António Mateus

Março 2023






RECURSOS MINERAIS

SÓCIO APG Nº O564



Eclético e de espírito crítico, é natural de Vila Franca de Xira e professor na FCUL. A metalogenia, a geoquímica e a mineralogia compõem a sua paragénese científica. Considera que ser pago para pensar é um privilégio e nada lhe dá mais prazer do que procurar respostas, sejam quais forem as questões.

"Há um livro (...) que tem uma frase magistral (...) 'a Geologia é uma forma distinta de pensar o mundo'. E, de facto, essa é a vicissitude de um geólogo: nós somos formados a interpretar o mundo de uma forma completamente diferente (...) torna-se muito difícil dizer qual é o andar preferido, qual é o fóssil preferido, qual é a rocha preferida, porque é tudo preferido!"

Foi nesse edifício que tão bem conhecemos, o C6 da FCUL, no Campo Grande, que conversámos com o António, um dos "discos pedidos" do APG 365. Apesar da sua aversão assumidíssima a qualquer tipo de registo audiovisual, tivemos o privilégio de o ouvir falar do privilégio que foi e é estudar Geologia. Orgulhosamente nascido e criado em Á-dos-Loucos, tem ajudado a criar e a passar o testemunho a várias gerações de geólogos metalicamente enviesados. Venham conhecer os processos que formaram este ortogeólogo e professor oldschool, amante de gin tónico e pintor em tempos idos. Passados estes anos, já não consegue preferir objetos geológicos isolados, porque são todos produtos de processos maiores em sistemas maiorais, regidos pelas mesmas leis, mas sempre singulares. É que isto de estudar Geologia, é de loucos!


Entrevista 

FCUL, Lisboa, julho de 2022


1. Nome, data e local de nascimento?

O nome é fácil: António Manuel Nunes Mateus. A data de nascimento também é simples: 18 de março de 1962.

2. E o local?

Ah, o local! Á-dos-Loucos! (risos) Pode-se rir à vontade, toda a gente se ri. Tenho muito orgulho em nascer numa aldeia que se chama Á-dos-Loucos, [antiga] freguesia de São João dos Montes, concelho de Vila Franca de Xira. 

3. Explique-nos, mas que possa ser entendido por leigos, o que faz profissionalmente.

Aí está uma das questões que exige alguma ponderação na resposta. A minha atividade principal é de docente. Sou professor. E o que eu procuro transmitir às várias gerações de estudantes é uma forma de perscrutar o mundo, de torná-los sensíveis àquilo que são os produtos dos processos geológicos no tempo e no espaço, à forma como eles interagem e à forma como eles nos podem servir para suportar a nossa civilização, como sempre têm suportado e suportarão no futuro, enquanto assim o entendermos. Porque andam para aí uns lunáticos de vez em quando e não se sabe o que é que podem fazer. Mas essa é a minha preocupação fundamental e, ao mesmo tempo, porque não dizê-lo e assumi-lo, procurar que nesta transmissão de conhecimentos, nesta transmissão do gosto pelos processos geológicos, pelos objetos geológicos, lhes possa também moldar um pouco o caráter. Torná-los menos individualistas, torná-los mais solidários e também humildes perante os sistemas naturais, destruindo visões antropocêntricas. E isto não é retórica barata, é aquilo que, por exemplo, acabei de fazer nos últimos dez dias [saída de campo do Mestrado de Geologia, FCUL]. No que diz respeito à investigação, porque não há atividade docente universitária sem suporte investigativo, o que eu procuro fazer, desde há quase quarenta anos, já falta pouco, muito pouco, é mesmo tentar compreender os processos geológicos que concorrem para a génese de domínios rochosos que sejam particularmente enriquecidos em alguns elementos químicos. Significa isto procurar traçadores para esse enriquecimento, traçadores esses que inevitavelmente irão conduzir a minerais portadores dos elementos. Os elementos não existem per se, estão incorporados em fases minerais. E a essa atividade, no geral, chama-se prospeção mineral. E é a conciliação de todas as ferramentas geológicas, geoquímicas, geofísicas - e dentro das geológicas estou a colocar tudo o que é a petrologia, estratigrafia, geologia estrutural, sedimentologia, etc. - todas as metodologias que me sejam úteis para a compreensão de um processo geológico ou de um conjunto de processos geológicos que num tempo e num espaço permitiram a génese dessa anomalia.

4. Portanto, podemos dizer que é um caça anomalias?

Não. Eu não gosto, talvez por ser sisudo demais, circunspecto demais, de frases bombásticas, títulos bombásticos, coisas assim muito espampanantes e gosto de falar de uma forma séria das coisas, mesmo que possa brincar. Eu sou assumidamente um geólogo que procura desenvolver o essencial da sua atividade de investigação no âmbito da prospeção mineral. E, consequentemente, na delimitação de anomalias geoquímicas passíveis de exploração económica.

5. Em que ano e onde é que ingressou no curso de Geologia?

Ingressei aqui, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Não propriamente neste espaço, mas onde ela funcionava nos idos anos de 1980. "Há mais de cinco anos!" (risos) [expressão icónica do geólogo Fernando Barriga]

6. E qual é que foi o primeiro contacto consciente que teve com a Geologia?

De uma forma consciente, esse primeiro contacto acontece relativamente cedo. Um dos meus avós, nomeadamente o meu avô materno, era forneiro na antiga "Cimentejo" [Fábrica Cimento Tejo], hoje CIMPOR. E, portanto, eu desde miúdo que conhecia as pedreiras, achava muita piada aos geodes de calcite e de vez em quando encontrava uns fósseis. Eu tinha para aí uns nove, dez anos, e naquela terminação de Alhandra, nas linhas de Torres Vedras, subia muitas vezes ao forte e encontrava sempre uns geodes. Depois, de uma forma mais consciente, eu diria que aconteceu no curso complementar dos liceus, antiga alínea f, atualmente vai corresponder para aí ao 10º-11º ano, em que tive um professor, não me recordo do nome dele, mas um senhor de idade que a primeira coisa que disse foi "Esqueçam o manual, eu vou guiar-me por este livro". E apresentou-me o livro do professor Carlos Tôrre de Assunção [Curso de Geologia], que eu achei o máximo. Pedi para ele me emprestar o livro, o senhor disponibilizou-se para o fazer e eu depois consegui encontrar esse livro num alfarrabista, ainda o tenho, não o tenho aqui [gabinete], tenho em casa. Guardado, porque foi um livro que me marcou bastante. E eu gostei imenso dessas aulas, porque eu estava muito indeciso. Aliás, fui para a alínea f como podia ter ido para letras, porque as médias na altura eram equivalentes, e, portanto, era-me irrelevante. Simplesmente, na família, eu era bolseiro, não havia hipótese! E a única coisa que os meus pais me diziam era "Meu caro amigo, é preciso encontrar uma formação que depois te permita arranjar emprego". Eu gostava muito de filosofia. Filosofia e belas-artes era aquilo que eu queria cursar. Mas nisso, o meu pai era muito direto "Epa, é muito interessante, mas isso é uma coisa que tu podes fazer sempre paralelamente". Engenheiro era uma coisa que eu nunca queria ser. Não tenho nada contra os engenheiros, mas o facto de ter nascido e vivido, até vir para Lisboa e até acabar o curso, na cintura industrial de Lisboa e de fazer todo o percurso de comboios, há uma marca, eu diria de natureza quase política e não só, que me marcou muito. A questão dos engenheiros e a forma como muitos deles, não digo todos, felizmente, mas muitos olhavam de maneira estranha, sobranceira até, e eu nunca quis ir para engenharia. E, portanto, a alínea f era uma possibilidade e havia várias hipóteses. Depois, no ano em que eu acabo o liceu, acaba também o serviço cívico e aparece uma coisa esquisita, que era o propedêutico. E aí foi a rebaldaria total. O que me convenceu, em boa medida, a cumprir o propedêutico, foram os textos de apoio do professor Galopim [António Galopim de Carvalho]. E foi, de facto, um momento que também me marcou muito. E tive depois, posteriormente, um enorme prazer em tê-lo como professor e mais tarde, e ainda tenho, o grato prazer e a grata honra de ele me considerar seu amigo. Isso para mim é uma honra imensa. 

7. Então foram essas aulas, foi isso que o levou para a Geologia?

Eu acho que sim. Sinceramente, não tenho propriamente uma certeza. Aquilo que eu sei foi que, conscientemente, quando eu faço a candidatura às faculdades, eu só podia vir para Lisboa. A minha família não tinha hipótese absolutamente nenhuma, do ponto de vista financeiro, para me apoiar fora de Lisboa. E, portanto, eu coloco medicina em primeiro lugar. Eu sabia que não tinha média para entrar em Lisboa, podia entrar em Coimbra ou no Porto, sobretudo em Coimbra, e acabei por pôr medicina e pôr Faculdade de Ciências. E foram dois cursos a que concorri. Num deles, eu sabia que não entrava, neste [Geologia], era por uma questão de gosto, vocação. Tinha gosto por vulcões, achava imensa graça aos livros do vulcanólogo Haroun Tazieff, devorava aquela coisa.

8. E onde é que tinha acesso a esses livros?

Eu fui bibliotecário das associações recreativas de Alhandra. Quer do Alhandra Sporting Club, quer da Sociedade Euterpe Alhandrense. Não tinha muitos livros em casa, então era aí que eu me vingava. E deu-me gozo. Eu só descobri a mineração muito mais tarde.

9. Entrou em Geologia e o que é que a família disse?

Eu nesse aspeto tive rédea solta. A única coisa que sempre me disseram foi que estavam a fazer o melhor que podiam para me ajudar e, portanto, que eu teria de corresponder. Aliás, sempre foi assim desde que eu acabei a quarta classe, que eu ainda a fiz naquele sistema de exame nacional que havia na sede de concelho. E, portanto, eu estava destinado, como a maior parte das pessoas da minha idade e do meu estrato social, a ir para a escola industrial. E as meninas iam para a escola comercial, como a minha prima que tem basicamente a mesma idade que eu. E foi a professora primária que, falando com o meu pai, solicitou que ele pedisse, enfim, uns bons ofícios da antiga fábrica da MAGUE, da família Vaz Guedes, que davam bolsas, e foi assim que eu vim para o liceu. Mas isso era o normal. Felizmente tudo isso acabou, já numa fase em que eu estava no arranque do liceu, mas em qualquer dos casos, era assim que as coisas se processavam. E eu sempre assumi, desde cedo, as responsabilidades de ter aproveitamento escolar. Então tinha escolhido aqueles dois cursos, vim para o segundo, já sabia que tinha média para entrar, e nesse segundo, o primeiro ano não correu bem, não foi muito católico. Tive muita dificuldade em habituar-me ao estilo de Lisboa, estava habituado a um outro meio, que hoje em dia é quase Lisboa, não é? Mas em 1979/80 vir a Lisboa era assim uma coisa... Tive muita dificuldade na primeira ambientação. E o primeiro ano não foi fácil. Mas depois as coisas encaminharam-se.

"A Cristalografia é como a água tónica: primeiro uma pessoa não gosta, mas depois aquilo entranha e não queremos outra coisa"

10. Os seus pais perceberam logo as saídas profissionais que poderiam estar ao seu dispor?

Era uma questão que na altura não se colocava. Essa era uma vantagem muito grande que a minha geração tinha relativamente ao que acontece hoje. As pessoas sabiam que tendo uma formação de nível superior, tendo uma licenciatura, estavam, digamos, autorizados a exercer uma profissão. E havia trabalho, de facto. Quer dizer, não havia lugar em todos os cantos, não é? Mas havia procura. E havia, efetivamente, possibilidade de encaixe. Podia não ser a fazer exatamente aquilo que a pessoa queria, mas havia saídas. E havia saídas como à moda antiga, o chamado emprego para o resto da vida, a menos que a pessoa não quisesse. Eu tive colegas que saíram de Portugal, foram para o estrangeiro, e continuam a trabalhar nas grandes multinacionais, hoje aqui, amanhã acolá. Houve outros que ficaram em empresas nacionais e houve outros que entraram nas universidades, porque também tive a sorte, efetivamente, como variadíssimos outros colegas, de me licenciar na altura em que houve um boom, digamos, a grande explosão, ou grande expansão da universidade. Consequentemente, houve uma entrada de um número muito significativo de pessoas.

11. Conhecemos alguns desses colegas?

Vocês conhecem-nos todos! Nós não éramos muitos. Quando eu entrei, éramos um pouco mais. Suponho que vocês tenham consciência que o curso era de cinco anos. Portanto, nos três primeiros anos terminava-se o bacharelato, havia pessoas que faziam o bacharelato e depois iam fazer outra coisa e havia outros que terminavam a licenciatura. Dos 41-42 alunos que entraram, que já era assim um valor perfeitamente absurdo, penso que chegaram ao fim cerca de 30. Aqui na faculdade, os que foram meus colegas de curso foram a Isabel Costa, o Fernando Ornelas, o Paulo Fonseca e a Catarina Silva. Espero não me esquecer de ninguém, se não ainda me puxam as orelhas! (Risos) Depois a Conceição [Freitas] e o Mário Cachão, que são basicamente contemporâneos, eles entraram em 1979. A pessoa com quem eu mais me dava fez o bacharelato e depois foi para o conservatório de piano, que era o Pedro. Depois, mais pessoas... o João Luís Gaspar, que está na Universidade dos Açores, a Gabriela Queiroz, que está na Universidade dos Açores, e a Teresa Ferreira, que também está na Universidade dos Açores. Dos 30 e poucos que acabaram, a esmagadora maioria fez um doutoramento e estão no IPMA, estão no LNEG, estão em várias universidades.

Grupo de discentes e docentes do Departamento de Geologia da FCUL, 1985 [A. Mateus na fila de cima, à direita]. Imagem cortesia de João Mata.

12. Como aluno, como é que se considerou nesses anos?

Isso depende das unidades curriculares. Em algumas tive um desempenho meritório. Noutras, bastante meritório.

"Eu fiz o meu estágio de licenciatura na mina da Borralha [...] e é aí que faço o meu tirocínio como profissional, é aí que tenho o meu primeiro batismo de fogo, no interior de uma mina, é aí que vejo que há atividades profissionais muito, muito duras. Muito mais do que eu julgava conhecer na cintura industrial de Lisboa, uma lição para o resto da vida"

"os sistemas geológicos são, todos eles, particulares. E enfermam de uma própria singularidade. Portanto, o gozo está em compreender a singularidade, mesmo dentro de uma grande tipologia"

13. Qual foi a sua disciplina preferida?

Tive muitas preferidas! Por exemplo, eu venho para Geologia e a mineração é qualquer coisa que não me diz absolutamente nada. E quando tive aulas com o professor Fernando D'Orey, vocês não conheceram, foi um mundo que se me abriu. E foi ele que me fez mudar, efetivamente, a minha perceção sobre aquilo que poderia ser uma saída ao nível dos depósitos minerais, ao nível da atividade de um geólogo nos depósitos minerais. Depois, no ano imediatamente a seguir, a chegada do professor Fernando Barriga do Canadá foi quase como um tempero extra àquilo que estava ali a fermentar e fez-me afastar da tectónica. Previamente, tinha tido aulas com o professor António Ribeiro e tinha sido um deslumbramento. Mas antes disso, tinha tido aulas com o professor Ricardo Quadrado e toda a gente odiava as aulas, porque ele dispersava-se, mas eu achava aquilo o máximo! Achava o máximo porque ele era capaz de começar a falar num cristal, no que era a matéria cristalina, e acabava a falar da galáxia. Portanto, uma pessoa com uma compreensão, uma capacidade de síntese, ou não síntese, das coisas, e eu era capaz de estar horas e horas a ouvi-lo falar. Há professores que me marcaram, de facto, de uma forma profunda. Lembro-me de aulas fabulosas do professor Matos Alves [Carlos Alberto Matos Alves] a falar sobre Streckeisen [diagramas de classificação de rochas ígneas]! Ele fazia aquilo com uma paixão tão grande e com uma elegância de tal modo grande que eu ficava maravilhado. Como as aulas do Professor José Manuel Munhá, também quando regressou do Canadá, foi a grande lufada de ar fresco no departamento, com a sua visão termodinâmica. Uma pessoa ficava completamente siderada! Portanto, eu não tenho propriamente uma disciplina, uma unidade curricular, a eleger. Lembro-me do Fernando [Correia], de Paleontologia, que era uma disciplina que eu odiava. As teóricas eram dadas pelo Serralheiro e as aulas práticas eram dadas pelo Fernando. E ele era um individuo fantástico, tinha uma experiência fabulosa, tinha trabalhado na Elf Aquitaine [petrolífera francesa] e criei ali uma espécie de um laço com ele. "Epá, eu detesto essa coisa", "Mas oh António, tem de fazer isto!", e então lá me obrigava a desenhar o raio dos fósseis. E depois era aquela componente da botânica e o diabo a sete e os andares, memorizar aquilo, eu achava tudo um pavor! Mas foi ele, o Fernando... As pessoas marcam muito, não é a unidade, [não basta] apenas o tópico ser interessante, não é? Lembro-me das aulas do Galopim de Carvalho, por exemplo da geomorfologia. Ele dava poucas aulas e depois eramos nós que dávamos as aulas - isto já estávamos no quarto ou quinto ano. Escolhíamos temas, tópicos, mas as aulas que ele dava... aquilo era uma conversa. Mas uma coisa fluida, em que, de facto, percebíamos [os temas] e que nos obrigava a ler, a ir aos livros, a estudar. Havia fotocópias, mas eram caras. Nós íamos para as bibliotecas, consultávamos, permutávamos apontamentos uns com os outros, etc. A professora Isabel [Costa] era uma craque, os cadernos dela, aquilo tinha tudo e mais alguma coisa! Ela era uma máquina. (risos) Fazíamos sínteses de livros, que passávamos uns aos outros e isso foi interessante. Guardo muito boas recordações desses tempos, desse intercâmbio, dessa solidariedade entre os colegas, de uma forma geral. Há pouco não mencionei [pergunta 11], mas estou agora a lembrar da Rita Fonseca, a Teresa Drago, o Carlos Coke, o André Mattoso...

14. Uma geração de ouro! (risos)

Não sei se é uma geração de ouro... Uma geração que gostava de Geologia! E mesmo os que não gostavam tanto de Geologia, aprenderam a gostar. Lecionei cristalografia durante muitos anos, dez a doze anos, e utilizava sempre uma expressão, nas primeiras aulas, que me definia. Há alunos, ex-alunos, que ainda se recordam disso: "A Cristalografia é como a água tónica: primeiro uma pessoa não gosta, mas depois aquilo entranha e não queremos outra coisa". E, de facto, a Geologia tem muito disso, muitas vezes as pessoas têm uma aversão, mas é porque não lhes são colocadas as coisas da forma certa. Quando a gente está no liceu - e eu dei também durante alguns anos apoio aos núcleos de estágios - e entramos numa sala, está tudo arrumadinho e "É a gaveta dos basaltos, zuct!" (puxando gaveta imaginária)."E é a gaveta dos granitos, zuct!". "E agora é a gaveta das calcites". Isso não faz sentido absolutamente nenhum! E a transmissão desse gozo, ou se adquire de uma forma inata, porque a pessoa já gosta e, portanto, quer lá saber o que lhe dizem e segue o seu caminho, ou então, tem de ter um conjunto de colegas que puxem e acabem por entrosar a pessoa.

15. Mas ainda agora admitiu que era um ano muito bom. Eventualmente, era uma geração com gosto, que se calhar escolheu, teve a oportunidade de escolher vir fazer o curso.

Sim e não. Havia muita gente que queria ir para biologia, para medicina...

16. Ah, já acontecia isso na altura? Ainda hoje é assim!

Sim, sim. Mas isso tem muito que ver com a forma como os temas são lecionados no ensino secundário. Porque enquanto tivermos pouca gente da Geologia, trabalhando em Geologia, a lecionar Geologia, essa parte sairá sempre mais coxa. Acontece sempre o mesmo com a física e com a química. Exatamente a mesma coisa! Umas pessoas puxam mais para um lado, outros puxam mais para o outro. Portanto, o problema maior é que, de facto, e eu acho que essa é a diferença fundamental entre esses tempos e os atuais, havia na altura a consciência de que era preciso disciplina, rigor, para atingir objetivos. Esse objetivo era concluir o curso, pelo menos concluir o bacharelato. Hoje em dia, não.

17. Maturidade? Sente que havia mais maturidade?

É diferente. Eu não quero comparar a maturidade. Talvez.

18. Eu tenho essa perspetiva.

Talvez. A minha geração acaba por viver o período pós 25 de abril numa altura muito precoce da adolescência. E isso deixa marcas. E aquela tentativa de uma autonomia exagerada acaba por conduzir as pessoas a perderem uma parte daquilo que é o gozo da adolescência. E hoje em dia, acho que a adolescência se prolonga para além daquilo que é saudável. Na minha modesta opinião.

19. Sim, sim, até aos 30 anos... (risos)

Ou mais, não é? (sorriso) Portanto, quando hoje em dia, a um estudante de mestrado ou doutoramento, temos de dizer que é preciso partir uma amostra no campo... Vamos a um afloramento e ele vai devagarinho com o martelo, parece que tem medo que a rocha comece a gritar com ele. Significa que a pessoa não está no seu ambiente, tem alguma dificuldade em sair daquela casca em que a colocaram. Mas [voltando à pergunta 13], uma vez mais, depende dos tópicos. E dependia sempre muito dos docentes. A relação docente-discente não era a mesma que vocês conheceram. Eu diria que, pelo menos à escala do departamento, houve uma mudança enorme, com uma vaga de entradas de assistentes estagiários, o caso do José Brandão, César Andrade, Rui Dias, Jose Madeira, a Cristina [Ana Azerêdo], a Maria Cristina [Cabral] etc., e isso permitiu, efetivamente, a proximidade, mesmo em matérias relativamente herméticas e nas quais era difícil muitas vezes obter, digamos, algum apoio, algum feedback. E alguns professores não gostavam que lhes fizessem perguntas! Felizmente eram poucos. Mas havia quem não gostasse. E esse pessoal mais novo criou uma dinâmica muito própria no departamento que, depois, acaba por ser complementada com a entrada também do ─ porque não dizê-lo, pelo menos é o que eu sinto! ─ Fernando Barriga e do José Manuel Munhá. Acabam por trazer, também, uma forma diferente de olhar para o mundo, trazendo inclusivamente, professores convidados, para dar uma aula. Conheci o professor Fernando Noronha, uma pessoa por quem tenho uma enorme simpatia e uma grande amizade. Aprendi muito com ele. E foi nessa altura que eu conheci o conheci, porque o Fernando Barriga o convidou para vir dar uma aula sobre depósitos de estanho e volfrâmio. E, gradualmente, as coisas foram efetivamente melhorando. A minha participação nas aulas era normal, convencional. E se, de facto, a aula se prestava a uma participação muitíssimo grande, muito bem, eu participava.

20. E fora das aulas, gostava de participar no ambiente académico, como a associação de estudantes?

Dentro daquilo que era possível, sim. Não tanto quanto fiz no liceu, onde durante muitos anos tive uma participação muito ativa, que me marcou profundamente enquanto pessoa, enquanto aluno. Mas quando vim para a faculdade assumi que, efetivamente, não teria tempo para [isso], até porque muitas vezes tinha que sair e tinha horários muito estabelecidos, porque tinha que dar explicações.

21. Dava explicações?

Dava explicações de física, química, matemática, daquilo que aparecia, porque eu precisava de ter um complementozinho [financeiro] daquilo que os pais me podiam dar, que não era muito. E, portanto, se eu queria continuar a comprar o meu macito de cigarros e tal...

22. Não era para os livros, também?

Sim, para os livros felizmente tive alguma ajuda, mas em qualquer dos casos, tinha um complemento. Não era muito grande, trabalhava quando era possível e nas férias. E, portanto, isso também não me permitia ficar em Lisboa. Para além de que nós tínhamos horários preenchidos. Foi no rescaldo do segundo incêndio da Faculdade, tínhamos horários perfeitamente loucos e aulas em três, quatro locais. Tínhamos aulas na "24 de Julho", aulas na Politécnica, na Travessa do Rosário e na Academia das Ciências. Então aquilo era um vai e vem de um lado para o outro e muitas vezes era das oito da manhã até ao fim da tarde, aos sábados de manhã, inclusive. Tive aulas com o professor Miguel Ramalho, por exemplo, aos sábados de manhã, porque nós não tínhamos lupas para ver foraminíferos. E, portanto, era difícil compatibilizar tudo.

23. Lembra-se da primeira campanha de prospeção que fez?

Lembro! O primeiro trabalho que eu fiz enquanto geólogo, isto é, enquanto licenciado em Geologia, foi em janeiro-fevereiro de 1986, no Escoural, e foi uma recolha de amostras para trabalho de petrografia de opacos, seguida de uma cartografia de detalhe de sanjas de prospeção. Na altura, a concessão estava com a Riofinex. Fui lá três ou quatro vezes, e depois fazia o trabalho na faculdade, onde eu já estava como assistente estagiário.

24. Tem algum geoídolo?

Eu sou materialista, eu não tenho ídolos, tenho referências. Referências que me moldaram como pessoa, que me moldaram como profissional. Por variadíssimas razões. Algumas dessas pessoas influenciaram mais a minha carreira do que outras, por estarem mais próximas das temáticas que estudo. Outras influenciaram decididamente tudo, independentemente de eu fazer isto, aquilo ou aqueloutro. É difícil citar nomes, mas se me permitirem citar vários... Há vultos cujo contributo para a ciência geológica nacional é incontornável. E como eu já disse há pouco, tive um enorme privilégio em poder trabalhar com alguns desses vultos, de os conhecer, e alguns deles deram-me a honra de me permitir tornar-me mais próximo deles. Como é óbvio, não posso deixar de citar o professor António Ribeiro. Uma personagem única, que, de facto, tem um gabarito intelectual invulgar. Seria também injusto não citar quem me conduziu, nos primeiros anos, foram dez anos basicamente, porque os tempos contavam de forma diferente do que contam hoje. Mas até me doutorar, seria muito injusto não mencionar o professor Fernando Barriga. Não obstante os caminhos que posteriormente percorremos, isso não significa que eu não tenha por ele um enorme respeito, uma enorme consideração e um reconhecimento ímpar, por tudo o que me proporcionou, deixando-me, inclusivamente, fazer e entregar uma tese como eu queria, independentemente se era uma "múltipla tese", como ele disse, ter coisas para além do que estava previsto. Mas não cortou a possibilidade de eu usufruir daquilo que, para mim, é algo que não tem preço, nesta profissão, que é a liberdade académica. E aprendi imenso com ele, proporcionou-me inclusivamente acesso a meios fora do país, permitiu-me conhecer pessoas invulgares, únicas, como o professor Bill Fyfe [William Sefton Fyfe] e muitos outros. Não posso deixar de mencionar o professor José Manuel Munhá. Só privei um pouco mais com ele quando já estava numa fase bastante adiantada da minha carreira, mas por tudo o que ele me ensinou e, sobretudo, pela sua capacidade analítica, capacidade de integrar os diferentes temas. A quantificação dos processos foi uma coisa que sempre me apaixonou bastante, e que encontrei nele, juntamente com o professor Costa Almeida, mas nele em particular, porque está mais próximo das minhas áreas. Deu-me apoio e tinha uma capacidade de aprofundamento de matérias que era, e ainda é, única. E o professor Fernando Noronha, que está indelevelmente relacionado com o meu percurso, por muitas razões. Eu fiz o meu estágio de licenciatura na Mina da Borralha, que na altura ele acompanhava do ponto de vista geológico, e é aí que faço o meu tirocínio como profissional, é aí que tenho o meu primeiro batismo de fogo, no interior de uma mina, é aí que vejo que há atividades profissionais muito, muito duras. Muito mais do que eu julgava conhecer na cintura industrial de Lisboa, uma lição para o resto da vida! E é depois que, através do Fernando Noronha também, acabo por me meter no estudo das inclusões fluidas e uma quantidade de outras coisas, puxo para os granitos, estudo granitos e as coisas evoluem. Em todos os momentos-chave, digamos, da minha carreira, em todas as provas académicas, com exceção das primeiras, da aptidão pedagógica e capacidade científica, como se chamava antigamente, o Fernando Noronha acaba por estar presente em todas. E tenho um imenso orgulho nisso. Foi uma personagem única. E podia citar variadíssimos outros nomes. Mesmo geólogos de tarimba. Aprendi imenso com o doutor Vítor Oliveira, geólogo do ex-Serviço de Fomento Mineiro, quando mergulho pela primeira vez, depois de dez anos de Centro Ibérica, na Zona de Ossa Morena. Ele foi uma personagem ímpar. Com imensa paciência, aprendi muitos truques de campo, vi muita coisa e estou-lhe imensamente grato. Há muita gente! Todos me marcaram e, sobretudo, independentemente de uns poderem ter sido mais bem-sucedidos que outros, ao fim de todos estes anos, olhando para trás, as marcas que muitos docentes e profissionais nos deixaram são muito fortes. E a personalidade muda significativamente. Eu só espero, enquanto docente, deixar alguma marca também nesse sentido. Mas é, de facto, impressionante, quando olho para trás, mesmo para pessoas de áreas distantes da minha, como o professor Carlos Romariz. Tratei com ele meia dúzia de coisas. Ele era presidente do departamento quando entrei como assistente estagiário, conversei com ele umas 10, 15, 20 vezes, mas apercebo-me hoje quão importante foi a visão que ele teve para o desenvolvimento deste departamento, dentro desta Faculdade, as apostas que foram feitas, etc. Outras pessoas passavam quase despercebidas, como o professor Costa Almeida, mas a sua importância na informatização... eu aprendi a trabalhar com o Costa Almeida no Spectrum, aquela coisita! Aprendi umas luzes de programação que depois desenvolvi sozinho, mas em BASIC, e depois o QuickBASIC, depois parei por aí. Depois disse, "Não, já não dá mais para mim". (risos) Mas reparem que isto, nos anos 80, eram quase trovoadas de inovação, porque chegavam todas ao mesmo tempo. E, felizmente, este departamento conseguiu construir uma coisa que me satisfaz muito, que foi um espírito de colaboração, independentemente de haver, porque há sempre desaguisados, aqui e acolá, mas globalmente foi sempre possível manter uma cordialidade e uma transmissão de testemunho que eu registo com particular agrado. E, enfim, espero fazer a minha parte, que é passar o testemunho, já não falta muito... 

"O que me dá prazer é encontrar respostas às questões, quaisquer que sejam as questões. Não tenho propriamente questões favoritas, acho que todas as questões são importantes"

25. No ano em que entrámos em Geologia, o professor tornou-se catedrático. Como foi para si esse momento? Porque ainda era muito novo.

É difícil responder a essa questão. Eu devo dizer que procurei preparar-me sempre o melhor que me foi possível e que soube para as diferentes fases da minha carreira profissional. Houve sempre um sopro de sorte, digamos assim. Eu não procurei, não ambicionava ser catedrático. Era um momento crítico, lembro-me que foi nesta mesma sala, com dois professores catedráticos que eu estimo imenso e por quem tenho um enorme respeito, - não falei de um deles, Manuel Oliveira, apenas por lapso, refiro-o agora. Embora nas lides da hidrogeologia, tenho por ele um apreço pessoal, pela forma pragmática de resolver uma série de questões, diferente dos restantes, complementavam-se - e então, explicou-me que, efetivamente, seria importante para o futuro do departamento que tal acontecesse. Tal como eu projetava, e discuti muito isso com o César Andrade, que também foi catedrático no mesmo concurso, era uma fatura cujo preço era muito elevado, por variadíssimas razões. E a minha dúvida era saber se estava ou não estava em condições para assumir que teria de pagar esse mesmo preço. Perdem-se graus de liberdade, ganham-se algumas, vamos dizer de uma forma gentil, dificuldades de comunicação com os colegas, porque não conseguem distinguir aquilo que são relações de âmbito pessoal de relações de âmbito profissional. Efetivamente, fui catedrático muito cedo, do mesmo modo que fui associado muito cedo, por força de circunstâncias diversas. E, portanto, o que tenho feito, ou procurado fazer, é desempenhar o melhor possível essas funções, com todas as contrariedades que as mesmas me trazem. E trazem muitas contrariedades...

26. Até porque um ou dois anos depois foi logo diretor do departamento, não foi? Sentia-se preparado para essa tarefa?

Nunca se está preparado para desenvolver trabalho administrativo ou de gestão. Designadamente quando não se gosta de o fazer. Já tinha desempenhado funções de gestão noutros contextos, quer na faculdade, como vice-presidente do Conselho Científico, como professor associado, quer alguns anos mais tarde como vice-presidente do INETI, Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial. E, portanto, não caio em pergaminhos absolutamente nenhuns e procuro desempenhar as funções o melhor que consigo e sei, embora não seja aquilo que goste de fazer. Não significa que o faça necessariamente mal, mas não sou gestor, não sou administrador. Eu acho que a maior parte das tarefas de gestão são uma questão de bom senso, em particular neste tipo de instituições. É uma questão de bom senso e é uma questão de boa vontade pensar no coletivo, que é uma coisa que, infelizmente, em Portugal, se pensa pouco. E, em particular, na comunidade dos geólogos, pensar no coletivo é algo muito complicado. Há um conjunto de fatores que levam, efetivamente, a uma antecipação das aposentações. Tradicionalmente, a esmagadora maioria dos professores universitários seriam aposentados quando atingiam o limite de idade, portanto, seriam jubilados. Mas, a partir de 2002-2003, há uma tendência inversa. E consequentemente, por força dessas circunstâncias, de um momento para o outro, eu e o Professor César acabámos por estar sozinhos, numa batalha muito difícil dentro da faculdade. Tentámos o nosso melhor, com o apoio dos colegas, obviamente, mas tentámos o nosso melhor. Podíamos ter feito coisas diferentes? Sim, podíamos. Melhores? Certamente. Foi o que foi possível fazer. Acho que o futuro falará por si.

"E é um privilégio imenso ser pago para pensar. [...] E é uma responsabilidade acrescida. Porque as pessoas têm de estar sempre, dentro do possível, e cada vez é mais difícil, atualizadas, têm que estudar, sempre. E sair das suas zonas de conforto. Porque se não, não fazem mais do que aquilo que sempre fizeram

27. Qual é a coisa que mais prazer lhe dá fazer na sua atividade profissional?

É procurar respostas a questões que surjam. Independentemente de serem questões do foro sociológico, como compreender a razão pela qual um conjunto de alunos está com um ritmo de aprendizagem inferior àquilo que seria expectável, ou o inverso, compreender esta ou aquela outra questão suscitada por um conjunto de análises químicas. O que me dá prazer é encontrar respostas às questões, quaisquer que sejam as questões. Não tenho propriamente questões favoritas, acho que todas as questões são importantes. Eu abracei esta carreira por gosto, não fui empurrado para aqui, e, portanto, procurei de entre os vários elementos de referência, que há pouco referi, Ricardo Quadrado, Fernando Barriga, Munhá, António Ribeiro, etc., encontrar uma forma de, sem perder a minha personalidade, dar o meu contributo enquanto docente universitário. Para mim, um docente universitário não é um investigador, nem é um docente tout court. É alguém que pensa, tanto quanto possível, mais profundamente os problemas, procura formular novas questões, procura encontrar métodos de transmitir os conhecimentos. Mas para responder aos desafios que são colocados, tem de estar preparado, ser proativo e capaz de antecipar problemas ou situações. Isso foi uma das grandes lições do Munhá, foi exatamente isso. O Munhá pensava a dez anos. Há coisas que estamos hoje a viver e, de vez em quando, falo com ele ao telefone e digo-lhe "Zé Manel, parece que te estou a ouvir há dez anos atrás, não é?". É impressionante! E é um privilégio imenso ser pago para pensar. É um enorme privilégio! E é uma responsabilidade acrescida. Porque as pessoas têm de estar sempre, dentro do possível, e cada vez é mais difícil, atualizadas, têm que estudar, sempre. E sair das suas zonas de conforto. Porque se não, não fazem mais do que aquilo que sempre fizeram.

28. Ou podem optar por fazer isso, mas então não vão eventualmente superar-se.

Eu penso que uma parte significativa daquilo que nos impede de desenvolver é, efetivamente, o receio de inovar, de sair da zona de conforto. Mas muitas vezes é preciso sair, eu diria quase sempre. Se não sairmos da zona de conforto, aquilo que sabemos hoje vale até um determinado limite. Podemos então ser o superespecialista do osso número três da asa do pterossauro, mas perdemos o animal como um todo.

29. Qual é a parte que menos gosta da sua atividade profissional? As funções de gestão e administrativas?

Desde há muitos anos a esta parte, faço uma espécie de missões. Eu, por exemplo, neste momento estou naquilo a que chamo de sabática administrativa, ou seja, fui durante quatro anos presidente do Conselho de Escola e agora, nos próximos quatro, não quero continuar nada. E acho que é preciso renovar, acho que as pessoas não se podem eternizar nas funções. Se calhar por ser o decano do departamento, calhou-me a tarefa de coordenar o terceiro ciclo. Mas não tenho neste momento nenhuma outra função administrativa. Não me aborrece absolutamente nada estar em reuniões, o que menos gosto é, efetivamente, este tipo de entrevistas. Não fico confortável com este tipo de entrevistas. Acho que uma das minhas grandes incapacidades é efetivamente falar com jornalistas. É a incapacidade de fazer passar uma mensagem, depois fragmentam aquela coisa e sai completamente fora do contexto, e eu odeio isso. Felizmente tenho bons exemplos, mas a esmagadora maioria deles são péssimos exemplos e isso deixa-me desconfortável. Quanto à fotografia, detesto. Sempre detestei, desde miúdo.

"Há coisas que gosto de fazer, há outras que não gosto tanto de fazer, há outras que detesto fazer. Mas se as que detesto fazer, sou, pela força das circunstâncias, obrigado, porque tenho mesmo, eu faço, acabou. Ninguém morre por causa disso"

30. Qual é a sua publicação favorita, ou uma das? Pode ser um livro que goste de ler ou ir consultar, uma carta geológica, etc.

Não tenho. Se vocês olharem aqui para a estante vocês encontram tudo e mais alguma coisa. Um favorito, favorito, não tenho. Tenho vários livros favoritos!

31. Nem o Zussman? [designação coloquial do livro "Minerais constituintes das rochas: uma introdução", de William A. Deer, Robert A. Howie e Jack Zussman]. (risos)

(risos) Não, não exageremos. Não. Se quiser um livro, não é um livro que neste momento consulte com frequência, mas um livro que me marcou, pela sua abrangência e pela forma como me permitiu, pessoalmente, interiorizar a necessidade de olharmos para os processos como um todo e não apenas para os produtos, é o "Fluids in the crust" do professor Bill Fyfe. Se quiser um outro dele, é o "Planet under stress". Dele e de vários outros autores, deve estar para aí algures [na estante]. Ele é o coordenador da primeira parte. É um livro fabuloso que antecipou uma parte significativa daquilo que hoje toda a gente fala dos sistemas terrestres e alterações globais. É um livro pioneiro, muito interessante.

32. Diga-nos qual é o momento mais marcante na sua carreira?

Indiscutivelmente é o meu doutoramento. Por tudo o que ele representou, do ponto de vista do esforço pessoal e da minha forma de perspetivar a Geologia, de não seguir apenas um plano, obviamente com concordância do professor Fernando Barriga, que me deu praticamente carta branca. Portanto, eu ajustei as várias áreas de trabalho que me tinham dado e acabei por fazer a minha interpretação em função daquilo que fui aprendendo, fui trabalhando, aprofundando. Foi um momento muito gratificante. E até mesmo do ponto de vista pessoal, por todas as razões e mais algumas. A primeira, porque obviamente foi o culminar de um processo longo. Era até para fazer doutoramento em Neves Corvo, mas houve problemas com a abertura do poço de Santa Bárbara, e quer eu, quer o Fernando Ornelas, acabámos por "Oh, vão para Trás-os-Montes!", pronto. (risos) E como vocês estão a ver, não é propriamente uma coisa simples: a Geologia do nordeste transmontano é muito complicada. Nós não estávamos habituados, não tínhamos treino, mas tudo se aprende. E assim foi. E, portanto, foi um desafio pessoal, gradualmente fazendo trabalho de cartografia, amostragem, petrografia, incluindo petrografia de rochas de falha, estudei quartzo durante dez anos! Mas tive de sacrificar uma parte da minha vida particular. Depois foi gratificante, porque os membros do júri, pessoas por quem eu tenho uma enorme estima, incluindo o Professor Bill Fyfe, o Professor Fernando Noronha, o Professor Fernando Barriga, o Professor Ricardo Quadrado, o Professor António Ribeiro, e, de facto, foi um dia muito marcante, nunca mais me esqueço: 22 de abril de 1995 foi quando defendi a minha tese. E foi um dia muito marcante para mim. Muito marcante.

"[...] por vezes criamos [...] uma dicotomia que se vai esbatendo à medida que as pessoas se apercebem que a ciclicidade dos processos geológicos não é por mero acaso, não é uma tonteria. E essa ciclicidade dos processos geológicos tornam-nos mais humildes"

33. Foi uma boa discussão?

Foi uma excelente discussão, gostei imenso. Um calhamaço de 1000 páginas. Tinha um volume pequenino que era uma síntese dos processos e depois um outro volume maior, em que tinha os dados todos, de geologia estrutural, quantificação, mineralogia, litogeoquímica, etc. Foi um marco importantíssimo. Indiscutivelmente.

34. E um momento profissional que seja o mais embaraçoso?

Ui! Tantos! São tantos. É complicado, são muitos. A começar pelos variadíssimos falhanços das submissões de projetos à FCT, muitos desses projetos qualificados com cotações de muito bom, excelente e não recomendados para financiamento, abordando questões que até agora não vi ainda respondidas. Procuro tirar daí ilações... Considero também um falhanço quando tenho taxas de reprovação elevadas, numa ou outra disciplina ocasionalmente isso acontece, ou quando os alunos não vêm às aulas. Fico muito preocupado. Acho que é um falhanço [pessoal]. Há também uma cota-parte da minha responsabilidade, porque não estou a ser capaz de transmitir uma mensagem de que é importante ir às aulas. Mas talvez se ponderar, de uma forma integrada, estes anos todos, diria que o maior falhanço mesmo foi não ter tido a resiliência necessária para levar até ao fim a restruturação do INETI, que acabou por dar o LNEG [Laboratório Nacional de Energia e Geologia]. E depois de termos um plano bastante interessante, já lá vão quase 20 anos, em que as linhas de força eram riscos e recursos, ligados com a energia, etc. Enfim, aquilo que hoje em dia estamos a fazer. E hoje em dia é indesmentível, toda a gente acha que isso é normal, naquela altura não era bem assim. Mas de facto, depois de ter acertado tudo com variadíssimos diretores de departamento, reuniões para aqui, para acolá, quando a tutela política puxa o tapete, eu não vejo outro remédio senão pedir a demissão. E acho que esse foi o maior falhanço profissional. Mas voltando atrás, perante as circunstâncias, continuaria a tomar a mesma decisão. Há matérias de princípio que não se hipotecam. Mas tenho pena de ter deixado esse processo na sua infância. Foi burilado durante muitos meses, trabalhado afincadamente, com a colaboração de muita gente, não era uma proposta minha, era uma proposta de variadíssimas pessoas, com inputs interessantíssimos das componentes de engenharia, de energia, de materiais, de desenvolvimento sustentável, da própria Geologia, na altura ainda IGM. Mas considero um enorme falhanço e, em particular, quando olho para a situação atual. Não quero com isto dizer que tivesse sido mais bem-sucedido, não é isso que eu ponho em causa. Mas o que eu vejo é uma asfixia imensa da relevância do trabalho dos geólogos na sociedade e, sobretudo, não vejo a comunidade geológica a colaborar, conforme eu gostaria. Ou nos outros sucessivos falhanços, na tentativa de criação de redes, e aí, indiscutivelmente, tive sempre o apoio do Professor Fernando Noronha, sempre uma personagem ímpar, esteve sempre ao meu lado. Das várias vezes que tentámos construir redes de intercâmbio, disto e daquilo, esteve sempre do meu lado. Por duas vezes estivemos à beira de o conseguir, mas houve sempre alguém que invocava não sei o quê e era preciso mais uma assinatura, era preciso mais um papel e morria. Conseguimos, vá lá, do mal o menos, uma entrada na rede de infraestruturas, através do C4G, já não foi mau. Mas podíamos ter muito mais, se tivéssemos a capacidade de partilhar mais e de pôr em cima da mesa aquilo que nos une e não aquilo que nos separa. Mas pronto, isto é retórica filosófica barata.

35. Tem algum hobby fora da Geologia?

Isso depende muito da forma como se pode interpretar a palavra hobby. Se ler e ouvir música é um hobby, esses são os meus hobbies favoritos. Em tempos idos, pintava. Mas já perdi o traço. Pintava em tela, usando vários materiais, tinta-da-china, cera...

36. E assim numa tarde de verão, com calorzinho, podemos encontrá-lo numa esplanada a beber uma imperial e a comer uns tremoços?

Não, é mais fácil encontrar-me numa esplanada a beber um gin tónico e a comer um caju. Mas também posso trocar, em vez de um gin tónico pode ser um mojito, por exemplo, ou então, também, porque não, uma boa taça de vinho branco fresquinho.

37. Branco ou verde?

Branco, maduro! Verde só em situações muito particulares.

38. Se não tem vindo para a Geologia, o que é que teria sido?

Não faço a mínima ideia. Nunca essa pergunta se me colocou. Eu não gosto de olhar para trás. Antes de concorrer à vaga de assistente estagiário, que na altura abriu, em outubro de 1985, fui a entrevistas à COBA, até fui à SOMINCOR. Na COBA, disseram-me logo que era impossível enquanto não tivesse o serviço militar cumprido, na SOMINCOR a coisa ficou ali na dúvida e concorri [à FCUL] e fiquei. Portanto, eu não sei responder a essa questão, muito sinceramente não sei. Eu fui educado para concretizar coisas. Na realidade sou um operacional, portanto, eu adapto-me. Há coisas que gosto de fazer, há outras que não gosto tanto de fazer, há outras que detesto fazer. Mas se as que detesto fazer, sou, pela força das circunstâncias, obrigado, porque tenho mesmo, eu faço, acabou. Ninguém morre por causa disso. O que é importante é, de facto, ter dignidade no trabalho. Havendo dignidade no trabalho, tudo se resolve. Lá está, está a ver? Filosofia barata. (risos)


Intraclasto

Gasómetro da Mina da Borralha

Como objeto especial, o António levou-nos um gasómetro oferecido por ex-alunos [Filipe Ribeiro, Eduardo Soares e Ivo Martins]. Este era da Mina da Borralha, onde o António fez o estágio de licenciatura.

O gasómetro surgiu no início do século XX e é um dispositivo de iluminação que utilizava gás acetileno como combustível, resultado da reacção química de carbureto com água. Era com ele que os mineiros iluminavam as galerias, enquanto trabalhavam. 


Geomanias

Rocha preferida? Não tenho uma rocha favorita, todas as rochas são bonitas, todas as rochas são interessantes. Mas pronto, charnoquito!

Mineral preferido? Quartzo, essa é fácil.

Fóssil preferido? Não tenho. (risos) Pronto, ponha aí uma coisa dessas [coisa dessas = equinoderme Schizaster, que recolhia na infância]

Unidade litostratigráfica preferida? É difícil! Eu percebo a razão de ser das vossas perguntas, mas o problema é que eu não tenho uma resposta concreta, porque depende daquilo que eu estiver a lidar num determinado momento, da questão que me estiver a suscitar curiosidade. Neste momento, talvez o Grupo das Beiras, ou os famosos Rare Metal Granites, como a Argemela, ou os granitos muito diferenciados, por exemplo, pegmatitos de lítio, com espodumena e petalite. Ou coisas fosfatadas. 


Era, Período, Época ou Idade preferido? Se estiver a pensar à escala global, e tendo em conta os meus interesses em processos geradores de depósitos minerais, o Proterozoico, o Paleoproterozoico ou o Mesoproterozoico. Aqui, no jardim à beira-mar plantado, terei de pôr o Paleozoico, tudo o que seja ante-Trias!

Trabalho de campo ou de gabinete? Os dois!

Martelo ou microscópio?  Todos! À moda do Fernando Noronha, eu sou um ortogeólogo. O trabalho de Geologia começa no campo, mas não pode acabar aí!

Amostra de mão ou lâmina delgada? Ambas! 


Pedra mole ou pedra dura? Se me fizesse essa pergunta há 15 anos, eu sem hesitação nenhuma dizia pedra dura. Eu tenho aprendido nos últimos tempos a integrar, reapreciar, a importância dos análogos modernos na compreensão dos sistemas antigos, deformados, etc. Portanto, eu hoje olho com encanto até para as dunas do quaternário, veja lá, a que ponto é que eu cheguei! (risos)

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? É a mesma resposta, equivalente à anterior, embora se tenha mesmo que optar... [escolha os metálicos]. Mas não é dicotómico. Acho que isto faz parte da evolução, faz parte da nossa maturidade enquanto geólogos.

Lusitânica ou Lusitaniana? Lusitaniana.


Teaser da Entrevista