Nuno Pimentel
Agosto 2025
SEDIMENTAR/COMUNICAÇÃO DE CIÊNCIA
SÓCIO APG Nº O1314
Nascido e criado em Lisboa, foi o contacto com a natureza e as férias nas praias das Maçãs e da Ursa que despertaram o seu fascínio pelo chão que pisamos. Docente na FCUL e Coordenador Científico do Geoparque Oeste, foca a sua investigação na sedimentologia e na evolução de bacias sedimentares e traduz o que descobre para o público geral.
"É uma história muito, muito bonita que prova quanto um professor pode ter influência no futuro de uma criança. Eu era mau aluno e sempre fui mau aluno no liceu. (…) fui bom aluno a Ciências Naturais porque gostava do professor"
Conhecido dos mais novos como o "avô dos dinossáurios", o professor Galopim de Carvalho conseguiu um feito entre os geólogos nacionais: dispensa apresentação entre o público geral. Contudo, por outro lado, será que conhecemos o Marcos? De mau aluno no liceu, "exceto a Ciências Naturais, porque gostava do professor", a escritor de sucesso, com um percurso de vida que o levou da sua Évora natal a Paris, assentando em Lisboa, o Marcos revela-se uma figura bem-humorada, emotiva, envolvida na vida e com interesses e preocupações que ultrapassam largamente a Geologia. Figura de proa da defesa do Património Geológico nacional por via da "Batalha de Carenque" e, por isso mesmo, desde há muito associado pelo grande público aos dinossáurios, não se revê como paleontólogo, nem nunca estudou os fósseis dos "terríveis lagartos" que dominaram os ecossistemas terrestres do Mesozoico. Estudou fósseis, sim, mas os dos minúsculos briozoários terciários, que remédio teve. Porém, o seu coração geológico sempre se inclinou, desde os bancos da faculdade, para a sedimentologia. A vida é cheia de surpresas. Assim como – afinal – os dinossáurios não são lagartos, nem se extinguiram, ainda voando por aí, chilreando alegremente, o Marcos nem sempre foi geólogo, nem restringiu as suas paixões à Geologia pura e dura. O que o Galopim assumidamente foi e ainda é… é Professor.
Entrevista
Em sua casa, Lisboa, julho de 2023
1. Nome, local e data de nascimento.
António Marcos Galopim de Carvalho. Évora, 11 de agosto de 1931.
2. Conte-nos, como se fosse para leigos, o que faz profissionalmente.
Profissionalmente, fui professor. E na qualidade de
professor, fiz Geologia. Portanto, também fui geólogo. Mas, antes de ser
professor, fui trabalhador-estudante. Trabalhei como vendedor de máquinas de
escritório e [delegado de] propaganda médica.
3. Além disso, todos o conhecemos por ser um exímio divulgador da Geologia. De onde vem essa vocação?
É uma história muito, muito bonita e que prova quanto um professor pode ter influência no futuro de uma criança. Eu era mau aluno e sempre fui mau aluno no liceu. Ainda fui bom aluno a Francês porque gostava da professora. E fui bom aluno a Ciências Naturais porque gostava do professor. Esse professor teve uma ideia. Não sei se vocês sabem, atualmente há duas ou três minas a laborar em Portugal, mas nesses anos havia mais de 100 minas. Minas pequenas cuja rentabilidade não era compatível com a economia do presente. Hoje só funcionava uma grande mina para o mundo inteiro. Mas aquelas minas pequeninas do volfrâmio, da cassiterite, da pirite, etc., tudo isso trabalhava numa economia muito rudimentar. Muito, muito, provinciana. E então os liceus, que havia poucos ─ só havia um liceu por capital de distrito e hoje há dezenas de liceus [escolas básicas e secundárias] ─ eram beneficiários de material oferecido por essas muitas minas. O meu liceu tinha caixotes cheios de minerais e de rochas e de alguns fósseis. Aquele professor, foi meu professor do 5º ano do liceu [em Évora], que é o atual 9º ano, olhou para mim e disse: "Queres ajudar-me a fazer uma coleção com isto que aqui está?". E eu fiquei todo contente. "Então vais-me ajudar!" As ajudas que eu lhe dava era desembrulhar rochas, às vezes com mais de 20 ou 30 anos, do princípio do século, que estavam lá escondidas, enroladas em jornais. Até era giro, não para mim, para ele que era adulto, ler notícias de 1900 ou de 1901. Como criança, não me preocupava com isso. Eu, com uma escova, à torneira, lavei dezenas e dezenas de rochas e de minerais. Quando aquilo estava tudo lavadinho, ele olhava, classificava e dizia: "Olha, isto é uma pirite" e punha ali um papelinho: "Pirite". Eu fazia umas caixinhas de cartolina ao tamanho do mineral, com uma etiqueta com uma letrinha muito bonita: "Pirite. Minas de S. Domingos; Volframite, Mina da Panasqueira; Gabro de Mafra; Basalto de Lisboa." Fizemos várias prateleiras com rochas. Sobretudo rochas e minerais. Fósseis, eventualmente, havia alguns fósseis lá de cima de S. Pedro da Cova, de vegetais, daqueles fetos. E esse bichinho ficou aqui gravado no coração. Era a minha coleção. Era o meu orgulho. Era o liceu ter uma coleção, ter um minimuseu em que eu tinha colaborado. Mas a minha colaboração foi só o entusiasmo. Quando cheguei ao 7º ano [do liceu; atual 11º ano] quis vir para Lisboa, para Geologia, e o meu pai não deixou. Disse: "Olha, Geologia, ninguém sabe o que isso é." E, realmente, naquela altura, ninguém sabia. Eu sabia o que era. Mas a população não. E hoje, também, a população, os jornalistas, ninguém sabe o que isso é. Os paleontólogos são todos arqueólogos, etc., não é?
4. E então acabou por ir para o quê?
Bom, o meu pai mandou e eu vim para Biologia. Obedeci, que era assim naquela altura. E estampei-me, um ano. Estampei-me, segundo ano. E a tropa chamou-me. E é nessa altura que aparece esta fotografia [apontando para uma foto ali ao lado]. Eu sou um aspirante, muito bem fardado, um rapaz muito elegante. Elegante nunca fui, mas enfim. Mas depois, com um fato novo, acabado de comprar, fui fazer uma fotografia no [Cipriano] Camarate [fotógrafo em Évora] para guardar, etc. Porque nessa altura eu era aspirante ou alferes. Ganhava muito bem. E fui estando. Estava em Évora em casa do pai, com a namorada ali ao lado, a gente todos os dias falava um com o outro. A ganhar um bom ordenado, ganhava mais que o meu pai! Fui estando. Estive três anos na tropa. Não havia guerra. Quando chegou ao fim do terceiro ano, a tropa disse: "Este gajo está aqui a mais. Vai-te embora." (risos) Fiquei desempregado, sem curso, sem aptidões nenhumas. Não tinha aptidões para nada. Não tinha, nem sequer para empregado de escritório. Vim para Lisboa à procura de vida. Arranjei emprego numa firma para vender máquinas de escritório e máquinas registadoras. E, depois, para complementar o ordenado, fiz propaganda médica. Num dos empregos ganhava 500$00 escudos, no outro, 600$00. A minha mulher conseguiu vir para Lisboa, já profissional, e ainda estivemos um ano ou dois em Lisboa sem estarmos casados. Mas com o meu ordenado e o dela, a gente governava-se com um quarto. A Helena Pato, não sei se sabes quem é? [dirigindo-se a Carlos Marques da Silva] Uma rapariga muito conhecida do Partido Comunista do antigamente. Ela era da Associação de Estudantes na Faculdade, lá na cantina [na Rua da Escola Politécnica], e dava-me as refeições. Custava 9$00 escudos a refeição. Eu comprei uma marmita de alumínio e ela enchia-me a tijela de sopa, outra de não sei quê e outra de batata. E nós jantávamos os dois por uma marmita.
"Era [um aluno] muito ativo. Até porque éramos muito poucochinhos. E tínhamos uma belíssima convivência com os professores. Na Geologia, vamos para o campo todos juntos, sentamo-nos com o rabo no chão, somos todos camaradas uns com os outros"
5. E quando é que ingressou no curso de Geologia?
Matriculei-me no primeiro ano de Geologia em 1957. Também, nessa altura, casámos. Fiz o curso, que acabei em 1961. Tinha algumas cadeiras de Biologia que eram comuns. E, portanto, foi assim. Deixem-me só dizer que quando cheguei ao fim do curso os dois diretores, o professor Carlos Teixeira e o Torre de Assunção, um era o Diretor do Museu e o outro era o do Departamento ─ mas eles faziam uma direção [conjunta], eles davam-se muito bem ─ , por opinião dos dois, convidaram-me para eu ficar. Eu não fiz concurso para a faculdade. Fiquei logo como assistente. Em 1961. Como não havia cabimento de verba, que era uma coisa comum, havia sempre uns reforços [de orçamento], nós éramos contratados por "urgência de serviço". E só ganhávamos depois, quando viesse o cabimento de verba. O Marcelo Caetano era o Reitor, entendeu que aquilo era ilegal e não autorizou e ficámos a ver navios no primeiro ano de trabalho. Nunca foi pago.
"[No liceu] O meu trabalho foi lavar as rochas à torneira e os minerais. Ele [o meu professor] classificava. E explicava-me: "Olha, isto é um granito, estás a ver aqui o feldspato? Está a ver aqui isto? Estás a ver aqui … ?". Eu aprendi muito com ele"
6. Recuando um pouco atrás, mas por curiosidade, esse seu professor do Liceu em Évora, como se chamava?
Cassiano Vilhena. Ele era professor aqui em Lisboa, no [Liceu] Gil Vicente e o meu professor de Ciências Naturais em Évora, por sorte minha, adoeceu e nós ficámos sem professor. Este, porque tinha interesses, não sei quais, ele era de Viseu, foi para lá, para Évora, ensinar. Como havia muito poucos liceus e muitas minas disponíveis, por razões que eu desconheço, talvez por aquele boom da Geologia [das minas] do princípio do século haver algum interesse, os professores ou os reitores desses liceus, começaram a pedir às minas material. O Liceu de Évora, talvez por obra de algum professor daquele tempo, tinha centenas de rochas e de minerais. E esse meu professor explicava-me: "Olha, isto é um granito, estás a ver aqui o feldspato? Está a ver aqui isto? Estás a ver aqui … ?". Eu aprendi muito com ele.
7. Voltou à sua escola depois de formado?
Ainda lá estava a sua coleção?
Voltei à escola primária. Voltei com uma história muito bonita. O primeiro livro de contos que publiquei foi O Cheiro da Madeira, que foi editado em 1992, e que o Vergílio Ferreira quis publicar na editora dele. Não conseguiu. ─ O Vergílio Ferreira foi nosso professor em Évora e ele era de uma editora ali da Baixa, já me lembro o nome. ─ O diretor da Europa-América, que era meu amigo, disse-me: "Nós não publicamos porque não somos instituição de caridade. Nós vendemos livros de autores que vendem. Não de um autor que quer agora começar. Arranja maneira de ter um subsídio." Eu conheci o atual diretor da Âncora, que é meu editor, há anos, que naquela altura era o diretor da Editorial Notícias. Falei com o presidente da Câmara [Municipal] de Évora, porque todo o livro, toda a história do livro, são coisas de Évora, e dei-lhe o manuscrito para ler. Ele gostou e disse: "Diga ao editor que nós compramos a primeira edição." A Câmara de Évora subsidiou a primeira edição e o livro saiu. E foi logo um bestseller. A primeira edição vendeu-se logo. E o dinheiro dessa primeira edição, a câmara não quis. Eu fui a Évora com o editor, com o Dr. Baptista Lopes [diretor da Editorial Notícias], que em 1998 fundou a Âncora. Em Évora estava o Abílio Fernandes, que era o presidente da câmara dessa altura. Fomos lá com o cheque para lhe dar os direitos de autor do livro que ele tinha subsidiado, portanto, os lucros eram para ele. Ele não aceitou. E então eu fui levar esse cheque à escola primária onde levei tanta porrada. Fui lá. Já era diferente, claro. Já não havia ninguém. Nessa escola primária apanhei muitas reguadas. Muitas. Muitas. De Inverno, com as mãos geladas. Era cruel. Os minerais e as rochas eram do liceu, hoje a Escola [Secundária] André de Gouveia. Já fui ver, mas já está muito degradada, muito degradada. São muitos anos. São 70 anos.
8. Dizia-nos que no liceu não era bom aluno. E na universidade, já depois da tropa? Como foram esses anos?
Muito interessantes, uma dádiva absoluta, total. Era o que eu queria. Eu gostava de todas as disciplinas. Os professores eram simpatiquíssimos, portanto estava tudo preparado para a coisa caminhar sempre.
9. Entraram quantos
alunos no seu ano?
Éramos uns poucos, cinco, seis.
10. Tem presente o
nome dessas pessoas?
Tenho. Maria Helena Antunes, Maria Helena Reis, o Bailim Piçarra. Eu sou capaz de me lembrar.
11. Dos outros anos, há algum geólogo notório?
Antes de mim estava o Prof. Matos Alves, que tinha feito a
tropa comigo. Conheci-o na tropa. Quando entrei na faculdade já ele era
assistente. Ainda foi meu [professor]. Ainda tive aulas práticas de Mineralogia
com ele. Era simpático. E era muito elegante, na conversa. Sempre foi. As aulas
teóricas dele eram muito bonitas. Quando eu o conheci ele era assistente,
acabadinho de entrar. Muito fresquinho, ainda.
Mas era simpático. Depois fez o doutoramento, começa a poder reger
cadeiras [e a dar aulas teóricas]. Todos os alunos ─ inclusivamente eu assisti
a algumas aulas [teóricas] dele ─ achavam que ele era particularmente elegante.
Ele tornava a Petrografia uma coisa muito bonita.
"[Estudar Geologia na universidade foi] Muito interessante, uma dádiva absoluta, total. Era o que eu queria. Eu gostava de todas as disciplinas. Os professores eram simpatiquíssimos, portanto estava tudo preparado para a coisa caminhar sempre".
12. De que disciplina gostou mais?
Da Sedimentologia, sem dúvida nenhuma, com o Prof. Carlos Romariz. Foi um pioneiro. Como dizer, não havia ainda a cadeira de Sedimentologia. Mas nas aulas práticas de Geologia, já ele nos fazia trabalhos relacionados com a natureza dos sedimentos. Uma das coisas de que me lembro perfeitamente, muito gira, foi calcular os índices de esfericidade dos calhaus. (risos) Nós desenhávamos rodelas de cartão. Pesávamos, umas grandes outras pequeninas. Aquilo era uma satisfação, aquelas aulas. E depois misturar areias. Gostei muito da Sedimentologia. Era uma cadeira semestral. Quando tivemos as primeiras aulas de Sedimentologia a disciplina ainda não existia. O que já se dava era, ao longo da disciplina de Geologia Geral, um capítulo ligado à Sedimentologia. E ele [Romariz], como estava a fazer o doutoramento numa área de rochas sedimentares, em Soure, e tinha material … Ah, e como aluno, eu ajudei-o num pequenino laboratório muito rudimentar [na Rua da Escola Politécnica] ─ onde depois ficou o gabinete do César [Lino Lopes] ─ onde se usava o ácido, se separavam os minerais pesados, onde se fazia uma porção de trabalhos. Eu ajudava-o na tese como empregado de laboratório. Também lavava frascos e essas coisas todas. Fiquei logo de princípio muito ligado à Sedimentologia. Quando ele era professor da cadeira de Sedimentologia, eu ─ já mais crescidinho ─ já era assistente da disciplina. Depois, mais tarde, como fui progredindo na carreira, acabei por ser eu a dar essa disciplina. Também porque, um ano depois de ser assistente, fui para Paris com uma bolsa de estudo.
13. Como surgiu a oportunidade de ir para Paris?
Foi a minha fase paleontológica. (risos) O Professor Carlos Teixeira e o Zby [Georges Zbyszewski] trouxeram de Pombal uns sacos cheios daquela areia do Pliocénico [de Carnide, Pombal] riquíssima de fósseis em muito bom estado. Peneirando, eu tirava os macrofósseis todos, aquelas cascas e aqueles bocados grandes, e nas peneiras mais finas ficava uma areia riquíssima e ao microscópio separava uns, separava outros. Então fui para Paris fazer esse estudo. Mas como já levava Sedimentologia no coração, o António Ribeiro que estava lá a fazer Tectónica, disse-me: "Ó Marcos, há um doctorat de troisième cycle! Há um 3º Ciclo de Sedimentologia lá na Sorbonne." E eu fui logo para lá. Mas, o curso eram dois anos, eu estava com uma bolsa. Já estava quase a meio, só tinha mais seis meses. Pedi ao professor, aos dois ou três professores, se me deixava assistir às aulas, quer às teóricas, quer às práticas que eram num laboratório onde trabalhava o Ferreira Soares de Coimbra que estava lá a fazer um estágio. Isso foi muito bom para mim porque depois não precisei de pedir autorização a ninguém para ficar lá no laboratório. Porque ele disse: "Vais vindo aqui ter comigo, daqui a uns meses já ninguém pensa que tu não pertences aqui. Já estás habituado à casa." Ele depois acabou a bolsa, foi-se embora, e eu ainda lá fiquei dois anos. (risos) E fiz lá o 3º Ciclo de Sedimentologia.
14. Como funcionava? Ia e voltava?
Fiquei lá dois anos seguidos. Quase três.
15. E a família,
durante esse tempo todo?
Com a mulher. Há aqui uma fotografia de nós os dois. Está
aqui. [mostrando uma foto na mesa à sua frente] E há uma outra. É essa.
Exatamente! Estamos na janela. De maneira que eu acumulei o trabalho que tinha
que fazer no laboratório, que cumpri, só que não publiquei. Fiquei com tudo em
reserva. E só publiquei isso mais tarde. Até já nem sei onde tenho isso, esse
exemplar. Publiquei um livrinho pelo Centro [de Estudos de Geologia da FCUL]
com os briozoários de Terciário português. Reuni algumas separatas naquele
conjunto e ficou. Mas por uma questão de cumprir uma palavra. Que o Carlos
Teixeira disse: "Foste para lá, agora tens que [aguentar]." Mas eu o que lá
estive a fazer foi sempre assistir às aulas [de Sedimentologia] e às aulas de
Geografia com o [Pierre] Birot.
16. Mas em alguma altura teve de falar com Carlos Teixeira e dizer-lhe que o que queria fazer era Sedimentologia?
Mas ele aceitou. Ele aceitou. O Pierre Birot era muito amigo do Orlando Ribeiro. E tive sempre uma convivência muito próxima com o Orlando Ribeiro. Depois, quando passo à minha fase já de adulto, de fazer o meu doutoramento, peguei nesse material e continuei a ampliá-lo. Vim de Paris em 1964 e, quatro anos depois doutorei-me, em 68. Quem me orientou com mais sumo foi o Orlando Ribeiro, sendo geógrafo. Tanto que a minha componente geomorfológica ficou sempre muito agarrada à Sedimentologia.
17. Foi um aluno
participativo ou era mais reservado?
Era muito ativo. Até porque éramos muito poucochinhos. E tínhamos uma belíssima convivência com os professores. Na Geologia vamos para o campo todos juntos, sentamo-nos com o rabo no chão, somos todos camaradas uns com os outros.
18. Tinham muito
campo nessa altura?
Sim. Sim. Muito mais que hoje. Íamos para Portugal inteiro, de norte a sul.
19. Alguma saída em particular que se lembre?
Lembro-me de uma saída em Castro de Aire, em que o Matos Alves chegou cá fora com um bidé e uma sombrinha a fingir que tocava violino [imitando o gesto de tocar violino], porque o Telles Antunes estava a tocar piano. (risos)
20. O Prof. Telles
Antunes foi seu contemporâneo?
Foi meu contemporâneo. Sempre, desde o primeiro ano até agora.
21. Na universidade,
houve alguma disciplina de que não gostasse tanto?
Eu até de Matemática gostei! E no liceu eu chumbei a Matemática no 7º ano [hoje, o 11º] porque havia um professor que era um nabo, um nabo! Estava sempre a dizer: "Estão aqui 90 quilos de olhos e músculos", mas não ensinava nada. E depois fiquei um ano a repetir Matemática. E apanhei um belíssimo professor que me disse assim: "Olha, a Matemática é uma escada. Sobes o primeiro degrau. Quando o primeiro degrau estiver bem assente, sobes o segundo e assim sucessivamente." E ele, no 7º ano, ensinou-me a matemática toda do 1º ano até ao fim. Levou-me às bases e a dar os passos sucessivos. Depois até gostei de Matemática. E gostei muito de Química. Não gostei tanto de Física. O professor era um estupor. Era o Amaro Monteiro ─ que a vocês já não diz nada ─, mas que tinha uma sebenta de 600 páginas cheia de Física, com fórmulas, como se diz?, Cálculo Vetorial, Álgebra e Cálculo Decimal e não sei quê. Que nós não abarcávamos. Ele pegava na sebenta ─ isto é verdade ─, punha-se no quadro, ditava o que ia lendo e ia escrevendo as fórmulas que estavam na sebenta. Ele chegava a ter aulas só com um aluno que a gente nunca mais lá ia. Não valia a pena. Só aquele aluno que se queria mostrar ou coisa assim é que aparecia lá.
22. Lembra-se de quem entrou consigo para a faculdade como assistente?
Entrou o Telles Antunes. Entrou o Miguel Ramalho. O Telles Antunes safou-se, mas o Miguel Ramalho e eu não ganhámos nada naquele tal primeiro ano de que vos falei. De Geologia, não me lembro de mais ninguém ter entrado nesse ano. Houve uns para a Química, o César Viana. Houve uns lá para cima para a Zoologia. Houve uma senhora para a Botânica. Houve assistentes para quase todos os departamentos que não ganharam nada.
"Eu gostei muito de dar aulas. Gostei muito de dar aulas práticas e teóricas. Senti-me sempre muito bem. E continuo a dar aulas. Eu não paro. Gosto mesmo de dar aulas."
23. E, em 1977 arranca o Ano Propedêutico. Como se envolveu na elaboração dos textos de apoio da disciplina de Geologia?
Estamos a seguir ao 25 de Abril. Havia necessidade de fazer formação cívica e alargar o conhecimento de uma população maior. Não havia capacidade em termos de liceus para dar preparação a toda a gente. A solução foi ensinar disciplinas através da televisão. Do ponto de vista da Geologia foi um sucesso. Resultou bem. Não sei como resultou noutras cadeiras, não faço ideia. Mas nessa altura são chamados [da FCUL] ao Ministério [da Educação] o Carlos Almaça, que era o professor da Zoologia, eu como professor da Geologia, mais não sei quem pela Botânica e mais não sei quem pela Química, pela Física. A incumbência era: "Nós vamos ter duas pessoas por disciplina. Uma faz os textos, faz a parte teórica, e a outra vai à televisão dar a cara, semanalmente. E isto arranca já este ano. Comecem já a trabalhar." Eu entusiasmei-me com aquela ideia. Eu já era licenciado desde 61, já era doutorado desde 68, já era um sénior. Por qualquer razão, não me compete a mim dizer porquê, fui eu o chamado. Eu aceitei a ideia do coração. Isto deve estar escrito na Introdução [dos textos de apoio], o explicar, o porquê. Comecei a trabalhar e chamei um aluno meu de quem eu gostava muito, muito bom aluno, o José [Manuel] Brandão. ─ É um interessado. Empenhadíssimo. Ele ainda hoje continua a trabalhar muito nas minas, nessa história do Património Mineiro. ─ Achei que era a pessoa mais indicada para dar a cara. Escolhi bem. Ele orientava-se a partir da matéria que eu estava a dar. Ele próprio construía a sua aula televisiva. E isto funcionou muito bem. Funcionou tão bem que foi um êxito. E não falhou, todas as semanas havia um texto para avançar.
24. Referiu que escreveu muitos desses textos durante as férias?
Eu já estava a escrever antes das férias. Comecei logo a
escrever. Mas sou apanhado no período das férias. Esta conversa deve ter sido
antes de férias: "Nós vamos arrancar em outubro". E eu comecei logo a escrever
os primeiros capítulos. Todas as semanas mandava um texto para Lisboa e depois
mandavam-me o texto já dactilografado. Eu via se estava bem e devolvia para
Lisboa. Fui mais vezes aos correios … [que ao mar].
"Nessa sala muito grande o Romariz fez [uma exposição], em 71 ou 72, com muitas fotografias, com rochas com isto e com aquilo. E com uma fotografia das bilobites. E o filho do Tiago perguntou ao Romariz se as bilobites eram dois terços das trilobites. Era filho de matemático!" (risos)
25. Na sua vida profissional, qual a atividade de que mais gostou?
Eu gostei muito de dar aulas. Gostei muito de dar aulas práticas e teóricas. Senti-me sempre muito bem. E continuo a dar aulas. Eu não paro. Gosto mesmo de dar aulas. E neste ano da Pandemia, fartei-me de dar aulas através do Zoom.
26. As escolas
continuam a convidá-lo muito?
Sim, sim. Só ponho uma condição, de me virem buscar a casa, à porta, e me virem por à porta. Isto já está a dificultar as deslocações muito distantes. Há uns três anos fiquei no hospital em Viseu. Tenho sempre receio de não estar em Lisboa. Ou tenho aqui os recursos ao lado ou então é complicado. De vez em quando, inesperadamente, posso ter uma crise. Isso aconteceu-me em Viseu. O presidente [da câmara] mandou logo buscar-me. Colocou o carro dele à disposição para me trazerem para Lisboa. Como quem diz: "Levem o gajo daqui. Levem-no daqui para fora!" (risos)
27. Após tantos anos a dar aulas, a comunicar ciência, qual é grupo com quem mais gosta de trabalhar?
Com todos. Mas adoro as crianças do jardim-escola. Acho que tenho dois jardins-escolas com o meu nome. Sento-me no chão com eles. Explico-lhes, e eles gostam muito.
28. Acha que isso é o reflexo de ter sido inspirado por aquele seu professor de liceu?
Talvez, talvez. Mas também gosto muito de trabalhar com idosos. Aquelas universidades seniores. Vou muito, muito. Dou-me muito bem. As pessoas ficam encantadas, porque a Geologia é muito bonita. A Geologia é muito bonita. É preciso é saber pôr essa beleza cá fora.
29. Escreveu muito sobre Geologia. Mas escreveu também sobre outras coisas. Fale-nos da sua prosa. Como começou a envolver esses dois mundos?
Eu nunca tinha escrito nada que não fosse Geologia. E na Geologia devo ter a minha assinatura em 200 ou 300 coisas. Umas mais banais, outras mais complicadas. Mas era tudo sobre o quartzo, a trilobite, o granito, a falha, o Miocénico ou o Pliocénico. E nada relacionado com o amor, com a vida, com isto … Em 1991, por essa altura, porque publiquei o livro O Cheiro da Madeira em 1992, eu li um livro maravilhoso de uma senhora que era esposa do Jorge Amado, Zélia Gattai. Ela escreveu um livro chamado Anarquistas, Graças a Deus. Era a história dos italianos imigrantes no Brasil, em São Paulo. Histórias giríssimas de vida, da mãe dela, da avó dela, de vida simples que tinha sido também a minha vida. Eu tive uma infância felicíssima e riquíssima. Fiz tudo. Gostei de tudo, menos da escola. É verdade, gostei de tudo, menos da escola. Gostava de estar em casa do carpinteiro, do sapateiro, do correeiro, tudo, tudo, tudo. A fazer queijo. Gostava de aprender. Ainda hoje eu sou um operacional. Se eu estiver na rua a ver um calceteiro, eu estou a ver como ele faz. E se houver necessidade, sei que sou capaz de fazer igual. Já fiz paredes de tijolo. Não como esta [apontando para a parede da sala], mas de muros. Aprendi a fazer, vendo. E se ele fez, eu também faço. Faço a liga do cimento, como se põe. Faço isso tudo. Eu disse assim: "Vou escrever aquilo que me aconteceu na minha infância e na minha adolescência". Então saiu o primeiro livro. E gostei muito e fui muito elogiado e fiquei muito babado. Como isso aconteceu, comecei a sentir necessidade de escrever. Ainda hoje não passo um dia sem escrever. É que tenho mesmo. Assim como há pessoas que têm necessidade de ir à rua, ou de ir à caça ou assim, eu tenho necessidade de escrever. Já é um gosto que vem de 1990, já são mais de 30 anos.
30. O Alentejo está muito presente na sua escrita?
Sim, indiscutivelmente. Eu vou muito ao Alentejo. Ainda tenho um projeto em Évora.
31. Dar aulas era a sua atividade
predileta. De que atividade menos gostava?
A nível profissional? Fazer exames. Era sempre doloroso fazer exames. Corrigir exames. [Fazendo o gesto de escrever] Porque as provas orais eu sempre gostei de fazer. Os alunos tinham muito medo das provas orais, mas continuo a pensar que é a melhor prova que se pode fazer ao aluno, que lhe dá a real oportunidade de se demostrar. É claro, um tipo que não sabe nada, mostra logo que não sabe nada. E a minha maneira de fazer exames nunca era: "Diz lá o que é isto?" Começava a falar e eu perguntava: "De onde é que você é? Está lá ao lado uma igreja …" Eu aprendi isto com o Carlos Teixeira. Eu viajei muito por Portugal. Com o Prof. Carlos Teixeira, como Prof. Orlando Ribeiro, com o Romariz. Com eles todos. Ou nos automóveis deles ou em carros contratados. Foi uma altura em que se saía muito, muito, muito. Parávamos e depois … Às vezes, chegávamos a almoçar às cinco da tarde. O Carlos Teixeira nunca parava. Chegávamos à pensão às cinco da tarde, ele preparava-se para almoçar às seis e, a seguir ao almoço, jantava. Era um animal. Um animal autêntico! Ele não parava e nós a aguentar. Era muito giro, a gente passava por uma amostra e ele dizia: "Está aqui um xisto com estaurolite." Às tantas [para nós, estudantes] já não era estaurolite, era trilobite, depois já era bilobite. Acabava em ite! Íamos atrás dele e perguntávamos: "O que é que ele disse?" Estaurolite. Trilobite. (risos) Com o Carlos Teixeira as excursões não tinham pedagogia nenhuma. Eram maratonas de andar. Eram praticamente provas de resistência de andar. De andar e de estar sem comer. O Orlando Ribeiro era diferente. Parava, abria os mapas, fazia uma lição. Fazia perguntas. Os alunos ficavam, tiravam dúvidas, etc. Completamente diferente.
"Era muito giro a gente passava por uma amostra e ele [Carlos Teixeira] dizia: "Está aqui um xisto com estaurolite." Às tantas [para nós, estudantes] já não era estaurolite, era trilobite, depois já era bilobite. Acabava em ite! Íamos atrás dele e perguntávamos: "O que é que ele disse?" Estaurolite. Trilobite."
32. Referiu que aprendeu a fazer exames orais com o Prof. Carlos Teixeira...
Então, começava a entrar numa conversa certamente intimista com o aluno. E, às tantas, daí a pouco, dizia: "Lá ao pé daquela fonte, aquela rocha é um granito." ─ E ele: "Sim, um granito." ─ "Sabe o que é um granito?" Ia dialogando com ele, ia esticando à medida do que ele podia ir e percebia-se o que eles sabiam. E também se percebe a maturidade intelectual. Um aluno que está a fazer exame de finalista numa universidade tem que ter uma maturidade mínima. E uma prova oral permite apreciar isso, as provas escritas não. Agora, para o fim, para os últimos anos, era muito difícil porque o número de alunos era muito grande. Tenho até uma fotografia algures aqui em que eu estou a corrigir provas e tenho um gato em cima do meu braço.
33. Qual a parte mais difícil de corrigir provas escritas?
Era horrível. Por um lado, as caligrafias eram péssimas. Eram e ainda são péssimas. Por outro, a sintaxe era horrível e era confrangedor. Era confrangedor. Pensava: "Que nota é que eu dou a este gajo? O que é que eu faço disto?" E depois cria-se uma luta muito grande, entre aquilo que temos ali à frente e aquilo que nós temos de fazer. É muito doloroso corrigir provas.
34. Gostaríamos de confirmar o que o Prof. Romariz respondeu uma vez, para efeitos de escala, à pergunta: "O que são Acritarcas"?
Eu não posso dizer. (risos) Mas querem que eu diga? Eu
só me lembro dos tomates do bicho que ele dizia. Foraminíferos? Não, era: "Os Acritarcos eram os
chatos nos tomates dos graptólitos". Dos
graptólitos, exatamente. A história é verídica. Mas isto conversava-se entre
nós. É verdade, é.
35. E quem disse que as bilobites eram dois terços de uma trilobite?
Essa foi o filho de um professor de Matemática, do Tiago de Oliveira. O Romariz fez uma exposição naquela sala do museu [de História Natural] logo a primeira à esquerda, quando se entra, onde hoje estão as coisas da Matemática. Nessa sala muito grande o Romariz fez uma exposição, em 71 ou 72, com muitas fotografias, com rochas com isto e com aquilo. E com uma fotografia das bilobites. E o filho do Tiago perguntou ao Romariz se as bilobites eram dois terços das trilobites. Era filho de matemático! (risos)
36. Que publicações lhe deram mais prazer escrever?
Houve um livro que gostei muito de escrever que se chama Fora de Portas. Um calhamação. Eu pus ali o essencial da minha vida desde pequenino até ao presente, até que o acabei de escrever. Mas eu gostei sempre muito de escrever. Também gosto muito de História e entendi fazer um livro de História para os professores de Geologia. Estou a pensar nos professores do Ensino Básico e Secundário. O livro para os professores de Geologia aprenderem o mínimo de História e para os professores de História aprenderem o mínimo de Geologia. Eu ficcionei uma situação em que eu sou um doutorando ─ pelo facto de ser um doutorando, já sou uma pessoa que sabe de Geologia ─ e entro em diálogo com os reis de Portugal. O D. Afonso Henriques vem falar comigo, por exemplo, no castelo de Guimarães, conta-me a história da vida dele e, intercalando a história da vida dele, vou-lhe explicando qual é a Geologia do granito, o que é isto, o que é aquilo. Termino com D. Manuel II no Museu dos Serviços Geológicos [Museu Geológico] em que ele fala da história dele, que é dramática ─ a história do D. Manuel II é dramática ─ e eu lhe falo de Geologia Marinha. Eu corri os programas essenciais de Geologia. Trinta e três programas, são 33 soberanos, falando com eles das várias matérias de Geologia ao mesmo tempo beneficiando da História que eles me contavam do seu tempo. Com uma coisa muito particular, é que eles são sempre críticos do que foram em vida. O D. João III, por exemplo, está arrependidíssimo de ter mandado vir a Inquisição. Dizia: "Naquele tempo ─ estás a ver pá ─ éramos uns fundamentalistas. A Igreja fez barbaridades. Eu hoje não vejo Inferno. Não há inferno, não há Céu. Ó pá, eu não sei onde é o Paraíso, nunca ninguém o viu." Portanto, estou sempre a falar com um fantasma. Só eu é que o oiço, só eu é que o vejo. E ele [o personagem, D. João III] diz que o Inferno é um eterno remorso que a pessoa tem do mal que fez. E o Paraíso é a eterna satisfação da alegria de ter feito o bem nesta Terra. E vou metendo a política nacional nessa altura. Estávamos no tempo do Passos Coelho…
37. E ler/consultar? Quais as suas publicações favoritas?
Um livro que me marcou foi ─ como é que ele se chama? ─ do francês Géologie des Argiles, do Georges Millot. Foi um livro que me marcou. Muito, muito, muito. Estudei muito por ele. Uma coisa muito engraçada é que a divulgação mundial da língua francesa não tem a capacidade da língua inglesa. O Millot publica esse livro no início da década de 1960. Eu faço o meu doutoramento em 64 em Paris, o 3º Ciclo, estudando a Geologia das argilas que ele inovou. Portanto, eu adianto-me ao mundo anglófono defendendo as teses, usando as teses do Millot. Só em 1971 [na realidade, em 1970] é que uma das grandes editoras internacionais, a Springer Verlag, o editou em inglês. E em vez de lhe chamar Geology of Clay, chamaram-lhe Geology of Clays, à letra. E, a partir dessa altura, o Millot passou a ser conhecido. Livros, sem ser de Geologia... Há um livro que vocês não conhecem. É assim a literatura, vai-se comendo umas às outras, a não ser os grandes nomes. O livro do Sinclair Lewis, que era um autor [norte-]americanDr. Arrowsmith. Foi, por assim dizer, um símbolo que me orientou ao longo da vida. Foi muito importante, esse livro.
38. Tem alguma carta geológica favorita?
A de Tomar. Tem tudo. Quase tudo. Estava a exagerar. Mas tem quase tudo. Tem pré-Câmbrico. Depois tem Paleozoico muito bem representado. Tem o Mesozoico quase todo representado. Tem o Quaternário. Tem o Cenozoico. Eu andei a trabalhar nessa carta, naquelas férias em que o Carlos Teixeira nos mandava. E andei lá uma vez com o António Ribeiro. E foi até muito engraçado porque estávamos a jantar no restaurante e havia um tomarense que se pôs a dizer mal dos arquitetos: "Os ladrões fizeram aqui…, gatunagem, o que eles querem é dinheiro!" E um dos arquitetos que ele estava a odiar era um tio do António Ribeiro. (risos) E o António dava-me pontapés por baixo da mesa. Como quem diz: "Eu não posso dizer a este gajo que ele é meu tio." (risos) Era o arquiteto Carlos Ramos. Era irmão da mãe dele. Mas que ele [o tomarense] dizia que era um tubarão que ganhava mundos e fundos na urbanização. O António deixou-o estender-se e não lhe dissemos nada. (risos)
"A minha referência talvez vá lá para fora. André Cailleux. Era um generalista de uma grande competência, de uma grande capacidade de transformação, de divulgação. Também me influenciou muito. Eu fui especialista a fazer o doutoramento, mas a partir de uma certa altura tornei-me um generalista porque era o que mais gostava. Eu gosto de tudo. Eu gosto de tudo."
39. Muitos professores clássicos da
FCUL iniciaram a sua carreira pela Paleontologia. Foi por influência do Prof.
Carlos Teixeira?
Sim. Sim. O Carlos Teixeira era um monstro sagrado da Geologia. Era todo-poderoso. Naquela Geologia antiga que se fazia, a Geologia pontual, a descrição pontual. Isso ele sabia tudo. E depois começa a haver uma conflitualidade… O António Ribeiro é um cérebro. É, na minha opinião, o geólogo mais bem informado, com maior capacidade, não só pela quantidade de informação que contém, como da qualidade da elaboração que faz com essa informação. Ele é realmente espetacular. Não vai aparecer outro. É uma amostra do pai, na Geologia. Lembro-me de conflitos entre o António Ribeiro e o Carlos Teixeira. Por causa de falhas, por causa disto, por causa daquilo. Até porque o António esteve em Paris a estudar com um grande tectonista, o [Louis] Glangeau. O Carlos Teixeira estava a milhas de distância das preocupações do Glangeau. Ele tinha ficado agarrado a um paleontólogo francês de renome ─ já não sei o nome dele, morava ao pé do Panthéon ─ que tinha estudado o Paleozoico francês. Naquela altura estudava-se tudo. E o geólogo era, ao mesmo tempo, paleontólogo. Quem fazia Mesozoico ou quem fazia Paleozoico, associado à litologia tinha sempre a Paleontologia. Mas a Tectónica, explicar o porquê da dobra, o porquê da falha, da inversão, ninguém se metia nisso. E o Carlos Teixeira não fazia nada disso. Eu quando estive no campo pela primeira vez com um geólogo que me mostrou o que era linearidade, o que era clivagem de fluxo nos xistos do Devónico do Alentejo … Eu quando via xistosidade achava que eram camadas. Os grauvaques eram camadinhas. Depois percebi que uma coisa era xistosidade, outra coisa era a disposição das camadas. O António Ribeiro dominava já essas coisas muito bem porque tem uma memória prodigiosa, sabe isso tudo. Apanha tudo antes de o professor acabar de dizer.
40. Que referências tem na Geologia? Que geólogos?
O Carlos Teixeira não é, com certeza. O Torre de Assunção ─ que eram os mestres ─ também não. A minha referência talvez vá lá para fora. André Cailleux. Era um generalista de uma grande competência, de uma grande capacidade de transformação, de divulgação. Também me influenciou muito. Eu fui especialista a fazer o doutoramento, mas a partir de uma certa altura tornei-me um generalista porque era o que mais gostava. Eu gosto de tudo. Eu gosto de tudo. Ainda hoje de manhã estive a escrever sobre o [pintor] Ticiano. Pego nos livros, leio três ou quatro coisas sobre a história do Ticiano, vou ver, tomo nota, tomo nota, tomo nota, e depois elaboro tudo. Porque agora estou a falar … ficciono o interlocutor comigo porque gosto muito do diálogo. Eu gosto de apresentar as coisas sob a forma de diálogo. Foi o Platão que começou. Parece-me que é a maneira mais apelativa de tratar os assuntos porque a pessoa, sem querer, põe-se de um dos lados e começa ele a dialogar com o outro. Eu tenho estado a dialogar com um interlocutor sobre Platão. Também já falei de Platão, mas agora estou a falar sobre o Rembrandt, Tintoretto, o Ticiano.
41. Foi André Cailleux que o inspirou a ser um entusiasta da Geologia em geral e não apenas de uma área?
Acho que foi a generalidade do curso. Embora eu não veja nos meus professores de Geologia os meus inspiradores. Eu vejo mais o Orlando Ribeiro como o meu mentor. Esse impressiona muito mais. Esse foi o meu ídolo, se quiser. Ele era um geógrafo que tinha uma belíssima formação em Geologia. Porque o Orlando Ribeiro faz o curso numa altura em que há Geologia, em que tem Geologia. Ele foi aluno do [Ernest] Fleury. E o Fleury foi um grande mestre de Geologia. Um grande símbolo da Geologia naqueles anos 20 ou coisa por aí. E o Orlando Ribeiro ganha uma formação em Geologia muito grande. Ele compatibiliza a Geologia com a Geografia; nasce aqui a Geomorfologia. Geomorfologia e Geografia Física são complementares. E agora a Geomorfologia e a Sedimentologia são complementares. O que destrói aqui, acumula ali.
42. Portanto, a sua
referência é o Orlando Ribeiro.
Sim. Nacional, sim. Eu tive três referências na minha vida. Em criança, o mestre carpinteiro. Eu fui aprendiz de carpinteiro como criança. E queria ser carpinteiro quando fosse adulto. Depois isso passou. Mas foi o meu ídolo em criança. Eu passava a vida na oficina do mestre carpinteiro. Depois, no liceu, foi o professor Cassiano Vilhena. E como universitário foi o Orlando Ribeiro. Sem dúvida nenhuma.
43. O professor tem sido uma pessoa
de causas, nomeadamente do Património. Quando sentiu necessidade de ser mais
interventivo?
Olhe, isto nasce quando o Carlos Coke e o Paulo Branquinho descobrem as pegadas [de dinossáurio cretácicas] em Carenque. Estamos em 1986. Eu era diretor, não do Museu de História Natural, mas da parte de Geologia. Havia três museus, a Geologia [o Museu Mineralógico e Geológico], a Botânica e a Zoologia. E esses três é que faziam o Museu de História Natural. Eu era diretor apenas da parte geológica. Era presidente da Câmara de Sintra [na altura], o nosso ex-aluno Rui Silva, que era geólogo e que teve alguma sensibilidade. Então, começámos a tirar os lixos, os frigoríficos, as coisas [que juncavam o local]. Nós, eles. E tenho a colaboração daquela associação juvenil de Queluz, a Associação Olho Vivo. Eles vão para lá, varrem aquilo até eu conseguir levar lá o Fernandes Thomaz, Secretário de Estado da Ciência, a ver a coisa bem varridinha, com as pegadinhas ali. Naquela altura ainda não tinham ministério. E ele disse: "Mas isso são mesmo pegadas?" E nós: "Sim, são pegadas!" Nós arranjámos maneira da Fundação Luso-Americana mandar vir o Martin Lockley [da Universidade do Colorado, Denver]. Ele vem a expensas da Fundação Luso-Americana e eu fiquei lixado, para não dizer outra palavra, fiquei lixado quando chegámos ao gabinete com o Lockley e o Secretário de Estado pergunta ao Lockley: "São mesmo pegadas?". Como quem diz, estas bestas, a gente não pode acreditar neles. Como outro [o Lockley] disse que sim [tudo bem]. Mas estávamos no melhor da festa quando anunciei que a Brisa ia passar mesmo por cima das pegadas. Estamos em 1990. Andava por lá [por Carenque] o Mário Cachão a mexer coisas com a Vanda [Faria dos Santos]. Tinham até um boneco [de um dinossáurio], ainda me lembro dessa altura. E começa a luta aqui, precisamente, em 1990. Porque a CREL ia destruir o trilho de pegadas. Agora já não era o trabalho de continuar a limpar e andar para a frente. Era de salvar o que se ia estragar. Essa luta durou três anos. Uma luta terrível. Eu escrevi dezenas de artigos nos jornais. Fui às televisões. Fui à rádio. Escrevi um livro, inclusivamente, chamado A Batalha de Carenque, com toda a história dessa batalha, os artigos dos jornais, etc. Tudo isso está escrito. E nós conseguimos, em 1993, três anos depois de a luta começar, que o governo autorizasse verba, um milhão e seiscentos mil contos ─ penso que é 8 milhões de euros ─, para fazer um túnel por baixo das pegadas. Há uma altura em que a distância do topo do túnel até às pegadas são só uns 20 ou 30 cm. Tudo aquilo teve de ser muito bem reforçado para evitar [a deterioração do trilho]. Nós, à cautela, fizemos a moldagem das pegadas. Nessa altura a Vanda estava sempre a trabalhar comigo. Fomos para lá com o Sr. [Carlos] Abrantes e fizemos a moldagem em látex daquele trilho todo ─ depois enrolámos, como quem enrola uma passadeira; está guardada lá para o museu, lá para uma cave qualquer ─ com medo que se elas se estragassem, pelo menos ficávamos com aquele testemunho. Depois pusemos um geotêxtil por cima e terra, à espera de que houvesse autorização para musealizar o sítio. Portanto, estamos em 1993. Em 1995, Cavaco Silva, teve a simpatia de me convidar a inaugurar os túneis por baixo. E percorremos um dos túneis a pé, por baixo. Em 1995! Ainda o Instituto da Conservação da Natureza que nós tínhamos alertado logo em 1986 para preservar, ainda não tinha feito nada. A opinião pública salvou aquilo, não foram eles [o ICN]. Eles só classificaram em 1997. Dois anos depois da [construção do túnel]. Foi uma luta muito grande. Agora continua, outra vez.
"Essa luta durou três anos. Uma luta terrível. Eu escrevi dezenas de artigos nos jornais. Fui às televisões. Fui à rádio. Escrevi um livro, inclusivamente, chamado A Batalha de Carenque (…) E nós conseguimos, em 1993, três anos depois de a luta começar, que o governo autorizasse verba (…) para fazer um túnel por baixo das pegadas."
44. Esta luta iniciou-se há tantos anos, mas não está terminada...
Isto está parado. A Câmara de Sintra aprovou o projeto [de musealização do sítio] em 2001. Nesse ano, logo a seguir, cai a Câmara de Sintra para o PSD. Vai para lá um homem que sabia muito de futebol. Ele era professor de uma universidade privada qualquer [na Universidade Internacional e na Universidade Lusíada de Lisboa]. Era comentador de futebol. Não tinha sensibilidade absolutamente nenhuma. E em 2020, já tinham passado 20 anos [desde a aprovação do projeto], em que aquilo estava a apodrecer, ervas a crescer, já havia uma árvore implantada no subsolo das pegadas e nós interpusemos uma providência cautelar. Foi um escritório de advogados ─ que eu nem conhecia ─ que me telefonou e se ofereceu, gratuitamente, para tratar do processo. Já foram condenados em primeira instância e recorreram. Era o Fernando Seara [o presidente da câmara]. Ele já está livre disto. Agora é o Basílio Horta. Esse não é de futebol, mas é de outra coisa qualquer. É de tudo menos de cultura. Agora vou com o Mário Cachão no dia 3 [de agosto de 2023] àquela organização [Parques de Sintra -] Monte da Lua. Têm um programa de integração turística de toda a região. Já lhes escrevi e eles já marcaram uma reunião. A ver se a coisa avança. Portanto, continuo a lutar por Carenque. Cada vez aquilo está mais degradado. Continua tapado por baixo do geotêxtil. Há água que se infiltra. O calcário é margoso, muito fissurado, é capaz de se estar a estragar. Agora, ─ desculpem ─ não tem a beleza da Pedreira do Galinha. Nem lá perto. Nem lá perto. Na altura era uma coisa soberba porque só conhecíamos aquela. Quando dois anos depois, em 94, aparece a Pedreira do Galinha, é um deslumbramento. Estou nessa luta [de Carenque] outra vez. Mas a coisa está a avançar. O Mário tem estado a trabalhar nisso. Eu agora trabalho a partir de casa.
45. Na sua longa carreira, qual foi o momento mais marcante, a nível profissional?
Não sei, filha. Não sei. Houve tantos. Por razões que vão fazer-vos rir, foi o doutoramento. Porque na véspera da minha primeira sessão … O doutoramento antigamente eram dois dias. No primeiro dia era interrogado sobre um tema tirado à escolha com 24 horas de antecedência de um conjunto de 20 que nos davam com um mês de antecedência. Hoje em dia isso já não se faz. Naquele mês organizava-se a bibliografia e naquelas 24 horas pegava numa e pum, pum, pum, pum, para ir [para a prova]. Eu vou-me sentar no doutoramento, na cadeira, com uma crise de hemorroidal como eu nunca tinha tido. O Dr. Urbano, o médico daquela gente toda [da faculdade] ali na Rua da Escola Politécnica, esteve em minha casa até às duas da manhã para ver se me conseguia aliviar. E eu vou, assim [apertando as pernas]. E o [Kurt] Jacobson que era um professor alemão, judeu alemão, que falava assim: "Galópin" ─ [Pausa, explicando:] a tertúlia dos professores da faculdade era ali na Livraria Escolar Editora [na Rua da Escola Politécnica]; reuniam-se ali; o Dr. Urbano era um dos participantes daquele grupo, ao fim da tarde, estavam ali em tertúlia ─ E o Jacobson disse: "Achei muito estrranho, o Galópin nem sequerr se levantou parra cumprrimentar o júrri". Porque eu sentei-me e nunca mais me levantei. (risos) Eu levei uma daquelas borrachas redondas para estar [sentado] … e quietinho. Não me obriguem a sair daqui! (risos) "E o Galópin nem se levantou!" E o Urbano, que tinha muita graça, disse: "Pois, você não viu foi o cu do Galopim!" (risos, risos) Portanto já vê, pode ser essa a resposta. O dia mais marcante foi esse.
Intraclasto
A escultura do Marcos
Como intraclasto, o professor Galopim trouxe-nos: "Uma escultura. Uma escultura minha. O meu exame de escultura. É uma amonite cortada por uma falha direita. Um desligamento direito."
Geomanias
Rocha preferida? Para já, tem de pronunciar bem que eu não consegui ouvir. Ah, rocha preferida! O granito. Sem dúvida!
Mineral preferido? A malaquite
Fóssil preferido? Uma trilobite
Era, Período, Época ou Idade preferido? Essas
são umas perguntas para as crianças da escola ... O Cenozoico. E destes, o Oligocénico
Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Não metálicos
Trabalho de campo ou de gabinete? Gabinete
Martelo ou microscópio? Martelo
Pedra mole ou pedra dura? Pedra dura
Ortóclase ou Ortoclase? Ortoclase