Deolinda Flores

Junho 2025







PETROLOGIA ORGÂNICA

SÓCIA APG Nº O509

Natural de Avintes, Vila Nova de Gaia, foi geoarrebatada nas praias de Lavadores e Cabedelo. Hoje é professora catedrática na FCUP e conhecida como a "mulher dos carvões": começou nas lignites de Rio Maior e foi macerais fora, usando a petrologia e geoquímica orgânicas para desvendar ambientes antigos e resolver problemas atuais.

"Quando fui diretora do Departamento de Geologia ela apoiou-me muito, esteve sempre lá para mim. E, portanto, não posso não falar na Manuela Marques como o meu grande suporte nesta vida que fui percorrendo, e reconheço que, em muitos casos, com a ajuda dela. Ela é uma pessoa especial. Acho que há muitos alunos que ficaram marcados por ela e eu sinto que muitos dos objetivos que eu atingi, não os atingi sozinha, tive sempre, do lado dela, um apoio muito grande"

Já julho desfilava com uma maturação térmica respeitável quando, diante do microscópio com luzes especiais, ouvimos a história da "Deolinda dos carvões". Se é geólogo por cá, já ouviu esta expressão, porque há quem torne o objeto de estudo complemento de si próprio. Natural de Avintes, professora catedrática na Universidade do Porto e especialista em Petrologia Orgânica, Deolinda Flores (talvez tenha sido a onomástica a brincar com o destino) passa os dias a olhar para carvão ao microscópio, a medir refletâncias e a decifrar fósseis invisíveis — tudo para saber se uma planta morta há milhões de anos virou ou não combustível, como, quando e porquê. Começou por namorar os granitos, mas rapidamente foi seduzida pelo charme dos carvões. Assistiu à mudança de paradigma do 'carbono tudo', para o 'carbono zero', mas, tal como as plantas, soube adaptar-se. Rompeu tradições e arrastou, sem querer, a filha para a Geologia. Até porque, afinal, a Petrologia Orgânica é território de mulheres e, carbono por carbono, "Coals are a girl's best friend". Venham conhecer esta geóloga vítima de uma bióloga, que entre macerais, fluorescência e gabinetes superlotados, ergueu uma carreira feita de amor ao ensino, geopaciência e uma rede de (a)fetos.


Entrevista 

Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, julho de 2024


1. Nome, a data e o local de nascimento.

Eu sou Deolinda Flores, nasci a 16/06/1958, em Avintes, Vila Nova de Gaia.

2. Conte-nos, de forma simples, para leigos, o que é que faz profissionalmente?

A minha especialidade é petrologia e geoquímica orgânicas e, basicamente, estudo a matéria orgânica que ocorre nos sedimentos e nas bacias sedimentares. Esta pode aparecer concentrada e, nesse caso, temos uma rocha muito característica a que chamamos carvões, ou pode aparecer diluída numa matriz mineral e, nessa altura, chamamos matéria orgânica dispersa. A matéria orgânica concentrada em carvões é mais de natureza vegetal. Já na matéria orgânica dispersa, aquilo que vamos ter é uma componente que pode ser vegetal, mas também pode ser animal. Basicamente, aquilo que nós fazemos é o estudo ao microscópio dos constituintes orgânicos. Esses constituintes orgânicos têm uma nomenclatura muito específica, aos quais chamamos macerais. Ou seja, os macerais estão para a componente orgânica como os minerais estão para as rochas. E temos todos os constituintes, quer os constituintes ligno-celulósicos, quer todos os outros, que depois se organizam em grupos de macerais, de acordo com a sua preservação. Quando eles sofrem mais oxidação, temos um grupo de macerais que é mais rico em carbono. Quando sofrem gelificação, são mais ricos em oxigénio. Depois temos ainda aqueles constituintes que designamos por constituintes figurados, que são basicamente os esporos, os pólenes, as ceras, as resinas, as algas, enfim, e estes são, por norma, extremamente ricos em hidrogénio, e, portanto, são aqueles que fluorescem. Nós fazemos as observações quer em luz branca, quer em luz azul, a que chamamos de fluorescência, e, muitas vezes, para identificar os constituintes e para vermos bem as suas características, recorremos à luz fluorescente. Estes são os métodos de estudo, claro que a geoquímica entra mais na componente molecular. E então, aquilo que nós vamos procurar identificar é a componente molecular das rochas, porque, na verdade, os macerais são a componente particulada. E qual é o objetivo? O objetivo é, sempre, a definição das condições paleoambientais em que se depositou essa matéria orgânica, nas bacias de sedimentação, aquilo a que chamamos fácies orgânicas. E isto também permite a definição dos regimes térmicos, sobretudo em bacias nas quais o grau de metamorfismo foi muito baixo, porque a matéria orgânica é muito mais sensível do que a matéria mineral, nomeadamente as argilas, por exemplo. Sendo mais sensível, a sua evolução, e a evolução ótica, i.e., das suas características óticas, permite identificar quais os regimes térmicos dessa bacia quando estamos em muito baixos graus de metamorfismo. Numa aplicação, se quiser, mais geológica, é basicamente isso que fazemos. 

"O carvão e os combustíveis fósseis deixaram de ter a importância que tinham no passado – quando eu comecei a trabalhar, na realidade, era o grande foco da investigação, as bacias com carvão. (...) Mas fomo-nos adaptando a todo este novo paradigma, do carbono zero"

3. E quais são as outras aplicações da petrologia orgânica?

Hoje em dia temos aplicações multidisciplinares e temos trabalhado muito, nos últimos tempos, em resíduos mineiros de carvão. Por exemplo, a tese da Joana [Ribeiro], que está agora em Coimbra, foi precisamente nessa área. E depois dessa tese tivemos uma série de projetos que foram, felizmente, aprovados e que permitiram o estudo desses resíduos mineiros, nalguns casos com muito carvão. Também pudemos estudar algumas das escombreiras que resultaram da exploração de carvão, sobretudo aqui na Bacia Carbonífera do Douro, as quais entraram em combustão, por causa dos incêndios das florestas. É que há um conjunto de aspetos petrográficos que estão muito associados a essa autocombustão. Nós fizemos sobretudo, digamos, o estudo dessa fração orgânica, mas com uma componente mais ambiental. Também temos feito outras coisas, como é exemplo outra tese de uma estudante nossa que está agora na Austrália, há já uns anos – a Sandra [Rodrigues] – que foi feita em materiais de carbono, em grafitização. De vez em quando, trazem-nos uns artefactos arqueológicos e pedem para vermos o que ali está e a última amostra que vimos tinha grafite no material orgânico. Já lhe tinha sido feita uma análise de difração de raios-X e, entretanto, estive a ver aqui ao microscópio que, de facto, é uma grafite natural – podia não ser, mas é uma grafite natural –, aquelas palhetas de grafite aparecem intercrescidas com matéria mineral e há determinados aspetos petrográficos que são característicos de grafites sintéticas e que não aparecem naquela amostra. E, ultimamente, também temos feito algum trabalho com este novo paradigma. O carvão e os combustíveis fósseis deixaram de ter a importância que tinham no passado – quando eu comecei a trabalhar, na realidade, era o grande foco da investigação, as bacias com carvão. Eu própria comecei a minha investigação numa bacia com carvão, nas lignites de Rio Maior. Mas fomo-nos adaptando a todo este novo paradigma, do carbono zero. Então temos feito o quê? Temos trabalhado na utilização de biomassa como combustível, nomeadamente na identificação de contaminantes na biomassa, basicamente aqueles que ocorrem em pellets ou em briquetes, que são usados como combustível. Há um conjunto de contaminantes como plásticos, metais, coque, o próprio carvão inclusive, e que nós, rapidamente, ao microscópio, conseguimos identificar. Ultimamente, e até por indicação de um colega que não tem nada a ver com Geologia, temos trabalhado um bocadinho em biochar. O que é o biochar? Basicamente é um produto orgânico que resulta da pirólise de resíduos, resíduos esses que podem ser vegetais, são resíduos orgânicos. São muito utilizados com vários fins, nomeadamente na correção de solos, no tratamento de águas residuais, no tratamento de águas de minas, e, portanto, são de algum modo incorporados nos solos e é preciso ver se aquilo que estamos a incorporar nos solos é um carbono estável ou se ainda é reativo. E a petrologia orgânica é a única metodologia que nos dá, de forma eficaz, essas indicações. Vou apresentar agora em Aveiro [XVI Congresso de Geoquímica dos Países de Língua Portuguesa, 2024] um póster com alguns dados e os mesmos dados vão também ser apresentados em Oviedo, no congresso do ICCP [International Committee for Coal and Organic Petrology], porque é uma coisa que ultimamente tem estado a ser alvo de muitos estudos e na qual a Dinamarca tem sido pioneira. Estive lá no início de maio [2024], fui arguir uma tese, não nessa temática, mas tivemos oportunidade de discutir alguns desses aspetos, porque aí se tem feito muito trabalho e têm inclusive uma ligação à UE. São coisas muito recentes, que estão a ser publicadas em 2023, 2024, e eu estou convencida que é uma maneira de fazer o sequestro de carbono controlado. Ou seja, nós sabemos exatamente que o carbono que ali estamos a incorporar no contexto geológico é um carbono que é estável, não é reativo, e, portanto, é uma maneira de se fazer uma redução do CO2, porque como sabemos, o CO2 fica preservado no registo geológico de duas formas: ou em carbonatos ou na matéria orgânica. E quando estamos a procurar incorporar essa biomassa, ou esses compostos de carbono, no contexto geológico, ele tem de estar o mais estável possível. E está praticamente comprovado que a melhor maneira de o fazer é através da pirólise desses resíduos orgânicos. E a melhor e mais rápida maneira de medir a sua estabilidade é utilizando estas técnicas de petrologia, nomeadamente a refletância, que é uma coisa que fazemos quase por rotina num grupo de macerais a que chamamos inertinite. Depois, com os valores da refletância, desde que sejam superiores a 2%, sabemos que significa estabilidade. E tudo isto por comparação com aquilo que nós sabemos dos carvões, porque, na realidade, foi todo um saber, toda uma investigação, todo um conhecimento construído para carvões. Afinal de contas, o carvão é uma rocha, é estudado como qualquer outra, como um granito. E é graças a todo o conhecimento que se construiu a partir do estudo dos carvões e da matéria orgânica que podemos agora dizer que para incorporarmos a matéria orgânica num contexto geológico, esta terá obrigatoriamente de ser controlada, e esse controlo tem de ser feito pelas técnicas da petrologia orgânica, nomeadamente pela refletância, que é uma coisa que está mais do que estabelecida. Hoje em dia, também trabalhamos em bacias com carvões. Temos aí uma tese, da Mariana [Costa], que está a estudar a assinatura geoquímica da sequência da Bacia Carbonífero do Douro. Sabia-se muito e havia muita informação relativamente à petrografia – isso estava mais que conhecido. Tínhamos muitos dados relativos às assinaturas geoquímicas de escombreiras, mas as escombreiras são uma mistura de muita coisa. Portanto, estamos a identificar as diferentes unidades litológicas para fazermos uma quimioestratigrafia. Até aqui, sabia-se muito relativo à análise química dos carvões, aliás, foi por aí que começaram os estudos. Sabia-se muito sobre a petrografia, porque foi um dos trabalhos que o professor Lemos de Sousa fez. E depois fizemos alguns trabalhos complementares, utilizando as mesmas técnicas, mas um pouco mais evoluídas, porque é assim mesmo, temos agora outros equipamentos e outras metodologias que nos permitem esses estudos. Agora, estamos voltados para a assinatura geoquímica e tem sido muito curioso: vai variando ao longo da bacia, não é a mesma em todos os locais. Nós temos, para já, dois focos, que são São Pedro da Cova e o Pejão, e a assinatura geoquímica num lado e noutro não é a mesma. Temos a amostragem toda feita e os dados praticamente todos no Pejão. Falta agora São Pedro da Cova. Também é um caso muito interessante e já temos algumas ideias, mas que precisam, ainda, de ser muito estudadas, até porque a Mariana ainda está no início da sua tese.

"(...) é graças a todo o conhecimento que se construiu a partir do estudo dos carvões (...) que podemos agora dizer que para incorporarmos a matéria orgânica num contexto geológico, esta terá obrigatoriamente de ser controlada (...) pelas técnicas da petrologia orgânica (...). É uma maneira de se fazer uma redução do CO2"

4. Em que ano e onde é que ingressou no curso de Geologia?

Eu entrei na licenciatura em Geologia aqui no Porto, portanto, não é nesta casa propriamente dita, foi nos Leões, mas aqui, em 1977-1978.

Grupo de colegas da faculdade (FCUP, final dos anos 1970)

5. O que a levou a seguir Geologia?

É uma coisa interessante. Eu tive uma professora no ensino secundário que era bióloga, mas tinha uma paixão pela Geologia enorme. Então o que é que ela fazia? Levava-nos muito ao Cabedelo. Eu já morava em Gaia, fiz todo o meu percurso ou grande parte dele no Liceu de Gaia, e tínhamos aquela professora, que era uma figura muito interessante, e íamos ver as rochas do Cabedelo e de Lavadores. E o primeiro despertar para a Geologia foi, de facto, com ela. Ela ensinou-nos que era importante olhar para o substrato, era importante olhar para as rochas. Na altura, o Cabedelo estava ligado à margem de Gaia na maré baixa e quando a maré subia ficava com uma ilha. Quando nós íamos para lá, os pescadores que andavam por ali diziam sempre, "Ai, atenção, cuidado, a maré está a encher, depois ficam ali presos!". Ela mostrou-nos que era importante o estudo do sítio que pisávamos, do sítio por onde caminhávamos. E foi aquela professora, com formação em biologia, é muito curioso. O marido dela também era nosso professor de matemática. Não me recordo do nome dela, mas estou a vê-la, ela era muito magrinha, muito alta, tinha uma série de filhos, vivia muito perto do Liceu de Gaia, de modo que saía do Liceu a correr para ir buscá-los, de vez em quando aparecia-me de avental lá nas aulas! (risos) Uma coisa engraçada. Depois nós, enfim, brincávamos um bocado com aquilo, não é? Naquela juventude louca brincávamos um bocado com a situação. Mas foi ela. E eu, depois, vim para aqui. 

"(...) acho que nem eu própria pensei seguir uma carreira de investigação e uma carreira na universidade, mas as coisas proporcionaram-se, (...) foram surgindo e, paulatinamente, fui atingindo alguns objetivos, que na realidade nunca foram os meus objetivos iniciais"

6. Foi primeira opção, Geologia?

Foi. Na altura, eu ainda fiz o serviço cívico, andei por aí de um lado para o outro, depois acabei por fazer exame de acesso. Foi, talvez, o primeiro ano de exame de acesso, sem qualquer preparação, porque o serviço cívico era feito nalgumas instituições pelo Porto – eu estive aqui no Porto – e depois concorri e entrei cá. Podia ter entrado noutro sítio qualquer, mas foi para aqui, porque também não era fácil ir para outras cidades. 

7. E como reagiram os seus pais?

Eu sou de uma família em que somos quatro filhos, mas só três é que tiraram um curso superior – desses três, dois rapazes e uma rapariga. Os meus pais, na altura em que entrei para a universidade, não estavam em Portugal, eram imigrantes em França. Eu não estava com eles, não tinha avós, estava com familiares que nem são familiares muito próximos, mas foram os familiares que nos acolheram. Acolheram três jovens. Não era fácil uma rapariga, nos anos 70, entrar numa universidade e estar num curso superior. Ainda que eu venha de uma zona, Avintes, que é, por tradição, a aldeia de Vila Nova de Gaia com mais estudantes universitários, maioritariamente homens. O meu marido, o meu irmão, os meus primos, todos fizeram os seus cursos superiores. Portanto, a ideia era sempre: vai ser professora. Eu acho que nem eu própria pensei seguir uma carreira de investigação e uma carreira na universidade, mas as coisas proporcionaram-se. Na realidade, acho que foi algo do género, "Olha, foi o que tu escolheste, ok, vais". Eu era a única da área das ciências, porque os meus dois irmãos são da área das letras. Mas nenhum é académico, portanto, eu fui um bocadinho uma carta fora do baralho. (risos) Venho, mulher, para um curso que era, na altura, essencialmente mais para homens, mas não tinha muito bem essa consciência. Embora eu tenha tido uma série de colegas mulheres e professoras mulheres. Mas a ideia era, "Vai para o ensino", e fui! Ainda que nunca me tenha passado pela cabeça, as coisas é que foram surgindo e, paulatinamente, fui atingindo alguns objetivos, que na realidade nunca foram os meus objetivos iniciais.

8. Há mais alguém na família ligado à Geologia?

Sim, a minha filha [Carolina Flores].

9. Há algum orgulho especial? De repente, temos um filho que escolheu a mesma área que nós, acabámos por inspirá-los, não?

Há e não há. Acredito que sim, e eu acho que há um colega que a inspirou muito, que é o Narciso [Ferreira]. Ela uma vez foi comigo à Serra da Estrela, porque eu não tinha com quem a deixar e levei-a comigo, com o Narciso e com a Ângela [Almeida], e eu acho que a Carolina ficou encantada. Tinha para aí uns 11 ou 12 anos. Ela começou por ir para Medicina, entrou em Medicina aqui no São João, mas depois foi fazer de novo os exames. Eu confesso que não apoiei muito, ela aí teve foi o apoio do irmão e, sobretudo, da cunhada. Porque eu estava a recear aquilo que agora sinto, que ela é penalizada por ser "filha de", é sempre vista não como a Carolina, mas como "filha de". Não é fácil. E tenho pena que seja assim. Eu nunca a trouxe para aqui porque sabia que isto podia ser mau para ela, nós temos sempre alguns anticorpos, e é normal que assim seja. Por isso, quando ela disse que ia concorrer para Geologia, disse-lhe, "Olha Carolina, vais concorrer, não vais concorrer para o Porto, tens a Engenharia Geológica em Aveiro, podes concorrer", mas ela não queria engenharia, queria Geologia, "Então pronto, se queres Geologia vais para Coimbra, melhor seria ires para Lisboa, porque em Coimbra ainda tenho muitos contactos". (risos) E foi muito curioso, a minha nora disse-lhe assim, "Não Carolina, não vais para Lisboa, Lisboa é uma cidade muito grande, tu vais para Coimbra!", porque a minha nora é fisioterapeuta e foi colocada em Coimbra, só depois é que foi para o Porto, "Vais para Coimbra porque Coimbra é uma cidade pequena, uma cidade universitária, e tu estás mais à vontade!". E há uma história muito engraçada. As aulas começaram mais ou menos na altura do Congresso Ibérico de Geoquímica que decorreu em Castelo Branco, organizado pela colega Isabel Margarida [Horta Ribeiro Antunes]. Foi o irmão que a foi levar a Coimbra, eu tinha ido para Castelo Branco. E eu estava sentada no anfiteatro, atrás estavam uns estudantes, e a certa altura eu ouço-os a dizer assim, "Opá, entraram lá em Coimbra umas gajas com umas notas!" e eu quieta e calada, sem dizer nada, mas a ouvir a conversa. (risos) Quem eram? Eram duas, a Carolina, que estava no número um da lista, e uma outra colega que ela teve, que até trabalhou com o Alcides [Pereira], que era e foi uma aluna excelente e era dali, ou das redondezas, digamos.  Foram as duas que entraram com notas atípicas. E o Alcides era, na altura, o diretor do departamento e chamou a Carolina. E ela ficou em pânico, "Mãe, o que é que eu faço? O professor Alcides chamou-me, e o que é que eu digo?", porque eu dizia sempre para ela ser o mais discreta possível. Houve professores em Coimbra que só souberam que a Carolina é minha filha no dia da defesa do Mestrado, quando me viram a mim e ao meu marido lá. Um deles foi o Pedro Proença [e Cunha], que não fazia ideia quem era a Carolina. E eu sempre lhe disse para ela se manter nesse registo. Claro que, quando o Alcides viu uma aluna com uma nota tão alta, do Porto, a entrar em Coimbra, chamou-a e perguntou-lhe, "Mas então porque é que tu estás aqui?", ao que a Carolina respondeu "Ah, é que a minha mãe trabalha na Faculdade de Ciências [da Universidade do Porto]". O Alcides ainda disse, "Trabalha na Faculdade de Ciências, mas não trabalha em Geologia!", ficou muito aflita, muito atrapalhada, e acabou por ter de dizer. (risos)

Festa pós-doutoramento com colegas (Helena Sant'Ovaia, Isabel Suarez, Manuel João Abrunhosa e João Lemos de Sousa) e família

"Eu procurava ser, aquilo que eu costumo dizer, uma esponja. Procurava absorver o máximo daquilo que os professores diziam nas aulas, e depois estudava com muita regularidade"

10. Nos tempos em que foi estudante universitária, foi uma aluna média, boa ou muito boa?

A avaliação que eu faço agora é que fui uma aluna razoavelmente boa. Era uma aluna com métodos de estudo, muito atenta, não faltava às aulas, estudava com regularidade. Tenho, até, uma história muito engraçada, que se passou com a professora Ana Neiva. Eu tive um problema num siso, isto já foi para aí no 4º ano, e tive de o extrair. A extração aquilo não correu muito bem, aliás, fiquei sem sensibilidade aqui no maxilar inferior, do lado direito, e o cirurgião facial que me operou, na altura disse-me, "Olha, agora ficas em casa". E no dia seguinte eu tinha aulas com a professora Ana Neiva e não fui, faltei às aulas. De manhã, quando estava em casa, dizem-me assim, "Olha, vai ao telefone, porque te estão a telefonar da faculdade". Não havia telemóveis, era um telefone fixo. E eu, muito naturalmente, fui ao telefone, falava mal ainda porque tinha esta parte da cara muito inchada. E era a professora Ana Neiva, a perguntar porque é que eu tinha faltado à aula. E eu disse-lhe que tinha sido operada a um dente e não tinha corrido bem. "Ah pronto, é que a senhora nunca falta, eu precisava de saber o que tinha acontecido consigo", respondeu ela. (risos) Eu às vezes uso isto com os meus alunos, se eu tivesse de fazer isto com eles, passava a minha vida ao telefone! (risos) Eu andava ali nos 14 e 15, portanto, não era uma aluna excelente, mas era uma aluna, apesar de tudo, razoavelmente boa. Também éramos pouquinhos, tínhamos um grupinho com uma boa camaradagem.

11. E era participativa ou mais caladita?

Eu acho que era mais calada, mas participava nas aulas, procurava sempre acompanhar os colegas. Tinha uma colega que era mais velha, a Armanda Dória, e eu andava muito com ela, estudávamos juntas, estudava em casa dela, estudava em casa de uma colega aqui que vivia num lar e, sobretudo ao Domingo, lá íamos ao lar dela, porque tínhamos um ambiente mais de estudo. Mas, digamos, não era participativa de estar constantemente a interromper, isso não. Eu procurava ser, aquilo que eu costumo dizer, uma esponja. Procurava absorver o máximo daquilo que os professores diziam nas aulas, e depois estudava com muita regularidade. Portanto, digamos, não era por ser uma aluna excecional, mas acho que era o esforço. Eu também tinha uma certa responsabilidade, não é? Hoje em dia, não é bem assim, mas naquela altura havia responsabilidade, era um esforço grande que os pais estavam a fazer, ter três filhos na universidade. Era preciso trabalhar.

12. E atividades extracurriculares, envolvia-se em alguma coisa, atividades académicas?

Não havia muito, na altura, mas eu também, fruto até deste enquadramento em que eu vim estudar, se não estava em casa cedo, já estavam a perguntar porque é que eu não estava. Portanto, havia ali um controlo muito grande.

13. Nem Associação de Estudantes?

Não, e eu acho que as coisas ainda se estavam a organizar, porque o 25 de Abril tinha sido há relativamente pouco tempo. E, depois, os meus pais tinham muito medo. O meu pai dizia muito que a política era para os políticos, que nós não éramos uma família de políticos. Embora o meu pai fosse até muito participativo, era tesoureiro de muitas instituições ligadas ao teatro, ao futebol, ao mundo columbófilo. Ele tinha muita participação nisso, mas tinha muito cuidado com os filhos. Ainda que o filho mais velho, o meu irmão mais velho, tivesse até já uma vida política. Mas não, eu nunca estive muito ligada a essas atividades extracurriculares.

14. Qual foi a disciplina que mais gostou durante o curso e quem é que a lecionava?

Não posso deixar de falar da Manuela Marques. A Manuela Marques foi minha professora e, mais tarde, companheira, colega de estudo e de investigação. Eu tive a Manuela como professora em muitas unidades curriculares, até porque os professores não eram muitos. Gostava muito das aulas de campo em que íamos para a Foz. E creio que foi no meu terceiro ano, ela estava grávida do filho no segundo semestre – o filho nasceu na véspera do São João –, com uma barriga enorme, na Foz, e eu gostei muito do campo. Eu acho que ela se colocava muito do lado do estudante. Nós éramos um grupo relativamente pequeno, no quarto e quinto anos acho que éramos sete, oito ou nove, não éramos mais. A Manuela Marques foi, de facto, muito importante durante o meu percurso académico. Depois, mais tarde, acabámos por ser colegas de investigação, discutíamos muito, falávamos muito, éramos muito companheiras, tivemos vários projetos, intercâmbios em que estávamos as duas. É alguém por quem tenho muito respeito, ainda hoje mantemos uma boa amizade, fomos sempre muito cúmplices. Eu e ela soubemos sempre quais os nossos limites, mesmo na área de investigação, nunca houve sobreposição dos temas, sempre nos complementámos. Quando fui diretora do Departamento de Geologia ela apoiou-me muito, esteve sempre lá para mim. E, portanto, não posso não falar na Manuela Marques como o meu grande suporte nesta vida que fui percorrendo, e reconheço que, em muitos casos, com a ajuda dela. Ela é uma pessoa especial. Acho que há muitos alunos que ficaram marcados por ela e eu sinto que muitos dos objetivos que eu atingi, não os atingi sozinha, tive sempre, do lado dela, um apoio muito grande. 

"(...) 'Olha, vai ao telefone, porque te estão a telefonar da faculdade'. E era a professora Ana Neiva, a perguntar porque é que eu tinha faltado à aula. E eu disse-lhe que tinha sido operada a um dente e não tinha corrido bem. 'Ah pronto, é que a senhora nunca falta, eu precisava de saber o que tinha acontecido consigo', respondeu ela. (risos) (...) Se eu tivesse de fazer isto com os meus alunos, passava a minha vida ao telefone!"
"Nós estivemos oito num gabinete relativamente pequeno e discutíamos muito, falávamos muito, e muito das nossas teses foi, na realidade, um trabalho que resultou dessas discussões conjuntas. Hoje em dia, quando estamos cada um no seu gabinete, estamos muito mais isolados, e eu sinto isso"

15. Quando é que vai para os carvões? Ainda durante a Licenciatura?

Não. Eu acabei o curso em setembro de 1982 e entrei como Assistente Estagiária em janeiro de 1983, porque antes era assim. Hoje em dia, não, mas naquela altura era assim, e por isso é que agora nos vamos reformar todos juntos. Na altura, havia muitas oportunidades, recordo-me inclusive que recebíamos cartas do Minho. A Universidade no Minho estava a começar, eu cheguei a receber uma carta de lá. Hoje estamos noutro paradigma completamente distinto. E comecei a trabalhar, curiosamente, com o professor Pina Mendes, que era de Coimbra e esteve cá durante um tempo. Comecei, também com a Armanda [Dória], a estudar rochas graníticas, mas por muito pouco tempo, pois esse professor foi embora, para Coimbra. A Armanda foi então trabalhar com o Fernando Noronha e eu fui trabalhar com o Lemos de Sousa e a Manuela Marques, que, na altura, eram as duas pessoas que estavam a trabalhar em carvões. Para além da Manuela Marques, veio o Lopo Vasconcelos, de Moçambique, para fazer a tese. Começou também a fazer a tese em estratigrafia o Ary [Pinto de Jesus], que era geólogo da mina no Pejão. Estava cá também o Zé Pedro Montalvão [Fernandes], a fazer tese na área de palinologia. Depois veio um colega que estava na África do Sul, para fazer a licenciatura, embora já estivesse a trabalhar na área dos carvões, curiosamente, na área da palinologia. Fez-se então ali um grupo que ainda hoje se mantém próximo. O Lopo, o Henrique, a Manuela Marques, eu própria, enfim, entre outros que depois vieram, criámos uma amizade tão grande que ainda hoje continua. O Lopo está em Lisboa, a primeira coisa que ele fez quando veio foi dizer-me, "Deolinda, dia 10 de julho estou por Lisboa!". O Henrique tem uma casa em Cascais, vem muito ao Porto, na altura do São João esteve cá, em minha casa. Éramos, de facto, um grupo muito, muito coeso. E, à frente do grupo, estava o professor Lemos de Sousa, na altura não era uma pessoa fácil, mas ele tem melhorado. Na brincadeira, costumamos dizer que ele é como o vinho do Porto, quanto mais velho, melhor está! (risos) Cada um tinha os seus temas, os seus problemas, mas discutíamos muito daquilo que eram as nossas dificuldades científicas. Discutíamos muito ali naquele grupo e estávamos todos num gabinete pequeno – éramos oito pessoas num gabinete –, e eu acho que nunca produzimos tanto como naquela altura. Portanto, quando agora dizem, "Ah, porque não tenho condições!", "Ah, porque eu tenho um gabinete onde está muita gente"... Nós estivemos oito num gabinete relativamente pequeno e discutíamos muito, falávamos muito, e muito das nossas teses foi, na realidade, um trabalho que resultou dessas discussões conjuntas. Hoje em dia, quando estamos cada um no seu gabinete, estamos muito mais isolados, e eu sinto isso.

16. Qual o primeiro trabalho na área da Geologia?

Como eu disse há bocadinho, eu acabei a licenciatura e comecei logo aqui, portanto, o meu primeiro trabalho propriamente dito foi, na realidade, os documentos que tive de preparar para fazer as provas de aptidão pedagógica e capacidade científica. E já foi em Petrologia Orgânica. Depois segui para doutoramento, já sobre os carvões de Rio Maior. Os primeiros dados de carvões de Rio Maior foram apresentados nesse trabalho, que não é uma tese, mas se fosse agora era uma tese, não era propriamente um relatório. Foi a primeira vez que o departamento adquiriu uma lâmpada de fluorescência, que não tinham na altura, porque só trabalhavam com carvões de alto grau, e, portanto, não precisavam. Quando eu comecei a trabalhar em carvões de baixo grau, comprou-se uma lâmpada de fluorescência, de mercúrio, com um iluminador. Agora é tudo com LEDs, mas na altura era uma lâmpada de mercúrio a alta pressão, que durava 100 horas, e muitas vezes – a maior parte das vezes –, não chegava a 100 horas de trabalho. E com todos os cuidados e mais alguns para substituir. 

" (...) quando se está à frente de um departamento e é necessário lidar com colegas e com funcionários, é muito complicado, é preciso estar disponível para aceitar as diferentes sensibilidades, para se colocar na posição deles"

17. Naquilo que são as suas funções, qual é a coisa que mais gosta de fazer e a que gosta menos?

A coisa que eu mais gosto de fazer, e sempre fiz com muito prazer, é dar aulas. Gosto muito, e até dou uma cadeira que não tem nada a ver com aquilo com que eu trabalho, que é Geomorfologia, mas que me dá muito gozo. Hoje em dia, já estou algo desmotivada, mas eu acho que isto é geral, não é só comigo, é geral e é em todas as universidades. O que eu gosto menos de fazer, é uma coisa a que sempre fui obrigada a partir de certa altura e agora faço muito, que é a gestão. Fazer a gestão universitária é, cada vez mais, complicado. Especialmente quando temos de lidar com pessoas, com recursos humanos, é muito penoso, é preciso ter uma astúcia muito grande para lidar com diferentes sensibilidades. Na realidade, lidar com pessoas é, talvez, a coisa com a qual tive mais dificuldade, em particular quando chegava à altura das avaliações – ainda fiz algumas – de alguns funcionários. Essa componente da gestão a mim custa-me muito. Embora também goste muito de outras coisas da gestão universitária. Já faço parte do Concelho Científico da Faculdade desde 2010, e antes fazia, mas não no Concelho Científico, chamavam-lhe a Coordenadora – que eram só os presidentes dos departamentos. Quando o Concelho Científico começou a ser eleito, eu tive um colega da química, o João Monte – ele já está jubilado, mas ainda me dou muito bem com ele – veio bater-me à porta e disse, "Deolinda, eu quero que faças parte da lista que eu vou apresentar para o Concelho Científico. E vais em terceiro lugar, porque em primeiro lugar está o professor Falcão Moreira, em segundo lugar estou eu, e tu estás em terceiro", e eu nunca mais larguei o Científico. E gosto muito de lá estar, se não já teria desistido com certeza, mas eu gosto e tenho estado sempre envolvida em listas, sempre em lugares que dão, de facto, eleição. Mas reconheço que quando se está à frente de um departamento e é necessário lidar com colegas e com funcionários, é muito complicado, é preciso estar disponível para aceitar as diferentes sensibilidades, para se colocar na posição deles e, enfim, compreender, o que não é fácil. E isso é penoso, é difícil. Ou pelo menos para mim não foi fácil. 

18. Há algum geólogo, contemporâneo ou não, que tenha conhecido ou não, que admire muito?

Há uma outra pessoa que também me marcou muito, mas já numa fase da vida mais profissional, que é o professor Tomás Oliveira. O Tomás Oliveira foi aqui professor durante uns anos, e eu, na altura, dava as aulas práticas do professor Tomás. Ele é um professor com paixão, e passou-nos também essa paixão. Aquelas saídas ao Alentejo, que ele fazia questão de organizar, foram também muito marcantes. É uma pessoa de quem eu me lembro muitas vezes, por quem tenho muita consideração – ele por mim também, acredito – e sempre que posso estou com ele. E acho que ele deixou muitas marcas em toda uma geração aqui no Porto. As aulas teóricas eram ao sábado de manhã e estavam repletas! Ele foi, de facto, uma pessoa que marcou, porque ele é um entusiasta e continua a ser.

19. Qual é a sua publicação favorita na área das geociências? Pode ser uma carta, um livro, pode ser qualquer coisa.

A Petrologia Orgânica tem uma bíblia, que é o livro Organic Petrology, de um grupo de pessoas eminentes, com algumas mulheres. A Petrologia Orgânica tem, na realidade, muitas mulheres. Aliás, a primeira classificação que surgiu dos componentes orgânicos, é a classificação SH – agora já existe outra. S de Stopes, e Stopes era o apelido de uma senhora que é palinóloga, mas toda a vida estudou matéria orgânica ao microscópio, a Mary Stopes. O H é de Heerlen, porquê? Porque ela apresentou essa classificação numa reunião que houve em Heerlen [Países Baixos], portanto, ficou a classificação SH. A Petrologia Orgânica esteve sempre muito ligada a alemães, essencialmente, a Marlies Teichmüller, que é famosíssima ainda hoje, mesmo já tendo morrido há alguns anos, ou a [Marie-Therese] Mackowsky, por exemplo. Estiveram no Porto, inclusive, num primeiro ICCP [International Comitee for Coal and Organic Petrology] que se fez aqui. Estamos agora eu e o professor Lemos [de Sousa] a fazer um trabalho sobre a história e o contributo que o ICCP – ao qual nós pertencemos e no qual estivemos sempre muito envolvidos – teve em Portugal, porque vai ser a reunião número 75. Já organizámos três reuniões do ICCP, duas foi o professor Lemos de Sousa. A primeira em 1978, acho eu, a segunda em 1998 e a terceira já foi comigo, em 2011. E vamos fazer em, talvez, 2026 a quarta reunião do ICCP aqui no Porto. E uma das figuras que estivemos a selecionar para incluir nesse trabalho, para além de imagens de grupo dessas três reuniões, é uma imagem maravilhosa, em que está precisamente a Teichmüller, a Mackowsky e uma senhora que é a Bankstone, que conheci, mas que, entretanto, deixou a área. A Teichmüller estava mais ligada à matéria orgânica dispersa, a Mackowsky estava muito ligada à utilização industrial e tecnológica dos carvões, o fabrico do coque, aliás, as fórmulas todas de cálculo da estabilidade dos coques, é a ela que se devem. E elas vieram aqui ao Porto, ao congresso, e depois queriam ir ao Minho. O professor Lemos lá as levou e tirou-lhes uma fotografia, que vamos colocar no trabalho. E, então, essa fotografia é uma imagem maravilhosa, com as duas senhoras já velhinhas. E isto para dizer que, na realidade, a Petrologia Orgânica é muito de mulheres, tem muitas mulheres associadas. Portanto, há essa bíblia, que está sempre em cima da minha secretária, Organic Petrology, cujo autor é um australiano, o [Geoffrey Hamlet] Taylor, mas tem uma série de coautores, entre eles a Teichmüller. Depois, uma das coisas que me deu muito, mas muito prazer, e que foi muito desafiante, foi uma série de duas publicações, sobre uma revisão daquilo que se sabia da Petrologia Orgânica. Em 2012, fomos convidados pelo International Journal of Coal Geology – a nossa revista de eleição – para fazer uma revisão, um upgrade e um update, daquilo que se sabia sobre a Petrologia Orgânica, desde 1998, que é a data desse livro. E fizemos dois artigos – fizemos um, mas depois os editores pediram para nós dividirmos aquilo em duas partes –, uma parte mais de aplicações da Petrologia Orgânica à Geologia propriamente dita, e depois uma segunda parte já com os contributos multidisciplinares. Foi um trabalho que foi feito pela Isabel Suárez-Ruiz [Instituto Nacional del Carbon, INCAR-CSIC, Espanha], que aliás, foi a que coordenou, e eu própria – duas mulheres também –, mas depois com dois homens, o João Graciano [Mendonça Filho], que é brasileiro, e o Paul Hackley, que é dos Estados Unidos da América, do United States Geological Survey. Foi muito duro, foi muito penoso, trabalharem quatro pessoas em colaboração, mas foi um trabalho muito gratificante. Primeiro, porque nos obrigou a trabalhar toda a bibliografia, e segundo, porque foi um trabalho de grupo, um trabalho com diferentes sensibilidades. E ainda hoje é um trabalho que é muito citado. Porque é útil, quer para questões académicas, quer para as aulas, está ali tudo. É daquelas coisas que eu nunca teria pensado fazer, e talvez sozinha não conseguisse atingir, mas encontrámos ali um grupo muito interessante que fez a coisa acontecer.

"(...) eu iria dar uma espreitadela ao Carbonífero, porque acho que aquelas florestas exuberantes, aquelas plantas, aquelas libelinhas, toda aquela paisagem, devia ser qualquer coisa de maravilhoso"

20. Qual o evento mais marcante da sua carreira?

Foi quando fiz as minhas provas de agregação. Eu fiz e preparei as minhas provas durante a recuperação de uma fratura trimaleolar, no calcanhar direito, com rotura de ligamentos. Tive de ser operada, perdi a minha mobilidade, deixei de andar. Caí na escombreira da Serrinha [Bacia Carbonífera do Douro], quando estávamos a fazer a amostragem para a tese da Joana [Ribeiro], em 2007. Aquilo tinha muito sedimento solto, escorreguei, caí e parti o osso. Isto aconteceu era meio-dia, às cinco da tarde estava no bloco operatório. E fiz toda a preparação das minhas provas, que concluí em dezembro desse ano, no hospital, porque tinha de ir fazer fisioterapia. O meu objetivo, naquele momento, não era fazer as provas, o meu objetivo era ganhar mobilidade, começar a andar, recuperar daquela paragem de seis semanas sem colocar o pé direito no chão, e isso foi, de facto, o maior desafio que eu tive de superar. 

21. E o momento, assim, mais embaraçoso, um momento complicado?

A coisa que mais me marcou pela negativa, evidentemente, foi a morte da Helena Moura. A Helena Moura era uma jovem muito promissora, era uma jovem que queria a toda a força fazer o seu doutoramento e que, de um momento para o outro, faleceu. Ela tinha um problema de saúde que era hereditário, a mãe também tem, mas a mãe foi operada, e ela não conseguiu. Morreu poucos dias depois de chegar de uma estadia de dois ou três meses em Espanha, porque ela estava a fazer tese comigo e com a Isabel Suárez, que estava em Oviedo. E ela veio para uma consulta, precisamente, e ia embora passado uma semana, mas acabou por falecer repentinamente, e isso marcou-me muito, muito profundamente. Ela fez a licenciatura e o mestrado em Coimbra, e depois veio para aqui, estava aqui connosco a fazer o doutoramento. Já a tese de mestrado fê-la em grande parte aqui, no estudo dos carvões do Douro, começámos por fazer algumas análises químicas com ela. Era uma miúda que sabia muito bem aquilo que queria, sabia muito bem aquilo de que gostava, porque não é fácil uma pessoa gostar de orgânica, ou gostar de carvões. E era muito autónoma, muito empenhada e partiu cedo demais. E eu tenho filhos da mesma idade e foi muito, muito penoso. Tenho muitas saudades dela, há alturas em que penso, "Epá, se a Helena estivesse cá.". Chegámos a ir ao Congresso Nacional de Geologia, nos Açores [2013], e já tinha tudo marcado para ir à Holanda, ao congresso do ICCP. Ela deixou, inclusive, um trabalho quase pronto. Ela estava a estudar carvões de três bacias, e o trabalho sobre Peñarroya [Espanha] já estava pronto. Ela deixou-me o manuscrito para eu rever, e eu estava a revê-lo quando isto aconteceu. Peguei no manuscrito, e, entretanto, veio a pandemia, a coisa atrasou-me bastante, mas preparei o trabalho e já foi publicado. E agora, tudo o que ela fez, todo o trabalho em que ela investiu, eu faço sempre questão de a colocar como coautora. Porque ela merece, o trabalho foi dela. Embora o processo nos tenha custado bastante, porque depois havia coisas que nós não tínhamos, os ficheiros, por exemplo. A mãe facilitou-nos a vida, porque nos cedeu o portátil dela, e até mesmo as pen drives e os discos externos, e nós copiámos todos os ficheiros. Mas depois estar na cabeça da Helena, saber onde é que estão as coisas, como estão, foi complicado. Houve muita coisa que tivemos de fazer desde o inicio e eu tive a colaboração de algumas pessoas, de alguns colegas dela, que me ajudaram a trabalhar no Corel, que são coisas que era ela que fazia, e para as quais eu não tinha habilidade. É verdade, tive a colaboração de colegas dela, que também sentiram que era uma homenagem que lhe estavam a fazer.

22. Se pudesse viajar no tempo geológico e assistir a um evento concreto, qual é seria?

Eu iria ao Carbonífero, eu iria dar uma espreitadela ao Carbonífero, porque acho que aquelas florestas exuberantes, aquelas plantas, aquelas libelinhas, toda aquela paisagem, devia ser qualquer coisa de maravilhoso. Pelo menos dar uma espreitadela, deixa cá ver como é que isto é. (risos) E repare, eu fiz a minha tese no Pliocénico, em Rio Maior! Depois, durante a minha vida estudei muita coisa, mas acho que, de facto, aquilo deviam ser umas paisagens maravilhosas. E se pudéssemos ver, digamos, o início de todo o desenvolvimento daquelas plantas, aquilo deve ter sido qualquer coisa de fabuloso.


Intraclasto

Top carvões

Como intraclasto, a Deolinda traz-nos duas das suas amostras de carvão favoritas. Porque, convenhamos, até para ser carvão é preciso ter sorte — uns acabam a grelhar, outros terminam no dedo de uma rainha. A vida é injusta, até para as rochas.

"A dobra em carvão acho que é fantástica! O carvão é muito frágil, dificilmente cria esta capacidade, embora nós consigamos, ao microscópio, ver os dobramentos, sobretudo nas amostras do Douro, vê-se muito os macerais dobrados, vê-se até com alguma frequência. Mas eu acho que assim em amostra de mão, (...) não haverá muitas. Faço sempre questão de mostrar aos meus alunos e digo sempre, "É para ver na minha mão, vocês não mexem, ninguém vai mexer, é só na minha mão!" Foi trazida pelo colega Ary, quando ele trabalhava na mina do Pejão, ainda hoje a guardo, não sei o que lhe vamos fazer quando eu me for embora, quando eu me reformar. A outra é um calhau rolado de um carvão, portanto, de um azeviche, que é um carvão de baixo grau. Basicamente é um tronco fossilizado, muito enriquecido em hidrogénio e, portanto, muito pouco denso. Esse hidrogénio pode ser das resinas, do próprio tecido, mas muitas vezes é um enriquecimento posterior, ou seja, hidrocarbonetos que podem andar por ali a passear e a matéria orgânica tem a capacidade de os adsorver na sua estrutura. Esse teor em hidrogénio faz com que esse tecido que gelificou fique muito estável à meteorização, dando uma boa gema orgânica. A rainha Vitória, quando ficou viúva, todas as suas joias eram de azeviche de Whitby [Inglaterra, Reino Unido]. Em Santiago de Compostela também há muita joalharia feita de azabache, como eles dizem, azeviche como dizemos nós, ainda que acreditemos que muito do azeviche que é lá tratado vem daqui, das nossas formações. Esta amostra veio da Rússia, foi o colega Rui Moura [FCUP] que um dia fez o favor de me oferecer".

"O que fez dobrar aquela amostra de carvão também permitiu a orientação das estruturas benzénicas. Na tese da Sandra [Rodrigues] ela pegou em amostras de antracite, metaantracite, do Douro, e grafitizou, para ver quais as condições para produzir grafite, grafite sintética, evidentemente, usando esses carvões muito evoluídos. Ela usou também antracites de Peñarroya e do Peru, e é muito curioso que as únicas que grafitizaram com sucesso e a mais baixas temperaturas foram aqui as do Douro. E porquê? Por causa da pressão, que foi fundamental. As metaantracites são, de facto, anisotrópicas, mas é uma anisotropia ótica, não é uma anisotropia cristalina. Porquê? Porque os carvões são amorfos. Agora, a anisotropia ótica que se observa nos carvões é uma orientação das estruturas benzénicas, que se orientam por várias razões. Primeiro pela pressão, e, portanto, o que fez dobrar aquela amostra de carvão, reorientou as estruturas benzénicas. Como as nossas amostras têm um bocadinho de hidrogénio, ele serviu como lubrificante, ao passo que, por exemplo, no Peru, que é um contexto mais de metamorfismo de contacto, todas aquelas rochas ígneas que existem ali em plena cadeia andina, provocaram um choque térmico, um aumento da reflectância e um consequente aumento do grau de incarbonização dos carvões, mas sem a reorientação dessas estruturas benzénicas. Portanto, as nossas, com um bocadinho mais de calor, dariam grafites de muito boa qualidade. Foi uma pena"


Geomanias

Rocha preferida? Azeviche

Mineral preferido? Calcite

Fóssil preferido? Posso dizer âmbar? É uma resine fossilizada

Era, Período, Época ou Idade preferido? Carbonífero

Trabalho de campo ou de gabinete? Laboratório de Petrologia

Unidade litostratigráfica preferida? O Grupo Silves

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Não metálicos 

Martelo ou microscópio? Microscópio, claro!

Pedra mole ou pedra dura? Pedra mole

Esparrite, Esparite, Sparite ou sparrite? Eu sempre aprendi, e ensino, esparite. No entanto, digo sempre aos meus estudantes que há determinadas  escolas que dizem esparrite.


Teaser da Entrevista