ENGENHARIA DE MINAS

SÓCIO APG Nº O1047


José Simões Cortez

Agosto 2023











Nome incontornável da engenharia em Portugal, devemos a Serpins este carismático engenheiro de minas. Professor jubilado da FEUP, o 'eterno' diretor técnico da Empresa das Lousas de Valongo ajudou a explorar muitas outras coisas, inclusive águas minerais. Foi bastonário da Ordem dos Engenheiros entre 1985 e 1992. 

'Eu cometi um erro técnico. (...) Às tantas, eu estava lá em baixo a puxar, o fio desprendeu-se e o calhau foi por ali abaixo e caiu-me na cabeça. Fui eu mesmo que puxei a pedra para cima de mim. (...) Tinha eu na altura 31 anos. Se eu tivesse morrido, o problema maior era para a minha mulher, porque já tínhamos quatro filhos. E para a minha família, para os meus irmãos, porque teriam de ajudar, não é? E eu neste momento já estava lá ao pé de Santa Bárbara, a nossa padroeira, todo sentadinho, todo satisfeito' (risos)

Em estado de surpresa: foi assim que nos sentimos quando terminámos a entrevista a José Simões Cortez, nome maior da engenharia de minas, com um humor que nos faz admitir que, afinal, ainda existem engenheiros razoáveis! De construtor de casinhas com castanhas para bastonário da Ordem dos Engenheiros, do chão de Serpins para as minas europeias, venham conhecer esta carismática ponte de memórias de outros tempos, com um relato tão divertido que quase parece que era fácil. Resta-nos agradecer às ardósias de Valongo, e à Santa Bárbara!, terem-lhe dado outra chance. Ele agarrou-a e de que maneira: mantém-se ativo há 90 anos e, se for preciso, os seus dias têm 25 horas.


Entrevista 

Porto, julho de 2022


1. Nome, data e local de nascimento.

José António Simões Cortez, nascido na freguesia de Serpins, concelho de Lousã, distrito de Coimbra, no dia 1 de agosto de 1933. A que horas do dia, não sei.

2. Conte-nos, como se fosse para leigos, o que faz profissionalmente.

Neste momento sou professor catedrático aposentado da Universidade do Porto. Desde sempre, porque tinha uma família numerosa a sustentar, fiz profissão liberal. Fui falar com o meu professor orientador, que era o professor Farinas de Almeida, e disse-lhe que, antes mesmo de me doutorar, em consequência da família, tinha de ir trabalhar para o exterior, mas que estivesse sossegado que eu me doutoraria a tempo. E assim foi. Comecei a trabalhar, a fazer profissão liberal, primeiro numa mina de sheelite em Pinhel, depois como diretor técnico das empresas das lousas de Valongo, onde continuo, e depois nas minas de caulino, de talco de areias. Aí, a partir de 1964, dediquei-me às águas minerais e sou atualmente diretor técnico das termas de Almeida, de Amarante, e de Aregos [Resende], do Carlão [Vila Real] e de Cambres [Lamego].

3. Em que ano e qual o curso em que ingressou?

Ora bem… acontece que eu, desde pequeno, na minha aldeia natal, imaginava e fazia casinhas com castanhas no chão. Portanto, depois da escola primária e do liceu, ia para Engenharia Civil. Só que reprovei a "Álgebra Superior, Geometria Analítica e Trigonometria Esférica", assim se chamava a cadeira, e como dantes as cadeiras davam precedência umas às outras, eu automaticamente perdia um ano. Eu era pobre, não podia perder anos. Na mesma altura, foi fundada a Junta de Energia Nuclear, apareceu nas faculdades um ofício a pedir engenheiros de minas e muitos mudaram. Posso citar-vos alguns nomes, por exemplo, o Luís Cardoso da Costa, salvo erro, o Professor Henrique Garcia Pereira. Todos eles andavam em Engenharia Química e mudaram para Engenharia de Minas, ao passo que eu ia para Civil e mudei para Minas. Lá também havia rigor no número de cadeiras que se podia fazer: ou cinco anuais, ou quatro anuais e duas semestrais. Eu encaixava-me no plano curricular e mudei para Minas.

4. Em que ano então começou na Engenharia Civil e quando mudou para Engenharia de Minas?

Portanto, eu entrei para a faculdade em 1951. Em consequência disto, eu perdi um ano e, portanto, estamos a falar de 1955, ano em que eu venho para o Porto para completar o curso.

5. Porquê o Porto para vir completar o curso?

Porque na altura não havia em Coimbra a continuação do curso, só havia os preparatórios. Nós fazíamos preparatórios e depois íamos para o Porto - eu vim para o Porto porque tinha cá um tio padrinho, mas outros iam para Lisboa. Por exemplo, o engenheiro Cardoso e Cunha, que toda a gente conhece - foi Comissário Europeu e Ministro - era de Leiria, estava também na minha turma, e depois foi para Lisboa e eu vim para o Porto.

6. E diga-nos, quando anunciou que queria tirar um curso de engenharia, a sua família ficou satisfeita?

Sim, ficaram satisfeitos. 

'o inspetor escolar (...) assistiu ao meu exame e insistia "Manda o rapaz para o liceu!". E isso determinou a minha vida.'

7. Qual foi a reação deles?

Eu, a partir dos 11 anos, determinei toda a minha vida. Quando reprovei a "Álgebra Superior, Geometria Analítica e Trigonometria Esférica", essa cadeira enorme, lembro-me muito bem que fui de comboio para Serpins e o meu pai estava à minha espera na estação. Perguntou-me "Então?" e eu disse "Chumbei". Ele não me disse uma palavra e foi comigo até a casa.

8. Eles sabiam que engenharia era um curso difícil, não é? Tinham essa noção?

O meu pai era comerciante. Tinha trabalhado aqui no Porto, mas não se apercebia se era difícil, se era fácil. O meu pai não era licenciado… era bom comerciante.

9. Tinha outros irmãos mais velhos, que já tivessem ido para a faculdade antes de si?

Não, não. Tive uma irmã mais velha, que morreu, depois fui eu e depois tive mais três irmãos. Um deles ficou com o nosso negócio, lá em Serpins, que era um supermercado, como agora, mas que vendia tudo. Vendia sal, vinho, fazendas, miudezas, petróleo, tudo isso vendia. Era um supermercado moderno em 1929. E depois tive um irmão que fez toda a sua carreira na EDP. Tinha o curso de mecânica eletricista da escola Brotero de Coimbra. E tenho um irmão mais novo, engenheiro eletromecânico do Instituto Superior de Engenharia, que faz diferença de 17 anos para mim. Eu nasci em 1933, ele nasceu em 1950, no Ano Santo, tem agora 72 anos. Entretanto, agora já somos só três.

10. Então foi o primeiro dos filhos a ir para a universidade?

Sim, fui o primeiro. O meu pai era correspondente do Banco Espírito Santo, em Serpins, e a intenção dele era ir a Coimbra ao Banco Espírito Santo e pedir para eu ficar como paquete, meter-me lá. Na altura, os exames faziam-se no concelho e eu tive de ir fazer o exame da 4ª classe à Lousã. Lá, o inspetor escolar, o senhor doutor António Baptista de Almeida, que era muito amigo do meu pai, assistiu ao meu exame e disse para ele me mandar para o liceu. E o meu pai dizia "Não, não tenho hipótese, ir para Coimbra é muito caro'' e o senhor António insistia "Manda o rapaz para o liceu!". E isso determinou a minha vida. Senão tinha ficado… (hesitação) porventura teria mais dinheiro, seria banqueiro, porventura estaria melhor na vida. (risos)

11. Que colegas teve em Engenharia de Minas, que continuaram nesse mundo, ou até em Geologia?

Em Coimbra tive um colega, um amigo, que foi uma pessoa ilustre e ainda continuamos amigos, o Professor Horácio Maia e Costa. Foi reitor da Universidade do Porto, foi bastonário como eu, e agora é professor jubilado. Eu não me jubilei, aposentei-me antes porque tive um cancro e por isso deixei algumas das minhas atividades. Portanto, aposentei-me e não e não me jubilei, mas, de qualquer maneira, foi apenas um ano antes. Esse era meu colega aqui de Coimbra.

12. E colegas aqui do Porto?

Tive um colega que ainda é vivo, tem quase 100 anos, vive em Vila Viçosa, que é o homem dos mármores. Esteve no Brasil, onde teve uma pedreira de mármore e foi o inventor do camião grua! Aqueles camiões que vão à pedreira, carregam o bloco no camião e vêm para cima, tal como nós agora fazemos nas ardósias. Chama-se Joaquim Inácio Dias Duarte. Tive outro colega, o Fernando Faria, que esteve no Ultramar e fez a vida na Panasqueira. Já morreu.

13. Todos do seu ano?

Sim, todos do meu ano. Nós éramos 11. Os engenheiros de minas eram tradicionalmente poucos e, naquele meu ano, houve uma situação gira, porque o professor [Isidoro Augusto] Farinas de Almeida, no início das aulas dele, cumprimentava sempre cada aluno, que normalmente eram só três ou quatro. Quando foi o nosso curso, que éramos uns 11, ele ficou surpreendido por ter de cumprimentar tantos. (risos)

14. Para esses tempos, isso já era uma grande proximidade, não era?

Foi o único professor que nos cumprimentava à entrada da aula. O professor Farinas de Almeida foi uma referência para nós, porque há duas coisas na geomecânica, como agora se chama, que foi ele o introdutor. Uma é a noção de pressão sensível, que significa a pressão que realmente se sente nos maciços rochosos quando se abre uma escavação, aquela pressão que realmente se tem de suportar com o revestimento de madeira. Chamou-lhe ele "Pressão Sensível". Outra é o conceito da expansão dos terrenos: quando se abre uma cavidade, por muito compacto e sólido que seja o terreno, expande um bocadinho. E esse conceito foi ele que definiu. O engenheiro Farinas de Almeida, de ascendência espanhola, originalmente ''Fariñas", era diretor das minas de carvão de São Pedro da Cova e concorreu à Faculdade de Engenharia com a tese intitulada "A pressão dos Terrenos em Lavra de Minas" - que eu tenho aí dois ou três exemplares – e não havia na altura na universidade quem arguisse essa tese. Portanto, ele foi nomeado diretamente como professor. Foi meu orientador e meu amigo por causa da seguinte situação. Em 14 de julho de 1964 eu tive um acidente grave nas louseiras de Valongo. Caiu-me um calhau na cabeça, fraturei o crânio e levei 21 pontos. Podia ter morrido. O radiologista disse que o que me tinha salvo foi o capacete. A minha mulher telefonou-lhe a dizer que eu tinha tido aquela situação e ele disse "Esteja descansada que nós vamos adiar o doutoramento do seu marido". E adiaram. Na altura, não nos doutorávamos quando queríamos, tínhamos sete anos para nos doutorarmos. Eu formei-me em 1958 e tinha de me doutorar até 1965. E, mesmo assim, ainda cumpri o prazo, porque me doutorei a 24 de fevereiro de 1965. 

"O capataz meteu-me no caixão (risos) e só acordei quando já vinha a ser içado para o exterior."

15. Quando aconteceu esse acidente, chegou a perder a consciência?

Claro! Eu só acordei quando já vinha a ser içado cá para fora do poço. Eu cometi um erro técnico. Estava a transmitir um ponto topográfico da superfície para o interior e, portanto, pus um prumo, o qual estava pendurado num fio. Os poços de extração de lousa são retangulares e o fio estava longitudinalmente na boca do poço, mas eu não travei bem o fio. Às tantas, eu estava lá em baixo a puxar, o fio desprendeu-se e o calhau foi por ali abaixo e caiu-me na cabeça. Fui eu mesmo que puxei a pedra para cima de mim. A circulação era feita pelas escadas laterais, ou por um caixão, que é o nome que lhe damos, mas não é mais que uma caixa para trazer estéreis até à superfície. O capataz meteu-me no caixão (risos) e só acordei quando já vinha a ser içado para o exterior. Tinha eu na altura 31 anos. Se eu tivesse morrido, o problema maior era para a minha mulher, porque já tínhamos quatro filhos. E para a minha família, para os meus irmãos, porque teriam de ajudar, não é? E eu neste momento já estava lá ao pé de Santa Bárbara, a nossa padroeira, todo sentadinho, todo satisfeito. (risos)

"Para os engenheiros de minas, não! Para os geólogos é que… (risos) Nós aguentamos deitar-nos às três da manhã e levantar às sete horas"

16. Considera que foi um aluno médio, bom ou muito bom? Como foi o percurso pós-doutoramento?

Só bom. Na minha carreira, devo ser dos poucos catedráticos da Faculdade de Engenharia que fez as três provas, porque nós tínhamos o doutoramento e depois a agregação e depois ficávamos à espera de lugar e éramos promovidos pelo currículo. O que é que aconteceu? Quando eu me candidatei, era reitor esse meu amigo Horácio Maia e Costa. Ele telefonou-me para casa e disse-me ''Vou obrigar-te a fazer provas [de agregação] e vou dizer-te porquê. Eu também concorri sem fazer provas e estive um ano à espera de subir de categoria. Tu fazes as provas com uma perna às costas e no dia seguinte estás a receber pela nova categoria.'' Foi tudo verdade, exceto fazer as provas com uma perna às costas. Dantes, nos doutoramentos, as provas eram à maneira medieval, tínhamos três meses para preparar doze pontos e, passado esse tempo, íamos a casa do professor tirar um ponto à sorte. Dois dias depois íamos defender esse ponto. Como eram dois professores, era um ponto para cada um. Fui interrogado pelo professor Melo Mendes, do Instituto Superior Técnico, e pelo professor Farinas de Almeida. No caso do ponto do professor Melo Mendes, saiu-me um ponto sobre transportes nas minas, e no caso do professor Farinas de Almeida, saiu-me um ponto sobre máquinas de extração. No concurso para catedrático, tinha de dar uma lição. Na altura, tínhamos três caminhos: jazigos minerais, preparação de minérios ou exploração de minas. Eu escolhi a aula sobre exploração de minas.

17. No seu caso, foi muito difícil?

Não, foi médio. Em 1965 já dava aulas há sete anos, cheguei a ter 29 horas de aulas por semana, além do trabalho cá fora.

18. Mas isso é muito tempo…

Para os engenheiros de minas, não! Para os geólogos é que… (risos) Nós aguentamos deitar-nos às três da manhã e levantar às sete horas, ou qualquer coisa assim… dormir duas, três ou quatro horas. (risos)

"Naquela altura não havia intervenções voluntárias. O professor era quase um intermediário de Deus"

19. Durante esses tempos em que foi aluno de engenharia, antes do doutoramento, era participativo, ou era mais calado?

Era médio. Não gosto de sobressair.

20. Ficava a escutar a exposição dos professores…

Sim, só quando me chamavam. Naquela altura não havia intervenções voluntárias. O professor era quase um intermediário de Deus. Tive um professor em Coimbra que me chamou burro indiretamente. O professor Pacheco de Amorim, a avaliação da cadeira dele também era ao estilo medieval. Íamos a casa dele tirar o ponto e, depois, éramos interrogados. Em julho saiu-me o momento cinético. Lá em Coimbra havia um rapaz, o João Miranda, que preparava o ponto à troca de 200 escudos. Mas como eu não tinha 200 escudos, preparei o ponto por mim e apresentei-o. Mas às tantas travei lá um bocadinho e disse ''Ah, eu aqui não estou a ver bem…" e diz o professor Pacheco ''Não é só não estar a ver bem…" quase como quem dizia "Você é mas é burro, não sabe nada disto''. (risos) Depois, em outubro, a mesma coisa. Tirei um ponto muito mais difícil, as equações canónicas de Hamilton, tornei a não ter os 200 escudos para pagar ao João Miranda e fui fazer as provas. Tive 15. Com o mesmo professor. Não sei se ele ainda se lembrava do episódio anterior ou não.

21. Então e esse João Miranda fazia vida de prepara-pontos para os outros?

Sim, senhor. Era lá num café em Coimbra. Podia não ser o único rendimento que ele tinha, mas… Na altura, estamos a falar de 1954, ganhar 200 escudos por pessoa já era um bom rendimento.

22. Nessa altura envolveu-se em atividades extra ao curso?

Sim, sim. Eu no liceu fui da mocidade portuguesa, éramos todos obrigados. Mas eu dediquei-me mesmo com convicção e fui diretor do centro escolar número 4, que era do Liceu D. João III, em Coimbra, onde eu fiz os sete anos. Fui Comandante Castelo, Comandante de Bandeira e Comandante de Falange – eu comandava 720 homens. Tenho uma cena engraçada, porque eu já era caloiro, no primeiro ano de liceu [enquanto comandante], quando em 1961[-1962] houve aquela grande contestação, na ida do Américo Tomás a Coimbra. E eu lá estava com os meus 720 homens a fazer a guarda de honra. E os doutores que me conheciam de caloiro diziam "Olha, o caloiro aqui manda!". (risos) Fiz parte da JUC [Juventude Universitária Católica], aqui no Porto. Também fui do CADC (Centro Académico da Democracia Cristã, em Coimbra), onde esteve o Salazar, onde esteve o Cerejeira [Cardeal] e outros homens ilustres, portugueses, que fazem parte da História.

23. O que é que fazia? Que tipo de coisas?

Fui Vice-Presidente e Presidente da Conferência São Vicente de Paulo. E também fui da Conferência de São Vicente de Paulo da Faculdade de Engenharia aqui no Porto. Era eu e um colega e amigo, o engenheiro João Maria Oliveira Martins, que foi Ministro das Obras Públicas. 

24. Ainda se lembra de qual foi o seu primeiro trabalho pago?

O primeiro trabalho pago foi a amostragem de uma escombreira de scheelite, em Pinhel. Ainda não tinha carro, fui no comboio, e estava tanto calor na carruagem, que tinha um termómetro que marcava até 40° e tinha o ponteiro encostado. Trabalhei à volta de quarenta e tal graus. A minha mulher foi para casa do concessionário, que se chamava Alfredo Tomé, e eu fui fazer a amostragem da escombreira para ver se era explorável ou não. Foi o meu primeiro trabalho profissional.

25. Em quanto tempo é que fez esse trabalho?

Fui só lá e depois fiz o relatório.

26. E a escombreira, era explorável?

Penso que não. Eu tenho um arquivo de cerca de 670 números e esse trabalho é o número um, mas perdi-lhe o rasto. O número dois é das ardósias. Das ardósias é que tenho muito trabalho lá desde 1957.

"Ainda hoje somos amigos e telefonamos no dia dos anos, e tal. Claro que nós, a certa altura, não fazemos anos." (risos)

27. O que é que fez nesse das ardósias?

Atualmente, sou diretor técnico. Na Faculdade de Engenharia do Porto, além do Professor Farinas de Almeida, outro professor muito ilustre a quem eu devo muito foi o professor Morais Cerveira, que era o homem da preparação de minérios. Ele foi, durante três anos, de 1959 a 1962, diretor técnico da Empresa Lousas de Valongo, e depois lá se zangou com eles. Nessa altura, eu era assistente dele e ele disse que se eu ficasse lá, ficava à disposição para o que fosse preciso, se viesse outro, vinha. Eu fiquei diretor técnico da empresa em 1960, mas o que é que aconteceu? O professor Morais Cerveira, enquanto era diretor técnico, encarregou-me de fazer o levantamento geológico das faixas louseiras do complexo de Valongo. E eu trabalhei um mês no campo com um coletor dos serviços geológicos, excelente, que era o senhor José de Oliveira, um bom coletor. Íamos de manhã, levávamos o almoço e andávamos toda a tarde a definir a estrutura e a posição das camadas de interesse para exploração.

"Eu também admiro muito os professores [...] porque nós éramos pouquinhos a entrar todos os anos, então dá para criar uma proximidade, [...] são muito disponíveis e muito abertos"

28. Gostou de fazer esse trabalho?

Claro! Aprendi a fazer trabalho. Eu já tinha aprendido a fazer trabalho de campo em Coimbra, com o professor Correia Neves, que era assistente do professor [João Manuel] Cotelo Neiva [UC] e levava-nos várias vezes para o campo fazer levantamentos geológicos para o Calhabé, onde havia afloramentos do Triásico, e foi aí que eu aprendi a fazer. Depois ainda fiz mais um ou dois trabalhos com levantamentos de campo, mas agora já não faço, não tenho idade para isso, tomara eu aguentar-me em pé! (risos)

29. Na Engenharia de Minas, qual foi a disciplina de que gostou mais?

Não tive assim preferências. Mas, mais tarde, preferi a exploração de minas. Enquanto não me especializei, regi várias cadeiras, nomeadamente a preparação de minérios, mas nunca jazigos minerais. Águas minerais também, sim. Sabem, para se ser diretor clínico das unidades termais é preciso ter um curso de Hidrologia Médica que existe na Faculdade de Engenharia do Porto, na Faculdade de Ciências de Coimbra e em Lisboa. Em Coimbra, quem deu essa cadeira durante muito tempo foi o professor Cotelo Neiva e, aqui no Porto, o responsável era o professor [Alberto de] Morais Cerveira [FEUP]. Esse curso tinha seis cadeiras: uma na Faculdade de Engenharia, outra na Faculdade de Ciências e quatro na Faculdade de Medicina. No Porto, o primeiro a dar essa cadeira foi o professor [António José] Adriano Rodrigues [Eng. Minas, FEUP; Vice-Reitor e Reitor da UP], depois o professor Morais Cerveira, depois fui eu e, a seguir, o professor Abílio [Augusto Tinoco] Cavalheiro [FEUP] e por aí fora. 

30. Gostou dessa cadeira?

Sim, gostei. Entretanto, em 1958, formei-me e em 1964, um gabinete de Engenharia Civil que havia aqui no Porto, constituído pelos engenheiros civis Basílio Jorge e Cândido Guerra – que era um dos dois ou três gabinetes que apoiava os municípios nos projetos de abastecimento – tiveram um problema de hidrogeologia perto de Guimarães e convidaram-me para ir lá para o gabinete fazer isso. Trabalhei com eles até 1972.

31. Qual era o problema?

O problema era que a fábrica, que ainda existe, que faz as bombas para as bombas de gasolina. Tinha sido implantada numa cota inundável pelo Rio Ave. Então, alguém descobriu isso, eu fiz o estudo e demonstrei que a fábrica não podia ser ali. Foi esse o meu primeiro trabalho de hidrologia. Depois apareceram outros trabalhos. Em 1972, um antigo aluno meu do ano de 1961 – o engenheiro Botelho Chaves, que fez a tropa na Guiné – quando veio para Portugal, fez-se sócio na empresa Sondagens e Fundações A. Cavaco, que muitos conhecem. Na altura, as maiores empresas eram a Teixeira Duarte e a A. Cavaco. Então, esse meu antigo aluno veio ter comigo, porque a empresa começou a ter alguns clientes aqui no Porto, perguntou-me se eu ainda tinha algum tempo para colaborar com ele e eu disse "Claro que tenho tempo! O meu dia tem 25 horas, se for preciso! Não tem problema". Então, a partir daí, em 1972, saí do Basílio Jorge e fiquei a colaborar com a A. Cavaco, até eles acabarem como empresa.

32. Então cruzou-se com o professor Martins Carvalho?

Conhecem? O professor Martins Carvalho trabalhou em Moçambique para a A. Cavaco. Quando ele veio para Portugal eu já estava a trabalhar na empresa, foi aí que nos conhecemos e ficámos amigos para toda a vida. Somos amigos(*1). Fizemos muitos trabalhos juntos, por exemplo, as captações de Caldelas. Ainda hoje somos amigos e telefonamos no dia dos anos, e tal. Claro que nós, a certa altura, não fazemos anos. (risos)

(*1) – Entrevista gravada antes do falecimento do prof. José Martins Carvalho (12/12/1943 – 31/01/2023)

"(...) tirei os assentos do carro – só ficou o meu – e fiz uma cama. Ia a minha mulher, dois filhos e o terceiro filho na barriga da minha mulher, e fomos por aí fora até França"

33. Se pudesse ter aqui um quadro de um engenheiro de minas, quem seria?

O professor Farinas de Almeida e o professor Morais Cerveira. Foram as minhas referências. Agora, há outros engenheiros de minas que eu considerei muito, por exemplo, o professor Melo Mendes. Eu fiz o primeiro estágio nas minas da Panasqueira no verão de 1954 – foi a primeira vez que entrei numa mina – e o Professor Melo Mendes, na altura, era jogador de hóquei em patins do clube das Minas da Panasqueira. Mais tarde, ele fez uns artigos, porque nós para nos doutorarmos convinha termos uns artigos, davam um certo currículo, e ele candidatou-se a professor do [Instituto Superior] Técnico com um livro excelente, que é o "Comportamento Mecânico de Rochas Xistosas". E o Professor Melo Mendes foi meu arguente em todas as provas que eu fiz. Portanto, também é uma referência. Outra pessoa com quem não tive grandes relações, mas que considerava muito, era o professor Quintino Rogado. Era um indivíduo extremamente inteligente. Na última aula dele, conseguiu dar a lição toda sem falar uma única vez nele próprio. Extraordinário, extraordinário!

34. Em tudo o que fez profissionalmente, qual é que foi o exercício que mais prazer lhe deu?

Eu gosto de trabalhar em qualquer coisa. Se calhar, foram as viagens ao estrangeiro para preparar para o doutoramento. Antes do doutoramento estive em Espanha, em França, em Inglaterra e na Alemanha, para ter um bocado de experiência. Fui de carro, no meu Fiat 600 D, que é o melhor carro de sempre!

35. E fez essa viagem sozinho?

Fui sozinho para Espanha, mas para França, para levar a minha família toda, tirei os assentos do carro – só ficou o meu – e fiz uma cama. Ia a minha mulher, dois filhos e o terceiro filho na barriga da minha mulher, e fomos por aí fora até França.

36. Em França, foi até onde?

Estive no CERCHAR - Centre d'Etudes et Recherches des Charbonnages de France [atualmente INERIS - Institut National de l'Environnement Industriel et des Risques], estive no Commissariat à l'énergie atomique [atualmente Commissariat à l'Énergie Atomique et aux Énergies Alternatives], isto, as instituições em Paris. Depois fui visitar as louseiras. Estive no Forez, na mina de Urânio [denominação de antiga província de França que corresponde aproximadamente à parte central do departamento de Loire e uma parte do departamento de Haute-Loire, onde havia uma divisão de mineração com o mesmo nome, inaugurada em 1960 e encerrada em 1981, após o esgotamento do depósito]. Estive numa mina de carvão, estive numa mina de ferro, onde vi pela primeira vez aqueles transportes grandes a entrar na mina. Estive na Bretanha, numa aluvião de cassiterite… tenho umas histórias destas.

37. Foi o José que preparou esse percurso?

Fui eu que preparei. Antes disso estive em Espanha, nas minas de ferro do norte. E, como a minha tese foi sobre métodos de exploração por desabamento, pedi aos meus colegas se me mostravam o desabamento. Não souberam o que era desabamento, foram ao dicionário ver, porque em espanhol desabamento é "hundimiento". Então lá fui a uma mina de ferro que era explorado pelo método de desabamento. Pronto, tenho algumas fotografias disso.

38. Mas para os franceses, escreveu antes cartas a dizer que gostaria de ir visitar?

Sim, sim. Claro! Encontrei sempre bons colegas por onde passei. Curiosamente, no CERCHAR estava um rapaz de Lisboa a fazer estágio. Na altura, estava a estudar os métodos estocásticos que estavam a ser desenvolvidos pelo professor Georges Matheron [matemático e engenheiro civil e de minas francês, fundador da Geoestatística].

39. E qual foi a coisa que menos gostou de fazer?

Na profissão, corrigir pontos é aborrecido por causa da relatividade. Se é um ponto de matemática, é 20 ou 19 ou 18, portanto, aquilo é assim e acabou. Mas, por exemplo, corrigir um ponto de exploração de minas? Ou um ponto de preparação de minérios? Não é fácil, não é fácil!

40. Durante as suas funções, chegou a tratar com algumas pessoas de notoriedade, presidentes de câmara, institutos?

Sim.

41. Correram-lhe bem ou tinha um bocadinho de ansiedade?

Não. Eu sou beirão. Os beirões não têm medo de nada. Desde que sejamos educados e corretos, falamos com qualquer pessoa. Eu tenho a minha biografia parada, para ajeitar, está aí já com um volume grande, porque tenho realmente histórias engraçadas na vida corrente. Por exemplo, numa visita a uma mina em França, nós descemos por uma chaminé e à frente ia o capataz geral. Ele desceu suavemente pendurado numa corda, da boca da chaminé até ao chão ainda iam uns 5 ou 6 metros, e a seguir desci eu. Mas eu era pesado, era gordo. Na altura, estava mais gordo que agora, e pumba, estatelei-me cá me baixo. E diz ele "En vitesse". (risos) Também visitei uma coisa interessante. Agora, como sabem, há um bocadinho a ideia de musealizar as minas, o que é uma excelente ideia. E eu visitei as minas de Bochum, na Alemanha, que já estavam musealizadas até ao primeiro piso e podiam ser visitadas e tal. Agora, as minas da Recheira, ali perto do Fundão, perto da Argemela, também estão musealizadas. E outras minas que estão a musealizar-se são aqui as minas de cassiterite, em Amarante, já estão a limpá-las. Aliás, eu forneci os elementos todos que tinha da Alemanha e de França da musealização, porque sou diretor técnico das termas e eles pediram-me isso. É uma atração turística, como os passeios ribeirinhos. Mas bem, em Bochum tinham o museu mineiro e era visitável. Metíamo-nos na jaula e íamos até lá abaixo. Era giro! Era um reaproveitamento das infraestruturas. 

"Não. Eu sou beirão. Os beirões não têm medo de nada."

42. Dentro das publicações de Engenharia de Minas, os livros que terá consultado, os artigos, etc., há assim algum especial que consulte mais vezes?

Há um, não é que eu consulte muito, mas é uma referência, que é a "Pressão dos terrenos em lavra de minas", do professor Farinas de Almeida, que citei há bocadinho. Há um outro livro que é de referência, ainda que eu não o consulte muito, que se chama "Arte Mineraria" de [Luigi] Gerbella, italiano. Há depois um livro, que é fundamental em exploração de minas, que é o "Cours d'Exploitation des Mines", de [Julien Napoléon Haton de] la Goulpillière. E há muitos outros…

43. Além da Engenharia de Minas, as minas e da hidrogeologia, tem algum hobby?

Leitura. Eu sou filho de um comerciante e ele deixava-me na loja e ia fazer os afazeres dele. Eu comecei a trabalhar aos seis anos de idade e aí já distribuía jornais. Às tantas, apareciam-lhe os clientes e diziam ''Oh senhor Ramirinho, queria um quilo de açúcar''. Ele dizia ''Está lá o José António!" e as pessoas ripostavam "Mas ele não nos ouve…". Ele vinha por ali fora e chapava-me com o jornal na cara, que eu estava a ler o jornal e não ouvia ninguém. Bastante mais tarde, já em 1970 e tal, fui a Lisboa tratar um assunto na A. Cavaco. Estacionei o meu carro em pleno Chiado, em cima de uma passadeira, em frente a uma livraria e fui comprar uma revista. Encostei-me na parede a ler a revista e a minha intenção era estar a ler e a olhar para o carro. Quando levantei os olhos, não estava lá o carro. Um senhor estava ali ao largo e perguntou " Aquele carro era seu?", eu respondi afirmativamente e ele "Então, esteve ali que tempos, veio a polícia e levou-o!". Ainda agora, perco-me a ler.

44. Gosta de ler sobre atualidade, jornais, revistas?

Sim! E romances. Acabei de ler um livro muito giro do Tim Marshall sobre o poder da geografia. Em que medida é que a geografia determina a vida dos povos do Irão, da Turquia, da Rússia, da Espanha… engraçado, muito engraçado. Eu tenho uma médica que é a médica ideal para mim, porque receita-me remédios e receita-me livros. Também é uma senhora que se perde na leitura e a última vez que lá fui, além dos medicamentos, receitou-me um livro sobre uma história que se passa nas minas de carvão do País de Gales, onde eu estive. Eu estive no País de Gales, não nas minas de carvão, mas nas ardósias. Desde 1960 que trabalho com as ardósias, de modo que estive lá e estive nos caulinos da Cornualha. Também trabalhos em caulinos desde 1980.

45. Qual é o momento que considera ser o mais marcante da sua carreira?

Mais marcante foi o acidente que tive nas ardósias de Valongo. O doutoramento também foi importante. A passagem de engenharia civil para engenharia de minas, nitidamente. Não estou arrependido. Nada, nada. Estou perfeitamente à vontade em Engenharia de Minas. Nunca fui diretor técnico de minas subterrâneas. Conheço muitas, mas a minha vida foi quase tudo a céu aberto. A exploração subterrânea de ardósias era feita por poços ao lado uns dos outros, ao longo da faixa, com a maior dimensão do poço perpendicular à faixa. O mais profundo que fomos com a exploração foram 131 metros, no Galinheiro, em Valongo. Tínhamos de deixar maciços, com uma espessura mínima dos pilares no fundo de cinco metros, depois os poços desenvolviam-se num perfil em "V" para cima, o que significava que ficava lá metade do material de interesse para a exploração. Depois de explorados os poços todos até ao fundo, fizemos uma inovação: enchemos os poços e começámos a explorar os pilares a céu aberto, beneficiando da capacidade de trabalhos das máquinas potentes que apareceram nas décadas de 50 e 60. 


Intraclasto

O Carlos Teixeira e o Cabril do Ceira

Transcrevemos uma das muitas memórias do José, aproveitando o lançamento de uma coleção de marcadores de livros que recuperam frases geodivertidas dos nossos entrevistados.

"Já agora, talvez não saibam que o Carlos Teixeira dizia que, para ser bom geólogo, tinha de se ter: boas pernas, bom estômago e mau feitio. Ora bem, o que é que nós, engenheiros de minas, dizíamos: ele é a expressão disso tudo! (risos) O professor Carlos Teixeira não conhecia o Cabril do Ceira [Serpins e Góis] e, como eu já era conhecido do professor Montenegro de Andrade, fui aluno dele em Coimbra, levei-os lá no meu carro. E sabe porque é que aquele túnel está inacabado? Era a linha de caminho de ferro que ia de Coimbra à Covilhã. E quando passou por Serpins, o meu pai, que era comerciante, fez uma grande festa, por o comboio ter chegado a Serpins! Simplesmente, chegou ali e aquilo parou, porque acabou-se a verba, e o túnel era feito com brocas de aço normal, ainda não havia as brocas de tungsténio e não conseguiram atravessar o "Silúrico" [quartzito armoricano, Ordovícico, anteriormente incluído no Silúrico]. Ficou ali, no Cabril. Aquilo é uma paisagem espetacular!"


Geomanias

Rocha preferida? Ardósia

Mineral preferido? Ouro

Fóssil preferido? O Didymograptus [graptólito], que aparece lá nas ardósias

Unidade litostratigráfica preferida? Formação Valongo

Era, Período, Época ou Idade preferido? O Silúrico ou o Ordovícico. É o que eu conheço melhor em termos de levantamento de campo, o Ordovícico

O Ordovícico está no seu coração? Não, no meu coração só está a minha mulher, mais ninguém. E os meus filhos e os meus pais e os meus irmãos

Trabalho de campo ou de gabinete? Olhe tanto faz. Eu gosto do trabalho de gabinete e gosto do trabalho de campo. No trabalho de campo gosto muito, depois da reunião de trabalho, da hora do almoço

Martelo ou microscópio? Martelo e picareta

Pedra Mole ou pedra dura? Dura



Amostra de mão ou lâmina delgada? Amostra de mão 

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Não metálicos, porque embora tenha feito estágio na [mina da] Panasqueira, São Pedro da Cova e depois em Valongo, de facto trabalho nos não metálicos. Praticamente só estive numa mina subterrânea, na Recheira

Lusitânica ou Lusitaniana? Lusitaniana


Teaser da Entrevista