Nuno Pimentel

Agosto 2025







SEDIMENTAR/COMUNICAÇÃO DE CIÊNCIA

SÓCIO APG Nº O1314

Nascido e criado em Lisboa, foi o contacto com a natureza e as férias nas praias das Maçãs e da Ursa que despertaram o seu fascínio pelo chão que pisamos. Docente na FCUL e Coordenador Científico do Geoparque Oeste, foca a sua investigação na sedimentologia e na evolução de bacias sedimentares e traduz o que descobre para o público geral.

"(...) sempre me senti bem. Porque gosto muito de dar aulas, porque gosto muito de ir para o campo e investigar. Nunca fui muito, por feitio, de me envolver nas dificuldades do mundo académico, para usar uma expressão muito suave. (risos) E, portanto, sempre passei um pouco ao lado disso, o que, claro, tem as suas vantagens e desvantagens – foi uma opção pessoal. E, portanto, sempre vivi tranquilamente a minha carreira académica"

Julho, as Berlengas ao fundo e aquele vento perpétuo da costa oeste portuguesa: iniciávamos assim a tour das entrevistas da edição de 2025 com o Nuno Pimentel. Nascido e criado em Lisboa, é o bloco errático que cedo trocou os genes artísticos herdados da família por grãos de areia. Em vez de afinar pianos, preferiu alinhar estratos. Professor no Departamento de Geologia (ainda lhe podemos chamar assim?) da Universidade de Lisboa, sedimentólogo desde o berço académico, nunca quis ser chefe e, se for para coordenar, que sejam ideias. Foge dos meandros mais sinuosos da vida académica como a olivina da sílica e desaparece um mês por ano para ir ver mundo. Hoje é o coordenador científico do Geoparque Oeste, onde pode fazer o que mais prazer lhe dá, espalhar "a boa nova" de um território geológico em "Pimentelês", dobrando a linguagem geológica para os diferentes públicos. Venha conhecer este geólogo que aprendeu a não se levar demasiado a sério — até porque a Terra, essa senhora centenária, tem um gosto irónico por nos mostrar que tudo é efémero, menos a sua indiferença. Por mais Nunos.


Entrevista 

Praia da Consolação, Peniche, julho de 2024


1. Nome, local e data de nascimento.

Nuno Lamas de Almeida Pimental, nascido a 20 de agosto de 63, em Lisboa.

2. Conte-nos, de forma simples, para leigos, o que é que faz profissionalmente?

Eu sou professor universitário. Isso passa, desde logo, por dar aulas, obviamente, é isso que eu tenho na minha agenda, incontornável. Mas claro que, além de dar aulas, também me dedico a toda a parte de investigação que fui desenvolvendo desde o início da minha carreira académica, a qual me levou ao mestrado e doutoramento, e depois disso a projetos e por aí adiante. É claro que, além disso, porque sendo docente universitário vou sendo solicitado e convidado para outras coisas um pouco ao lado, vou fazendo palestras, colaborações, visitas, montagem de exposições, etc. Portanto, é óbvio que faço muita coisa além do que é taxativo, que é dar aulas das quatro às seis e meia, à turma três, etc, e investigar, o que resulta depois em publicações. Mas o meu dia a dia acaba por ter muitas solicitações de várias coisas e é bastante ocupado. Mesmo quando penso "As aulas já acabaram, agora estou de férias", nem pensar! Tenho trabalho até conseguir ir mesmo de férias.

3. E qual a área de investigação?

A minha área de investigação começou por ser a sedimentologia, pura e dura, a sedimentologia clássica, da escola francesa, de areias, grãos, granulometrias, mas depois, ao ir para o campo, ver as formações, geometrias, evoluí um bocado para compreender como é que são os ambientes deposicionais e como passamos às bacias sedimentares no seu contexto e na sua dimensão quilométrica. E, às tantas, como é que a geodinâmica e a tectónica influenciam a formação das bacias. Portanto, é este o meu caminho, parti da sedimentologia clássica e fui para a análise de bacias.

4. Onde e em que ano ingressou no curso de Geologia?

Eu entrei em Geologia em Lisboa, sou natural de Lisboa, a minha família toda é de Lisboa, e entrei em 1981. Entrei nesse ano, tinha na altura 18 anos. Portanto, acabei o 12º ano, nessa altura começou a funcionar como tal [o 12º ano substituiu o Ano Propedêutico], e fiz o curso que, na altura, era de cinco anos, portanto de '81 até '86.

5. O que a levou a seguir Geologia?

A Geologia foi a minha primeira opção, quando concorri a um curso superior. Aquilo que me levou para a Geologia foi um bocado isto, (esbraceja para indicar toda a envolvente) o meu contacto, de miúdo, de infância, com rochas, paisagens, camadas. Eu passava férias na Praia das Maçãs [Sintra] e sempre vivi rodeado disto, destas rochas, poças, fósseis. Depois, já mais em adolescente, eram os acampamentos na Praia da Ursa [Sintra]. Portanto, sempre gostei, mas não fazia ideia, obviamente, de que isso era um curso ou uma profissão. Depois, no 12º ano, que nesse ano de '80 funcionou pela primeira vez como tal, antes era o ano propedêutico, nas disciplinas que se podia escolher apareceu-me lá a disciplina 'Geologia', com esse nome. E fui ver exatamente o que é que aquilo era, para o que é que aquilo dava, e percebi que aquilo existia, que era uma área científica e que podia ser uma profissão. Escolhi as disciplinas e tive no 12º ano matemática, química e Geologia. E essa Geologia foi fantástica, porque apanhei uma professora excelente, para a altura muito moderna, em termos de método de funcionar e de transmitir as coisas. Era a professora Dagoberta, é um nome fácil de lembrar, que depois fui reencontrar na Universidade Aberta, passados uns anos, e que na altura fazia trabalhos de grupo, pesquisa, ia a bibliotecas ler coisas e fazia relatórios e apresentações. Portanto, isso, esse modo de estar, e a Geologia e todas aquelas teorias, a tectónica de placas já estava nos livros, como o "Understanding Earth" [John Grotzinger & Thomas H. Jordan]. Portanto, eu disse, "Ok, é isto que eu quero seguir" e candidatei-me a Geologia.

"(...) apareceu-me lá a disciplina 'Geologia' – com esse nome. E fui ver exatamente o que é que aquilo era, para o que é que aquilo dava, e percebi que aquilo existia, que era uma área científica e que podia ser uma profissão"

6. E na família, há mais alguém ligado à Geologia ou às ciências da Terra?

Não, de todo. A minha família toda, em termos de pais, mães, e por aí acima, é tudo ligado a música, artes, arquitetura. Eu sou o mais novo de seis irmãos, todos têm profissões nessa área, e eu saí uma carta fora do baralho, o cientista da família. Sendo o mais novo, os outros já tinham todos encarreirado por outras coisas. Eu, desde miúdo, sabia que ia ser qualquer coisa de ciências, ao contrários dos outros, mas é a tal coisa, só muito tarde, com 15 ou 16 anos, é que descobri que a Geologia era uma ciência que me podia levar para esse mundo que eu já apreciava em termos de natureza.

7. Mas a Geologia é uma arte, também!

Eu tento, é claro que eu tento usar o que é a minha apetência natural por coisas mais de natureza, de arte, mais culturais, fazer um bocado essa ponte. Porque cada um transporta para a profissão que tem – seja geólogo, médico, o que for –, um pouco daquilo que é. E ao longo da minha vida, e agora mais recentemente com a minha chegada ao Geoparque [Oeste] e o ter de falar com outras pessoas e escolas, miúdos e graúdos, e mostrar a leigos o que é uma camada, um vulcão, uma rocha, tento usar algumas analogias e algumas abordagens que não são estritamente da minha formação científica, em Geologia. Além de que, a Geologia tem essa arte de ligar coisas e de relacionar coisas de uma maneira que não é taxativa.

8. A arte da abstração…

Sim. O geólogo vê uma coisa aqui, um mineral ali, uma rocha além e outra acolá, imagina, faz um grande puzzle mental na sua cabeça e, para isso, tem de ser criativo e tem de ter, diria eu, jogo de cintura, intelectual e, se calhar, também cultural, para ligar coisas e conseguir movimentar-se nesse mundo de peças soltas e tentar fazer disso algo coerente e com sentido.

9. E só por curiosidade, sendo o último de seis filhos e único que não vai para artes, como é que a família reagiu à ida para Geologia?

A minha família, na realidade, sempre nos deu a total liberdade para sermos o que quiséssemos ser. E a minha mãe sempre dizia que o principal orgulho dela não era ter seis filhos, era que são todos diferentes e que cada um faz aquilo que quer. E, portanto, eu podia ser geólogo, ou bailarino, ou gestor, tanto fazia, era indiferente. Isso nunca foi motivo de "Vê lá, pensa bem, mas achas que? E depois?". Era assim. Também era um tempo em que era mais fácil as pessoas seguirem o seu caminho e não havia tanta tensão de emprego, salário, bolsas, essas coisas. 

"Eu, que tomava sempre apontamentos de tudo, chegava sempre ao fim das aulas do professor Galopim e não tinha escrito nada, mas tinha aprendido imenso! Porque ele ia divagando, ligando, juntando, portanto, umas aulas quase existenciais."

10. Mas é um pouco a família von Trapp… (risos)

Não, ainda que, vamos lá ver, todos aprendemos música, todos sabemos tocar, sim. Mas não, não tenho pretensões artísticas, de todo. Tento, sei tocar, porque aprendi, mas isso não é um dom, é uma aprendizagem. Sim, andei no conservatório, solfejo, piano, sim, sei tocar, mas isso não me dá nenhum dom artístico. Tal como gosto muito de fotografar, e tento fotografar coisas de paisagem, natureza, rochas – gosto muito de fotografar rochas –, mas, lá está, não de um ponto de vista científico, mas de um ponto de vista mais artístico. Imaginem: se eu tirar uma fotografia disto sem escala, isso torna-se um objeto abstrato e eu posso por na parede com três por cinco metros. E eu tenho coisas dessas no meu gabinete, em minha casa, gosto de fotografia estética de rochas. É uma ponte entre as duas coisas!

11. E também andou na escola alemã... porquê?

Tradição familiar. A minha bisavó era alemã, as minhas avós falavam alemão em casa. O meu pai e o meu tio andaram na escola alemã. Nós todos andámos na escola alemã. Tradição familiar, apenas.

12. Foi útil?

Eu diria que foi útil de duas maneiras: primeiro, tive uma escolaridade primária alemã – não é por ser em alemão, mas por ter sido alemã. Isto é, no antigamente, no Estado Novo, tinha uma escola primária alemã de manhã, moderna, aberta, e à tarde uma primária clássica, com as linhas de caminhos-de-ferro e os hectolitros. Portanto, tive uma educação escolar mais aberta do que se estivesse só na escola portuguesa. Principalmente, isso abriu-me a cabeça em termos de formação inicial. Depois, o ter outra língua em termos intelectuais é sempre interessante, porque as línguas refletem sempre muito a maneira de pensar ou o pensamento. A língua deles, aquela coisa de juntar duas, três palavras e a partir disso fazer uma terceira, é muito interessante e faz-te dar muita atenção ao significado e à etimologia das palavras. Eles pegam em duas palavras, por exemplo, 'fazer muito' é uma palavra, e 'fazer pouco' é outra palavra e 'fazer alguma coisa' é uma terceira palavra. Eles fazem isso com substantivos, 'casa amarela' é uma coisa, 'tempo de espera' é uma palavra, 'tempo de ida' é uma coisa, 'tempo de volta' é outra, são palavras únicas e isso dá-te uma maneira de pensar e transmitir que é muito interessante. Gostei muito disso. Não por saber alemão. Eu alemão tenho dificuldade em falar, mas percebo. Já fui para o campo com alemães e percebo o que dizem, mas intervenho em inglês. 

"O geólogo vê uma coisa aqui, um mineral ali, uma rocha além e outra acolá, imagina, faz um grande puzzle mental na sua cabeça e, para isso, tem de ser criativo e tem de ter, diria eu, jogo de cintura, intelectual e, se calhar, também cultural, para ligar coisas e conseguir movimentar-se nesse mundo de peças soltas e tentar fazer disso algo coerente e com sentido."

13. Nos tempos em que foi estudante universitário, foi um aluno médio, bom ou muito bom?

Era, devo confessar, um aluno muito bom, porque vinha muito bem preparado de trás. Porque era também muito metódico, muito organizado, muito estudioso. Quando estou a dizer estudioso não é no sentido marrão, de não pensar em mais nada, mas quando era época de exames fechava-me, enclausurava-me religiosamente – quase! – em casa, marcava os exames de cinco em cinco dias, dividia a matéria que tinha para estudar, estudava das nove da manhã às seis da tarde e depois ia sair com os amigos, namorar, ou fazer não sei o quê. No dia seguinte repetia, como se fosse um trabalho. Agora, durante o semestre, na faculdade, as pessoas mal me conheciam. Eu ia lá às aulas, ia religiosamente a todas as aulas também, às oito da manhã, matemática, a uma hora de autocarro. Chegava lá e não percebia nada daquilo, mas estava lá, para ter os cadernos e os apontamentos. Ia às aulas todas, mas depois desaparecia. Ia à minha vida, porque tinha muita vida associativa fora da faculdade. Portanto, a coisa de "Usei o tempo de estudante para grandes patuscadas ou grandes coisas associativas, da associação de estudantes", não, de todo. Por um lado, porque estávamos num edifício que era provisório, que era de escritórios, na Avenida 24 de Julho. Por outro lado, porque eu tinha muitas coisas fora, pertencia a um grupo de movimento católico de estudantes que tinha reuniões duas vezes por semana, acampamentos e plenários e eventos e direções e eleições. 

Saída de Campo com a professora Suzanne Daveau, em Vila Velha de Ródão, com geólogos e geomorfólogos (1998) [N. Pimentel em segundo, a contar da esquerda].

14. E como é que se meteu nisso?

Como tudo aquilo em que nos metemos na adolescência, por boas ou más influências, neste caso, boas. Amigos de liceu, que estavam nisso, nessa altura – estamos a falar de anos '80 – havia uma faixa, digamos, de católicos esquerdistas, na qual eu me inseria. E, portanto, eram uns católicos um bocado sui generis, um bocadinho hippies, para a altura, de acampamentos, lareiras, discussões, mudar o mundo, empenhamento social, essas coisas todas. (risos) Mas foi por amizades, por amigos comuns. E isso marcou imenso a minha adolescência. Portanto, o que marcou os meus 18-20 anos foi isso, não foi tanto a faculdade. Sim, eu era muito reservado, muito tímido, calado, low-profile. Depois, ao longo do curso, comecei a aproximar-me mais de alguns colegas, ou eles de mim, se calhar, como o Jorge Relvas, o Pedro Terrinha, foram meus colegas de carteira, de trabalhos de grupos, de ir a casa deles fazer relatórios, etc. Portanto, aos poucos fui-me integrando na vida académica, mas com alguns colegas, não com a faculdade em si, com o ambiente estudantil.

15. O 5º ano, estágio, já o fez em sedimentologia?

Sim. Na altura havia, como agora, uma lista de estágios para as pessoas escolherem. E eu escolhi o estágio 'Estudo dos terraços quaternários do Rio Sado', no Alentejo, com a professora Teresa Azevedo e, então, fui para o campo com ela. Eu não fazia ideia do que era um terraço quaternário, o Rio Sado, o Alentejo, fui para lá completamente às escuras e gostei muito daquele estágio, correu muito bem, fiz um bom relatório. E, na sequência disso, a professora Teresa Azevedo, naturalmente com o beneplácito do professor Galopim, que era a figura dessa área, convidaram-me a ficar como Assistente Estagiário na faculdade. Na altura era assim! Ou seja, eu, um miúdo com 23-24 anos, de repente acabo o curso e no ano seguinte estou a dar aulas a miúdos que têm quase a minha idade, ou aqueles que eu vi entrar no primeiro ou segundo ano. O Francisco Fatela foi meu aluno, tem pouca diferença de anos de mim. Era uma altura em que as universidades estavam a crescer muito, estavam a passar de, em Geologia, 10-15 alunos para 40-50, estava tudo a crescer! Precisavam de mão de obra docente, e, como tal, em cada ano os um, dois, três melhores alunos ficavam ali para criar um corpo docente com dezenas de pessoas.

16. Foi então a partir daí que passou a trabalhar mais com a Teresa?

Foi. Quer dizer, é claro que eu já antes gostava muito dessa área. Desde o segundo ano, desde a sedimentologia, com o professor Galopim, em que ele ligava muito – na tradição francesa – a sedimentologia à geomorfologia, à evolução da paisagem, às montanhas, à erosão, à sedimentação, à bacia. Portanto, aquilo era muito abrangente e eram coisas que eu percebia, que eu via, porque eu via o que era um rio, o que é uma montanha, o que é um grão, o que é um conglomerado. E a maneira do professor Galopim dar aulas era muito agradável. Eu, que tomava sempre apontamentos de tudo, chegava sempre ao fim das aulas do professor Galopim e não tinha escrito nada, mas tinha aprendido imenso! Porque ele ia divagando, ligando, juntando, portanto, umas aulas quase existenciais. Falava de tudo, mas sem dar a matéria, o bê-á-bá, sem ser muito sistemático. Claro que depois eu, nos tais cinco ou seis dias de estudo, ia aos livros, ia às bíblias, ao [F.J.] Pettijohn [Sedimentary Rocks], estudar a sedimentologia e o que é um calcário, um conglomerado, e essas coisas. Depois tive, também com a professora Teresa Azevedo, sedimentologia complementar, geomorfologia, portanto, sempre estive nesse caminho e foi por isso que escolhi esse estágio. Depois fiz o mestrado e o doutoramento. Foi uma sequência natural.

Saída de Campo com a professora Teresa Azevêdo, no primeiro ano de Nuno Pimentel [fila de cima, quarto a contar da esquerda] como Assistente Estágiário (1989).

17. Portanto, Assistente Estagiário foi o seu primeiro trabalho, certo?

É isso, o primeiro trabalho eu não tive de o procurar, foi quase desafiarem-me para isso. É claro que eu fiquei entusiasmadíssimo, mas, lá está, na altura, quando estava a fazer o estágio, a acabar o 5º ano, eu não pensava minimamente "O que é que eu vou fazer para o ano?". Não pensava nem ambicionava, nem desejava particularmente, "Ah, para o ano, se me convidarem, fico aqui" ou "Não, quero ir para ali". Não, estava a fazer o que fazia, estava a fazer o estágio, e no fim do estágio a professora Teresa Azevedo falou-me nisto e eu disse "Sim, acho uma ótima ideia, com todo o gosto!" Não tive sequer oportunidade de me angustiar. A vida resolveu-se sozinha, que é o ideal.

18. Depois de ter começado esta vida académica, alguma vez teve um momento de "Gostava de fazer outra coisa"?

Não, sempre me senti bem a fazer o que fazia, ou seja, na carreira académica sempre me senti bem. Porque gosto muito de dar aulas, porque gosto muito de ir para o campo e investigar. Nunca fui muito, por feitio, de me envolver nas dificuldades do mundo académico, para usar uma expressão muito suave. (risos) E, portanto, sempre passei um pouco ao lado disso, o que, claro, tem as suas vantagens e desvantagens – foi uma opção pessoal. E, portanto, sempre vivi tranquilamente a minha carreira académica, mestrado, doutoramento, depois a um certo momento, "Ok, vamos fazer a agregação". Nunca tive dúvidas existenciais de "Estou farto, quero me ir embora, já chega disto".

19. Mas começou a entrar no mundo dos "petróleos". Em algum momento pensou "Se calhar podia ter ido para a indústria"?

Não, nunca achei que poderia ter ido para a indústria, trabalhar numa empresa de petróleos, porque não tenho esse feitio muito empreendedor, de mergulhar de cabeça numa coisa, de resolver problemas que surgem a cada hora, de dirigir e coordenar equipas. E na indústria tem se muito que, por um lado, obviamente corresponder a uma hierarquia – mas com isso eu posso bem, quem manda, manda, e eu correspondo na medida do possível, não vem daí grande mal ao mundo –, mais dificuldade em mandar, em obrigar, em ralhar, condenar, isso é-me difícil. E, portanto, via-me com dificuldade a trabalhar no mundo empresarial, embora tenha gostado imenso desse meu contacto científico e técnico. Aprendi imenso, gostei imenso, mas sempre deste lado de cá, nunca me apeteceu dar o salto.

20. Mas agora com o Geoparque Oeste tem de puxar orelhas, andar atrás de pessoal, não? (risos)

Não, não. (risos) Porque eu sou coordenador científico e há um coordenador executivo.

"(...) eu gosto mais de comunicar com aquilo que eu sou do que com aquilo que eu sei."

21. Então continua a estar do lado…

Continuo a estar do lado mais agradável para mim. Mas isto é para mim, há outras pessoas que têm perfil de capacidade, competência e de gosto em coordenar, definir metas, planos, objetivos, prazos, e são ótimos nisso e ainda bem que há pessoas que fazem isso. É como em tudo, ainda bem que há pessoas que fazem uma coisa, porque assim eu não tenho de fazer essas e posso fazer outras. Elas gostam daquilo e eu gosto disto. Portanto, no geoparque, como coordenador científico a minha tarefa é, principalmente, opinar, dar opiniões, dar conselhos, dar ideias para fazer isto, para seguir este caminho, para apostar mais nesta ou naquela coisa, de dizer "Ok, os geossítios, cientificamente este é fantástico, mas não serve para muito, serve para mim e para ti, mas e as pessoas que cá vêm não vão perceber nada, portanto, fica na lista, mas não vamos usar. Aquele ali se calhar cientificamente não é extraordinário, mas tem alguns graus de atração para miúdos da escola ou para público em geral. Ou seja, em termos de comunicação de ciência funciona, vamos trabalhar este, vamos dar-lhe conteúdo científico, que já existe, feito por outros colegas ou temos de o trabalhar e montar à volta daquilo um conceito, uma ideia, uma mensagem, uma comunicação, que possa vir a tornar-se uma experiência de quem lá vai". E, portanto, neste momento é isto que me entusiasma, mesmo como coordenador científico não é tanto o aspeto científico, esse eu já o trazia como lastro, da minha carreira académica e do meu trabalho científico nesta região, na Bacia Lusitânica, inicialmente com o foco na indústria petrolífera, mas o que eu fazia era ciência que era passada à indústria petrolífera. Agora uso esta ciência para passar e para, em cima dela, construir outras coisas, que é esta comunicação de ciência, esta divulgação, de uma região, de um território, de uma bacia, e da Geologia também.

22. Mas isto, de certa forma, fez com que neste momento haja mais foco em si.

Sinceramente não vejo como destaque, é uma função, é uma tarefa, à medida que uma pessoa vai avançando, vai estando mais à vontade a fazer certas coisas. É um trabalho que eu gosto imenso porque me põe em contacto com várias realidades, porque me permite comunicar de uma maneira muito pessoal, e eu gosto mais de comunicar com aquilo que eu sou do que com aquilo que eu sei. É óbvio que tenho de saber coisas, mas gosto muito desse lado, e quando eu digo era uma pessoa calada e reservada, era em termos académicos, de estudo, de ciência, mas socialmente e em termos de, sei lá, nesse grupo de católicos onde estava, eu era um orador quando era necessário e era pertinente. Portanto, sempre gostei da parte de comunicação e de interação, e isso tem a ver com o meu feitio, nunca seria uma pessoa de me fechar num gabinete, a ser coordenador científico, a fazer listagens e pareceres, e a convidar este para fazer aquilo e mandar aquele. Portanto, sou um coordenador científico que quer interagir, comunicar, espalhar a boa nova, neste caso é de um território geológico, isto é fantástico, espalhar a boa nova, entre aspas, a outras pessoas, a outro público.

23. O Geoparque Oeste ainda é recente, é jovem, como é que acha que está a correr?

Está a correr muito bem. Fui convidado em 2019. Depois, em 2020, veio o COVID, que foi o que foi. A equipa contratada, de três ou quatro, entrou no dia 18 de março e no dia 20 foi tudo para casa, uma coisa desse género, portanto, na mouche, perfeito. Mas isso deu-nos tempo de trabalhar, organizar, antes de sairmos cá para fora. Apresentámos a candidatura em 2023, foi aprovada em 2024, oficialmente. Foi rápido, comparando com outros geoparques foi rápido, foi sem espinhas, graças a ter, tem de se dizer, um coordenador executivo [Miguel Reis Silva] muito eficaz, principalmente em termos externos. Porque isto lida muito com autarquias, e ele, vindo do mundo autárquico, teve essa capacidade de cozinhar bem com todos os passos que iam sendo dados, e em estreita ligação comigo, como coordenador científico, e com a equipa. Ele a partir pedra do lado funcional e administrativo e eu a partir pedra do lado de o que se faz, como é que se faz e onde é que se faz. Portanto, correu muito bem, foi aprovado por unanimidade, foi reconhecido. Nós tínhamos proposto alguns geossítios de carácter internacional e eles disseram, "Não, vocês têm mais ainda do que aqueles que vocês listaram", portanto, temos imensos sítios de carácter internacional, quando o mínimo é ter um. Às vezes os geoparques têm um, dois ou três, e inventam um quarto, nós demos logo assim uma dúzia, de bandeja. Por isso, sim, isso confirmou que este território vale e está a ser um trabalho muito interessante e do qual eu gosto imenso.

24. Nós que estamos de fora, também é essa a perspetiva que passa, que correu muito bem. E gostei muito, do grafismo, daqueles vídeos, das mesas de interpretação. É aquilo que uma pessoa vê e vai já roubar umas ideias, porque está bem feito.

Sim, as mesas de interpretação são um caso de sucesso, claramente. Aí, partilho parte do mérito, mas apenas parte. Estão muito bem trabalhadas e concebidas, sim.

25. Naquilo que são as suas funções, qual é a atividade que mais prazer lhe deu, ou tem dado?

Enquanto eu estava a fazer a minha tese de doutoramento, o que eu mais gostava, claro, era ir para o campo, e até gostava mais disso do que dar aulas, porque estava a dar aulas há pouco tempo, ainda estava muito agarrado à matéria, aos livros, ao programa. Portanto, aquilo com que eu vibrava mais era ir para o campo, chegar a um afloramento e dizer "Mas que raio é isto, o que é que isto está aqui a fazer?". Depois do doutoramento, foi essa ligação à indústria, perceber que o meu conhecimento científico, de campo e livresco, tinha aplicações em áreas que eu não fazia ideia, ter pessoas a vir ter comigo, a interagir comigo, elas a olhar e eu a encontrar maneira de comunicar com elas, ver que o meu conhecimento era válido e útil para elas, adorei isso. Agora, é claramente este trabalho no geoparque, é o que me entusiasma. Claro que continuo a adorar dar aulas, cada vez mais, mas cada vez mais aulas abertas, ou livres, não tão agarradas ao programa, cada vez mais aulas de falar sobre um tema, conversar sobre um tema, conversar sobre apresentações, ir para o campo e mostrar coisas, cada vez aulas mais informais, sem que isso seja desprestigiante.

26. E o que é que tem gostado menos de fazer ao longo destes anos?

Eu, francamente, tenho gostado de tudo. Quer dizer, eu gosto imenso do que faço. E aquilo que não gosto, tento não fazer, tento passar ao lado. E já dei um bom exemplo.

Vales no sopé dos Andes, próximo de Salta (Argentina, 2009).

"Claro que continuo a adorar dar aulas, cada vez mais, mas cada vez mais aulas abertas, ou livres, não tão agarradas ao programa, cada vez mais aulas de falar sobre um tema, conversar sobre um tema, conversar sobre apresentações, ir para o campo e mostrar coisas, cada vez aulas mais informais, sem que isso seja desprestigiante."

27. Reuniões de departamento? (risos) Coordenação do ERASMUS? (risos)

Já dei um bom exemplo, sem entrar em mais detalhes. Ainda assim, aquilo que, não é que não goste, mas que é, às vezes, mais penoso, é o ter de avaliar uma pilha de exames, com respostas muito repetitivas, às vezes muito básicas. Não é o "Eu fui tão bom professor e eles afinal só têm 10 ou 12", não é isso. Mas em que sinto que não consegui transmitir tão bem aquilo que eu queria em termos de abertura mental, em termos de ligação de conhecimentos, ver que eles ficaram mais presos à matéria e às definições do que eu gostaria. Ver muitos exames, muito repetitivos, estudaram todos pela mesma bíblia ou pelos mesmos apontamentos, ou pelo mesmo power point, que é o meu. Eu vejo lá isso. E eu sinto que afinal estive a falar 50 minutos sobre um power point que se lê em seis ou sete minutos, eles não aproveitaram os outros 44 minutos em que eu estive ali a dar o meu melhor e a tentar dizer umas graças – graças científicas, obviamente. Portanto, isso é o que às vezes me é mais penoso, ver muitos exames e sentir que eles não apanharam, ou muitos deles não apanharam aquilo que eu queria que eles tivessem apanhado.

28. Há bocadinho falou em dois nomes, quem é que foram assim outros colegas do seu ano?

Meus contemporâneos, já disse, o Jorge Relvas e o Pedro Terrinha, que, aliás, entraram no mesmo tempo que eu. Lá está, os meus colegas de curso, um ano acima um ano abaixo, muitos deles são meus colegas, mas eu não convivia com eles, porque era muito bicho do mato dentro da universidade. E, portanto, depois ao longo da minha carreira académica também nunca fui muito de me agrupar com os colegas do gabinete ao lado, tinha uma vida fora da faculdade muito intensa, muito diferente, noutros meios culturais, sociais. E não digo isto com orgulho nem vergonha, nunca fui grande amigo dos meus colegas, eram colegas de trabalho, mas nunca fui amigo de almoços, jantares, vamos ali, etc. Mais recentemente, sim, nestes últimos anos, comecei a aproximar-me de algumas pessoas, mas é um bocado ingrato dizer de quais. Mas sim. Agora tenho algumas pessoas ali dentro que eu considero meus amigos, a ponto de convidar para isto ou para aquilo.

30. Isto agora vai dar a uma pergunta mais pessoal – é difícil ganhar a sua confiança?

Não, de todo. Não é uma questão de desconfiança, é, não sei, não tenho uma apetência natural para me agrupar, irmos todos almoçar e falar do trabalho e do parecer e do diretor da faculdade e da abertura da vaga, não, não, não vibro com isso e tento passar ao lado disso. Cumpro as minhas tarefas, as minhas funções, tento não faltar em nada – não significa que me estou nas tintas para o meio académico, longe disso –, tento fazer aquilo com o máximo de respeito, consideração, responsabilidade, mas não me enfio nos meandros mais sinuosos. 

31. Qual é a sua publicação favorita nas geociências?

Vi essa pergunta e fiquei na dúvida: publicação de outrem ou minha?

"(...) adoro esses choques culturais. O que eu gosto de fazer (...) nas férias é desaparecer um mês, no mínimo – o que no meio académico também é considerado um bocadinho bizarro, embora sejamos livres, um mês de férias? Why not? Tenho direito a esse mês, adeus! Portanto, nesse mês, ir para outros lados, ver outros contextos culturais, outras sociedades, outras maneiras de ser e de estar"

29. Pode ser uma qualquer, ou ambas.

Ok! Minha, claramente é o ter escrito um livro sobre, não é de, é sobre a Geologia de Portugal, sobre os últimos 250 milhões de anos de rochas e paisagens em Portugal. Isso foi a coisa que eu mais gostei de produzir. Quando nós dizemos, fiz um paper excecional, ou fiz uma carta em que aquilo era um molho de brócolos e consegui resolver aquilo e a carta está fantástica, porque a carta está fantástica e resolve e não sei quê, pois a minha coroa de glória, para mim, pessoalmente, daquilo que consegui fazer, em termos de output, de publicação – que não conta nada, lá nos impact factor, índice h e f's e outras letras do alfabeto –, é o meu livro ["O Chão que Pisamos – 250 milhões de anos de Rochas e Paisagens em Portugal", 2023, Casa das Ciências]. Tem cento e tal páginas, tem 50 figuras, conta a história da Geologia de Portugal nos últimos 250 milhões de anos e porque é que Portugal é como é em termos de paisagem. Portanto, junta tudo aquilo que eu sei, aprendi e que eu tentei depois comunicar, explicar. Aquilo sim, é o que eu fiz, é o que eu sou, portanto, é a coisa na qual tenho mais orgulho pessoal – não vaidade, mas orgulho pessoal –, para mim, com os meus botões, de ter feito e ter deixado. Além disso fiz n papers, muito citados, pouco citados, está bem, ainda bem que os fiz, gostei de os fazer, mas não vibro particularmente com isso. Quanto a obras que costumo consultar, não tenho assim nenhuma bíblia que use. Claro que, volta e meia, consulto aqueles calhamaços da Geologia de Portugal, como uma pessoa tem de consultar o almanaque ou o anuário ou a lista telefónica. Quer dizer, quando eu quero saber a idade dos Farilhões, da Série Negra, tenho de ir lá ver o que aquilo é e que idade tem, etc, como elemento de consulta. Mas não, não tenho assim um livro, um trabalho, um paper que me ilumine e ao qual volto nos meus momentos de tristeza e obscuridão. (risos)

32. Qual é o momento que identifica como mais marcante na sua carreira?

O momento que me marcou mais, e vou começar pelo fim – e isto é uma estratégia publicitária (risos) – foi quando me fui embora da Universidade de Lisboa e fui seis meses para o Brasil. Foi em 2005, com uma licença sabática. Não foi para investigar, doutoramento, para ir para um laboratório, já tinha feito há meia dúzia de anos o doutoramento, tinha direito a um ano de sabática e usei seis meses. E esses seis meses têm um dia de início e um dia de fim: no primeiro dia apanhei o avião para o Brasil, no último dia apanhei o avião para Lisboa. Portanto, desapareci por seis meses e fui para o Brasil para ter uma experiencia universitária completamente diferente. Lá está, não é que seja, em si mesmo, melhor, eu não trocaria viver e trabalhar no Brasil por viver e trabalhar aqui, mas foi importantíssimo. Durante seis meses fui para uma universidade no sul do Brasil, no Rio Grande do Sul, ao pé de Porto Alegre, que tinha também atividades num polo um bocadinho mais a norte – o que no Brasil significa quatro ou cinco mil quilómetros mais a norte –, em Aracaju [estado de Sergipe], onde passei dois meses, noutra universidade mais pequena, mais provincial, digamos, e em muito intenso contacto com a indústria. Foi aí que eu comecei a perceber que essa ponte funcionava e podia ser interessante. Isso virou completamente o meu jogo, de sair de uma universidade onde eu tinha nascido, crescido, casado e tido filhos, usando uma imagem figurativa, eu era da Universidade de Lisboa desde que me conhecia, e fui lançado para outro mundo, onde a maneira de dar aulas era diferente, a atitude dos alunos era diferente, a maneira de investigar, de relacionar com os colegas, relacionar com a indústria, com os profissionais que nos vinham pedir coisas, e nós íamos com eles para o campo, era diferente, e foi assim um duche intelectual e, claro, pessoal também. Porque uma pessoa que é lisboeta, que vive em Lisboa, faz a universidade, não sei quê, e de repente é atirado para o Brasil, isso mexe com a pessoa. Mas eu adoro esses choques culturais. O que eu gosto de fazer – agora nem tanto – nas férias é desaparecer um mês, no mínimo – o que no meio académico também é considerado um bocadinho bizarro, embora sejamos livres, um mês de férias? Why not? Tenho direito a esse mês, adeus! Portanto, nesse mês, ir para outros lados, ver outros contextos culturais, outras sociedades, outras maneiras de ser e de estar, é isso que eu gosto imenso na comunicação, é tentar perceber o que está do lado de lá, pôr-me na pele do lado de lá, acho que é essa a grande dificuldade. Perceber o que é que ali está a ser apanhado ou ouvido, e para isso quanto mais experiências tu tiveres, de outros mundos, outros espelhos, mais isso te ajuda a ter esse jogo de cintura.

33. Qual foi o sítio mais bizarro que já visitou, em termos de diferenças culturais para nós?

Birmânia, Índia – fui lá três vezes –, Mali, Timor, Irão. Sempre de férias, sempre passear, nunca fazer Geologia.

34. Como é que surgiu o contacto para ir para o Brasil?

O António [Jorge Vasconcellos] Garcia [Universidade Federal de Sergipe] veio cá, uns anos antes, e começou a ir ao Departamento de Geologia [FCUL], ver quem é que mordia o isco de começar a trabalhar com ele, ir para o Brasil fazer coisas e tal, e quem mordeu o isco, ou estava para aí virado, fui eu, porque estava numa de "Vamos lá ver no que é que isto dá" e estava à procura de outras coisas.

"Fiz o exame, de ponta a ponta, correu-me muito bem, grande alívio: primeiro exame de cristalografia, está feito! Arrumei as minhas coisas, o meu caderno, guardei tudo. Inclusivamente o exame. Pu-lo na minha mochila e fui-me embora. Vou no autocarro e vejo, 'Mas eu tenho aqui o exame', não entreguei o meu exame! (risos)"

35. E o momento, assim, mais embaraçoso, um momento complicado, um falhanço?

Eu estive muito tempo a pensar no que poderia encontrar para isso e eu não consigo dizer que algo foi um falhanço. Claro que tu tentas fazer umas coisas, umas consegues e outras não, mas também o não conseguir nunca é menos do que não fazer sequer, ou não tentar. Eu posso tentar ir daqui ali e não chegar, mas o meu ponto de partida foi este, portanto, não perdi nada. Não tenho essa forma de ver, por alguma razão pessoal não consigo sentir que falhei, que perdi, que andei muito para trás, não consigo ter essa sensação. Mas puxei pela cabeça por um momento embaraçoso. Que não é exatamente profissional, mas é académico. Eu entrei com 18 anos, primeiro ano, primeiro semestre, as físicas, matemáticas e não sei quê e a cristalografia, que era um cadeirão, como é de imaginar, nessa altura. Então num curso de cinco anos, era uma cristalografia clássica, à séria, dada pelo professor Ricardo Quadrado, que também era uma figura um bocado sui generis, na sua maneira de pensar e falar e dar aulas, e era uma cristalografia com cristalótica, frentes de onda, raio normal e não sei quê, e a interferência, e derivadas e as projeções e as faces – era uma coisa complicadíssima. E, claro, sendo complicadíssima, a minha solução sempre foi: se é complicado, vou estudar isto à séria, é a única maneira, a ver se percebo umas coisas. Fechei-me em casa uma semana a estudar cristalografia, estudei à séria, cheguei lá e podia dizer 'Estou preparadíssimo'. Fiz o exame, de ponta a ponta, correu-me muito bem, grande alívio: primeiro exame de cristalografia, está feito! Arrumei as minhas coisas, o meu caderno, guardei tudo. Inclusivamente o exame. Pu-lo na minha mochila e fui-me embora. Vou no autocarro e vejo, "Mas eu tenho aqui o exame", não entreguei o meu exame! (risos) Entrei em contacto com o professor Ricardo Quadrado que me disse "Oh Nuno, eu não duvido de si, acredito que seja verdade, mas como compreenderá não posso abrir uma exceção, não posso aceitar isso, portanto, você vai ter de reprovar e vai ter de ir à segunda época". E fiz o exame de segunda época e obviamente passei, com uma muito boa nota, porque era muito estudioso. Mas foi uma experiência dura. Essa situação sim, é um falhanço em termos formais, embaraçoso em termos pessoais, mas, claro, olhando retrospetivamente é divertida, é engraçada, tenho uma história para contar aos netos. (risos) É óbvio que muitas vezes quando estava a fazer exames e hoje quando os dou lembro-me desta situação, é uma situação inédita, ninguém faz isto. (risos)

36. Se pudesse viajar no tempo geológico e assistir a um evento concreto, qual seria?

Também gostei muito dessa pergunta. A questão é que em Geologia os eventos momentâneos, dizer "Eu estava lá quando aconteceu", esses eventos instantâneos são muito poucos, e são catastróficos. Portanto, isso abre uma lista muito pequena, tem de ser o sismo, o tsunami, o vulcão que explodiu. Eu contornei o problema, mas estou a partilhar convosco as minhas ansiedades pessoais. E, claro, para quem trabalha em vulcões, sismologia, pode pensar assim numa coisa catastrófica, um istmo, que abriu e que fechou, isso são coisas que têm um dia e uma hora, por assim dizer. Mas as coisas em Geologia são mais lentas, mais longas e, portanto, eu tinha de ficar ali um par de milhões de anos, quietinho, sentadinho, a ver aquilo acontecer. E é por aí que eu vou. O que eu gostava de ver acontecer foi aquela fase em que, no fim do Mesozoico – e agora pensando em Portugal, na Bacia Lusitânica –, o oceano já abriu, a América já foi para o lado de lá, as Berlengas ficaram aqui, a bacia está aberta, a sedimentação dá-se ali, a bacia parou, morreu. No final do Cretácico os relevos estão a ser todos arrasados, tudo destruído, tudo planinho, começa o Paleogénico, está tudo numa planície que vai daqui aos Pirenéus ou mais, portanto, a Ibéria é uma enorme meseta, uma enorme planície, excetuando alguns relevos de dureza, aqui e ali. E o jogo começa a virar. Começa África a colidir, começa a colisão alpina, começam os movimentos compressivos, e algo que era como umas folhas de papel, que estão assim direitas em cima de uma mesa, isto tudo começa a ser comprimido, encarquilhado, e do nada, desta superfície plana, começam a formar-se uns relevos, a pôr o cotovelo e a mão de fora, começa isto tudo a encarquilhar e a criar-se relevo e a criar-se paisagem. Gostava de ver onde e como é que isso aconteceu, passar de uma tábua zero em que parece que o mundo acabou, em que já não há mais nada para acontecer, e começar a ganhar vida, de novo. Gosto muito, na Geologia, destas fases de transição, de virar o jogo. Parecer que está a ir num caminho, parou e atira-se para um caminho completamente diferente. Lá está, se a gente quiser fazer uma interpretação disso, em função do meu perfil e da minha vida, se calhar tem alguma coisa a ver.

37. Então eu gostava de saber, é cusquice, em que sítio de Portugal é que ia pôr a cadeirinha para ver o que é que ia acontecer.

Se calhar punha na Arrábida. Porque é o que é, começa e acaba ali, está ali a história toda, eu já vi, já falei com eles, com os primeiros conglomerados resultantes do soerguimento da Arrábida, portanto, conheço bem esse momento lá. Ficava ali a ver como é que aquilo veio cá para cima!

36. Com um moscatelzinho de Setúbal?

Com um moscatel de Setúbal e um queijo de Azeitão ao lado, exatamente.


Intraclasto

Sal q.b.

Como Intraclasto, o Nuno trouxe-nos um pacotinho de sal, apanhado por ele mesmo nos Andes, em 2009, durante a sua lua de mel. Diretamente do Salar de Uyuni, uma planície salgada do tamanho de meio Algarve, a mais de 4000 metros de altitude. Vulcões, lagos secos, vento, aridez total — um cenário tão espetacular quanto inóspito. Mas este souvenir nunca temperou nada. Talvez, depois desta entrevista, a Mónica o deixe usá-lo, num gesto simbólico, para salgar um jantar. Para já, permanece na gaveta, mas carrega memória e escala — de tempo, de espaço, de um mês de mochila às costas pela Bolívia e Peru, quando viajar ainda era simples.  Hoje, com filhos, os planos são outros. Mais curtos, mais práticos, por agora. Para quem passa a vida a olhar para pedras, o Nuno não tem dúvidas: a geologia a sério vê-se ao vivo, não em PDF. Neste formato, o que pode descobrir é mais sobre o trabalho de coletor de sal do Nuno neste seu outro passeio pelo deserto para trazer sal


Descubra mais sobre o nosso convidado olhando através desta Janela com Vista, a página pessoal de Nuno Pimentel.


Geomanias

Rocha preferida? Arenito

Mineral preferido? Quartzo, trivial, básico, universal

Fóssil preferido? Isognomon

Era, Período, Época ou Idade preferido? Triásico 

Unidade litoestratigráfica preferida? Grés de Silves

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Por inerência, não metálicos

Trabalho de campo ou de gabinete? Campo

Martelo ou microscópio? Martelo, claramente

Pedra mole ou pedra dura? Por inerência, pedra mole

Esparrite, Esparite, Sparite ou Sparrite? Não sei escolher uma, mas digo sparrite


Teaser da Entrevista