação possível, àquela escala. Quando se chega lá às rochas magmáticas paleozoicas, tem tanta trama e tanta cor, que aquilo é ininteligível. (risos) Mas isso é uma provocação. Quando uma pessoa começa a agarrar naquilo e a simplificar, a Carta é maravilhosa. É, também, a obra com mais autores, que vem de há mais tempo, e que está sempre em atualização, porque está cheia de erros, chamemos-lhes erros, de coisas que sabemos que irão ter de ser mudadas, porque há um momento em que o teu conhecimento muda, e o conhecimento das coisas muda também.

20. Conte-nos o evento ou momento mais marcante da sua carreira.

As nossas carreiras são marcadas por descontinuidades. Portanto, a transição de Lisboa para Évora é evidentemente um momento. Depois, por motivos vários, o ter-me acantonado em Estremoz é, claramente, um evento que faz de mim o Rui Dias que sou hoje. Sem Estremoz, não haveria o Rui Dias que a gente tem. Eu estava em Lisboa e a mudança para Évora foi essencialmente por questões pessoais. A minha mulher, a Isabel, arranjou emprego em Évora, mais concretamente em Estremoz. Eu ainda estive ali dois anos a fazer piscinas, como se costuma dizer, a vir para Lisboa às seis da manhã de segunda-feira e a regressar a Évora às duas da manhã de quinta. É evidente que isto, se pudesse ser mudado, era mudado, e em 1996 eu mudei-me para Évora. A Isabel estava a dinamizar o projeto em Estremoz, e Estremoz tem uma grande vantagem, que é ter um convento, e tu tens de fazer acontecer qualquer coisa. Era evidente que não eram umas aulinhas que a gente lá fosse dar, e, portanto, Estremoz tinha de crescer, e vários motivos levaram-me a achar que estávamos muito bem em Estremoz. Fomos construindo aquilo que Estremoz é hoje, e Estremoz é muita coisa, não é só um Centro Ciência Viva, não é só um sitio de aulas, é um sitio em que a gente pode fazer eventos acontecer, é um sitio por onde gerações de alunos, pós-docs e docs têm passado por lá, em várias ocasiões diferentes. E Estremoz nasce um bocado disso, nasce da cidade, nasce do facto de a gente ter de dinamizar um espaço, e nasce de um potencial de um espaço. Neste momento, conseguimos fazer eventos, como o que tivemos agora, o EsTED [Estremoz Talks on Earth Dynamics, 2024], em que conseguimos ter 70 pessoas a dormir no convento, que não conseguimos noutros sítios, e, portanto, temos ali uma infraestrutura que está vocacionada para várias coisas, e é uma grande vantagem. Eu diria que se tivesse que arranjar uma coisa ao estilo "Porque é que o Rui Dias é o Rui Dias", eu diria que quando mudei de Lisboa para Évora/Estremoz, abriu-se um novo capítulo que não existiria de outra forma. E, se calhar, já agora, para acrescentar, o Rui Dias escreveu menos uns trabalhos da Zona Centro-Ibérica e escreveu mais outras coisas, e, epá, não são nem melhores nem piores, são diferentes.

22. E um momento que tenha sido potencialmente um embaraço ou mesmo um falhanço, há algum?

Ah, isso há vários, porque dores de barriga há muitas. Quando a pessoa tem de arranjar um apicultor para ir falar às criancinhas da instrução primária, por exemplo. (risos) Há uma coisa que, a mim, me embaraça muito, que é as pessoas que não me conhecem bem julgarem que eu estou muito à vontade, e não é verdade. Por exemplo, eu estou aqui bastante à vontade porque estamos a conversar, se eu tivesse de estar aqui a fazer um vídeo a explicar as rochas que estão por trás de mim [Formação Louredo, Ordovícico Superior], era um pesadelo. Porque eu detesto representar. Para mim, dar aulas, não é representar, é a minha profissão, estou à vontade, não tenho problema nenhum em chegar a um sítio com 500 pessoas e dar uma aula. Se vocês me puserem a fazer de Afonso Henriques, para criancinhas, em Estremoz, para mim seria um horror. Ou, então, quando às vezes a pessoa está a dar aulas e sente que do outro lado não há empatia e que a gente não conseguiu criar empatia com as pessoas, por vários motivos, ou porque estamos menos inspirados ou porque a plateia do outro lado é menos recetiva, isso, para mim, custa-me muito. É aquele momento em que eu começo a suar e a sentir picadas e a dizer, "Tirem-me daqui!!". Eu agora, por exemplo, estou a dar muitas aulas sem diapositivos e coisas do género, a falar. Mas, se a mensagem não passa, a mim custa-me.

23. Se pudesse viajar no tempo geológico e assistir a um evento concreto, qualquer, na boa, qual é que seria?

Só um evento? Claramente eu iria para o Paleozoico. Apesar de tudo, o Paleozoico é aquilo que eu vou percebendo melhor. Neste momento, há uma questão que para mim é um ponto muito importante. É aquilo em que eu penso gastar os meus tempos mais próximos a tentar perceber: a causa da formação da cadeira varisca e quais os mecanismos que estão por trás daquilo. Portanto, há aqueles modelos do "Estamos sempre a apertar", vamos apertando e colapsando. Neste momento, é aquilo que me move mais, é tentar perceber isso. Só que, provavelmente, das duas uma: ou me davam assim uma visão de raio-X da cadeia de montanhas toda para estar a ver, ou, se lá estivesse, durante um milhãozito de anos, sentado cá em cima, se calhar não via muito. Basicamente, é nisso que eu penso tentar investir o meu tempo. Há principalmente duas correntes, e a ciência, neste momento, funciona muito como aqueles cegos, surdos e mudos, que é: uns vendem um modelo e os outros vendem os outros, e não tenho nada a ver com isso, eu publico os meus papers, tu publicas os teus papers, e pronto. E eu gostaria de tentar ver e tentar perceber… É um dos problemas que eu tenho no terceiro volume da trilogia "Portugal de Antes da História". O terceiro volume [Geologia de Portugal no Contexto dos Ciclos Tectónicos] não pretende ser uma história única, pretende ser uma história a discutir os pontos fortes e fracos dos vários modelos. E eu, sem perceber os pontos fortes e fracos dos vários modelos, tenho a tal dificuldade a contar a história.


Intraclasto

Os Bioblocos

Como intraclasto, o Rui trouxe-nos o seu último projeto do CCV Estremoz, os Bioblocos. 

Isso começa com uns desafios que o Centro vai tendo, e as escolas de Montemor[-o-Novo] contactaram-nos para ir lá com umas abelhas, falar sobre polinização e não sei quê, e a gente tentou encontrar apicultores, mas não arranjámos. E como não arranjámos apicultores, tivemos de puxar pela cabeça. E, felizmente que não arranjámos, porque criámos um conceito que é, eu diria, das coisas mais originais que o Centro tem feito, que são usarmos um pouco a lógica dos legos para fazer coisas, para montar estruturas e mostrar como é que as coisas funcionam. Neste momento, temos o tal conceito dos bioblocos. Construímos nós, e quando eu digo nós é porque vamos para a oficina, com madeiras, e vamos fazendo coisas. Temos um conjunto de blocos com os quais vamos montando artrópodes. Começámos com os insetos e as aranhas, passámos para as trilobites e agora vamos passar para os crustáceos. E o que a gente consegue mostrar aos jovens das escolas é que a evolução funciona. Há uns saltos evolutivos muito grandes, que são poucos. Os artrópodes, apesar de serem dos grupos de seres pluricelulares que andam cá há mais tempo, há apenas meia dúzia – seis, sete ou oito – grupos de artrópodes. Ou seja, inventar grupos é difícil. Inventar, dentro de cada grupo, milhares de formas diferentes, é fácil. Costumamos fazer o paralelismo com as artes: se formos ver quantas formas de arte há, há poucas. Há a pintura, o teatro, a música, a fotografia, o cinema, a escultura, há poucas formas. Dentro de cada forma nós temos milhares, ou centenas de milhares, de tipos, de géneros, de peças, assim como temos de espécies. A evolução é a mesma coisa, inventar uma coisa verdadeiramente nova, a evolução não tem sido capaz de fazer muitas vezes, porque é difícil. Se os filhos forem muito diferentes dos progenitores, a capacidade de sobrevivência não é muito grande. A partir do momento em que eu tenho uma forma, a partir do momento em que a evolução descobre como fazer insetos, agarro numa cabeça, num tórax e num abdómen e em seis patas, e, a partir do momento em que eu faço isso, a seguir eu ponho asas, tiro asas, ponho os olhos de uma maneira, ponho de outra, mudo a cabeça, e a evolução faz isso. Dá-me imenso gozo sentar num tapete a imitar relva, no chão, com os meninos da primária, e andar a mostrar-lhes os modelos, que as aranhas não são insetos e as diferenças entre aranhas e insetos, e dá-me muito gozo estar a esse nível.



Geomanias

Rocha preferida? Gosto muito de um gabro deformado.

Mineral preferido? Ah, eu diria que não tenho. Como estou ali em Estremoz e há aquelas calcites todas, ficamos pela calcite.

Fóssil preferido? Gosto muito de trilobites. Principalmente umas trilobites deformadas, são lindas!

Unidade litostratigráfica preferida? Eu se calhar iria para o Quartzito Armoricano.

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Os metálicos.

Era, Período, Época ou Idade preferido? Paleozoico, claramente.


Trabalho de campo ou de gabinete? Campo, claramente.

Martelo ou microscópio? Martelo, claramente.

Pedra mole ou pedra dura? Dura.

Esparrite, Esparite, Sparite ou SparriteEu iria para a Esparite. 


Teaser da Entrevista